Por que a teoria do 'boi bombeiro' no Pantanal, citada por Salles e Tereza Cristina, é mito:

O argumento é que proibições às queimadas preventivasfazendas ereservