100 anos da BCG: o misterioso cientista uruguaio que trouxe a vacina contra a tuberculose ao Brasil:betsesportiva
Uma conquista da ciência
Embora a tuberculose seja conhecida há maisbetsesportiva9 mil anos, o agente causador da doença só foi identificado no século 19.
Em 1882, o médico alemão Robert Koch (1843-1910) publicou os primeiros trabalhos demonstrando que a bactéria Mycobacterium tuberculosis (também conhecida como bacilobetsesportivaKoch,betsesportivahomenagem ao seu descobridor) estava por trás da enfermidade, marcada pela destruição progressiva dos pulmões.
Naquele período, a tuberculose era um problema muito grave e frequente. De acordo com o CentrobetsesportivaControle e PrevençãobetsesportivaDoenças (CDC) dos Estados Unidos, uma a cada sete pessoas morriabetsesportivadecorrência das complicações dessa moléstia no final do século retrasado.
Falamos aquibetsesportivaum períodobetsesportivaque os antibióticos nem existiam e os médicos precisavam apelar para tratamentos nada confiáveis (como óleobetsesportivafígadobetsesportivabacalhau ou massagens com vinagre).
Em muitos casos, a única saída era mandar os pacientes para repousarbetsesportivasanatórios e asilos, que ficavambetsesportivacidades mais afastadas e com o clima ameno.
Mas, na virada do século 20, dois cientistas que trabalhavam no Instituto Pasteur, da França, resolveram mudarbetsesportivauma vez por todas esse cenário.
O médico Albert Calmette (1863-1933) e o veterinário Camille Guérin (1872-1961) levaram 13 anos e fizeram maisbetsesportiva230 tentativas antesbetsesportivachegar à fórmula finalbetsesportivauma vacina capazbetsesportivafrear a tuberculose.
Feito a partirbetsesportivauma bactéria viva atenuada (a Mycobacterium bovis, que causa tuberculosebetsesportivabois e vacas), o imunizante recebeu o nomebetsesportivaBCG, sigla para BacilobetsesportivaCalmette e Guérin.
O sonho da dupla virou realidade há cem anos:betsesportiva1921, uma criança cuja mãe havia morridobetsesportivatuberculose alguns dias antes recebeu a primeira dose dessa vacina no Hospital Charité,betsesportivaParis.
Travessia cheiabetsesportivadesafios
Nos anos seguintes, Calmette e Guérin resolveram distribuir seu invento para institutosbetsesportivapesquisabetsesportivavárias partes do mundo.
E é justamente nessa hora que Julio Elvio Moreau entrabetsesportivacena: o cientista uruguaio trabalhava no Instituto Pasteur e ficou responsável por trazer o imunizante para a América do Sulbetsesportiva1925.
Os artigos científicos que revivem essa história destacam que ninguém sabe ao certo o anobetsesportivanascimento oubetsesportivamorte desse personagem histórico, tampoucobetsesportivacidade natal.
O médico Luiz Roberto Castello Branco, atual diretor científico da Fundação AtaulphobetsesportivaPaiva, no RiobetsesportivaJaneiro, acrescenta que, até hoje, não foram encontrados registros fotográficosbetsesportivaMoreau oubetsesportivasua passagem pelo Brasil.
"Nós já procuramos essas informações. Historiadores da CasabetsesportivaOswaldo Cruz também tentaram, mas não acharam muita coisa", atesta.
O que temos à disposição são relatosbetsesportivaque o cientista saiu da França, pegou um navio, cruzou o Atlântico e desembarcou no RiobetsesportivaJaneiro.
"E podemos imaginar a dificuldade que ele enfrentou durante a viagem", raciocina Castello Branco.
Na décadabetsesportiva1920, ir da Europa ao Brasil não era tarefa fácil: a embarcação podia levar até 40 dias para completar o trajeto.
E vamos combinar que Moreau levava a tiracolo uma carga preciosíssima. Falamos aquibetsesportivaculturasbetsesportivabactérias vivas, que exigem cuidado e atenção constantes.
Castello Branco explica que a BCG ficava armazenada num meiobetsesportivacultura líquido, numa espéciebetsesportiva"nata" (ou camada mais grossa) que se formava no topo dos recipientes.
Para sobreviver, essas bactérias precisambetsesportivaestabilidade: se a tal da "nata" é agitada, ela se mistura com as substâncias do vasilhame e perde a consistência. Com isso, os micro-organismos podem morrer.
Em outras palavras, movimentos constantes atrapalhariam a viabilidade das vacinas que seriam produzidas.
"E podemos imaginar o quanto balançava um navio naquela época", completa o médico.
Outro desafio grande era a manutenção dos meiosbetsesportivacultura, que precisam ser trocados a cada 28 dias.
O cientista uruguaio, portanto, teve que tomar esses cuidados ao longobetsesportivatoda a viagem, mesmo sem contar com a estruturabetsesportivaum laboratório.
Chegada no Rio
Apesarbetsesportivatodos os desafios, Moreau cumpriubetsesportivamissão e desembarcou no RiobetsesportivaJaneiro com a carga intacta.
Ele entregou as cepas da BCG e a receitabetsesportivacomo preparar a vacina para o médico ArlindobetsesportivaAssis (1896-1966), que à época trabalhava no Instituto Vital Brazil,betsesportivaNiterói, e na FaculdadebetsesportivaMedicina da futura Universidade Federal Fluminense.
E aqui há um detalhe curioso: lembra que o Instituto Pasteur mandou amostras do imunizante para vários lugares do mundo?
Como esses materiais eram feitosbetsesportivabactérias vivas atenuadas,betsesportivacada local os micro-organismos sofreram modificações e desenvolveram características próprias.
Em razão disso, cada uma dessas cepas ganhou um nome diferente. Hoje temos, por exemplo, a BCG Connaught, a Pasteur, a Tice…
"Em homenagem ao cientista uruguaio, a versão brasileira recebeu o nomebetsesportivaMoreau-RiobetsesportivaJaneiro, uma ideia muito cavalheiresca do ArlindobetsesportivaAssis", completa Castello Branco.
Com a entrega feita, Moreau parece ter voltado direto para a França, sem passar por outros países. Os motivos que o fizeram encurtar a estadia pelo nosso continente seguem um mistério.
Uma vacina para chamarbetsesportivanossa
Com os ingredientes e a receitabetsesportivamãos, Assis começou a trabalhar nos experimentosbetsesportivaterritório nacional e fez testesbetsesportivacoelhos e bois. Essas pesquisas aconteceram no Instituto Vital Brazil,betsesportivaNiterói.
Num estágio mais avançado, entre o final da décadabetsesportiva1920 e o iníciobetsesportiva1930, o médico transferiu a fabricação e a distribuição do imunizante para a Liga Contra a Tuberculose.
"Essa instituição tinha se formadobetsesportiva1900 e congregava pessoas da elite carioca, como médicos, advogados e religiosos. Eles se reuniam numa pensão no bairro da Glória e faziam uma sériebetsesportivaações assistenciaisbetsesportivaprevenção e tratamento dessa doença", explica Castello Branco.
Nesse mesmo anobetsesportiva1927, a primeira criança brasileira recebeu a BCG, que à época era um líquido administrado por via oral.
E nós sabemos até os nomes dos personagens envolvidos nesse momento histórico: no dia 30betsesportivaagosto, o pediatra Almir Rodrigues Madeira (1884-1972) teve o privilégiobetsesportivaaplicar a primeira dose na recém-nascida TherezinhabetsesportivaJesus Lopes.
Em 1936, a Liga Contra a Tuberculose mudoubetsesportivanome e passou a se chamar Fundação AtaulphobetsesportivaPaiva (FAP),betsesportivahomenagem a umbetsesportivaseus fundadores.
Entre 1927 e 2016, a fundação ficou responsável por fornecer 100% das dosesbetsesportivaBCG utilizadasbetsesportivaterritório brasileiro.
Mais recentemente, porém, um problema no processobetsesportivafabricação fez com que o serviço fosse interrompido após décadas e o país precisasse comprar doses dessa vacina no exterior.
Um esforço do tamanho do Brasil
Nas primeiras décadas, a aplicação da BCG na população era muito irregular e dependia da ação dos Estados e das cidades.
"Não existia uma coordenação nacional e esse trabalho estava vinculado aos centros locais, como era o caso da Fundação AtaulphobetsesportivaPaiva, no RiobetsesportivaJaneiro, e o Instituto Butantan,betsesportivaSão Paulo", descreve Castello Branco.
A coisa começou a mudarbetsesportivafigura a partir da décadabetsesportiva1970, com a criação do Programa NacionalbetsesportivaImunização.
"A obrigatoriedade da aplicação da BCGbetsesportivatodas as crianças brasileiras, determinada pelo Governo Federal, existe desde 1976", detalha a médica Susan Martins Pereira, do InstitutobetsesportivaSaúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia.
"Essa vacina é aplicadabetsesportivadose única,betsesportivapreferência logo após o nascimento. Em algumas regiões do Brasil, isso acontece ainda na maternidade", aponta o médico Renato Kfouri, presidente do DepartamentobetsesportivaImunizações da Sociedade BrasileirabetsesportivaPediatria.
E essa pressa toda tem motivo: estima-se que maisbetsesportivaum terço da população mundial tenha o Mycobacterium tuberculosisbetsesportivaseu organismo (na grande maioria das vezes, essa bactéria não causa nenhum mal, pois o sistema imune está funcionando bem e impede o desenvolvimentobetsesportivaqualquer doença).
O objetivo, então, é proteger o bebê o mais rápido possível, pois há o riscobetsesportivaele entrarbetsesportivacontato com o agente infeccioso logo cedo, durante a interação com os pais e todas as pessoas ao redor.
Vale destacar ainda que a décadabetsesportiva1970 marcou uma outra mudança importante na aplicação desse imunizantebetsesportivanosso país: antes, ele era administrado via oral e, a partir dessa data, a versão injetável foi adotada.
É ela, inclusive, que deixa aquela pequena marca no braço direitobetsesportivamuita gente pelo resto da vida.
Uma vacina, muitos avanços
Nessa experiênciabetsesportivaum século, a BCG é aplicadabetsesportivamaisbetsesportiva100 milhõesbetsesportivacrianças todos os anos e coleciona uma sériebetsesportivaconquistas e resultados.
Ela está, inclusive, na listabetsesportivamedicamentos e insumos essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS).
"As estatísticas mundiais nos mostram que essa vacina reduzbetsesportiva90% as formas mais graves da doença, principalmente a meningite tuberculosa [que afeta uma das membranas que envolve o cérebro]", resume Pereira.
Que fique claro: a exemplobetsesportivaoutros imunizantes, a BCG não previne a infecçãobetsesportivasi, mas diminui consideravelmente o riscobetsesportivacomplicações, que estão relacionados à hospitalização e morte prematura.
É curioso notar como o uso dessa vacina também revela a disparidade social entre diferentes partes do mundo: enquanto ela nem é mais usada rotineiramente nos países mais ricos, como os Estados Unidos e boa parte da Europa, ela continua imprescindível na América Latina, na África e no Sudeste Asiático.
Isso ocorre porque a tuberculose está controlada há décadas nas nações mais desenvolvidas, mas continua a ser um tormento nas regiões pobres do planeta: até a chegada da covid-19, ela era a doença infecciosa mais mortal, deixando para trás outras fortes concorrentes, como a malária e a aids.
"Temos que lembrar que essa enfermidade ainda mata 1,4 milhãobetsesportivapessoas todos os anos e está diretamente relacionada à vulnerabilidade social, miséria, fome e pobreza", destaca o pediatra e infectologista Marcio Nehab, do Instituto NacionalbetsesportivaSaúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/FioCruz).
Desde 2010, o Brasil contabiliza cercabetsesportiva60 mil casos e 4,5 mil óbitos por tuberculose todos os anos. Segundo o Ministério da Saúde, nosso país figura na lista das 30 nações mais atingidas por essa doença, apesarbetsesportivaa prevenção, o diagnóstico e o tratamento estarem disponíveis na rede pública.
Mil e uma utilidades
Por fim, é curioso notar que a BCG não se limita à tuberculose: ela também está indicadabetsesportivaprogramasbetsesportivacontrolebetsesportivaoutras doenças infecciosas, como a hanseníase e a leishmaniose.
E ela pode ajudar até no combate ao câncer: um dos tratamentos disponíveis há maisbetsesportiva30 anos para tumores na bexiga envolve aplicar a vacina diretamente nesse órgão do sistema urinário.
A explicação para essa ampla gamabetsesportivapossibilidades está na forma como o imunizante ativa nossas células imunológicas.
"Essa vacinação tem um efeito indireto,betsesportivamontar uma espéciebetsesportivadefesa global contra outros agentes. É como se nosso sistema imune criasse uma resposta mais ampla, e não apenas contra a tuberculose", destrincha Nehab.
No caso do câncerbetsesportivabexiga (que não está relacionado com uma doença infecciosa, diga-se), esse imunizante consegue ativar nossas célulasbetsesportivadefesa no local, que então passam a atacar o tumor.
E, diantebetsesportivatantas evidênciasbetsesportivaversatilidade, alguns pesquisadores começaram a questionar se a BCG poderia ajudarbetsesportivaalguma maneira contra a covid-19.
Essa possibilidade foi aventada aindabetsesportiva2020, quando produtos específicos capazesbetsesportivafazer frente ao coronavírus responsável pela pandemia atual não passavambetsesportivauma hipótese.
E foi assim que surgiu o Brace Trial, um estudo que aplicou essa vacinabetsesportiva6,8 mil profissionais da saúde na Austrália, no Brasil, na Espanha, na Holanda e no Reino Unido.
"Estamos acompanhando os voluntários durante seis meses e esperamos ter os resultadosbetsesportivasetembro deste ano", informa o infectologista Julio Croda, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e investigador principal do Brace Trial no Brasil.
Independentementebetsesportivaquais sejam os resultados dessa pesquisa, uma coisa é certa: com um séculobetsesportivaserviços prestados e muitas epopeias pelo caminho, não podemos nunca subestimar a capacidadebetsesportivaa BCG nos surpreender.
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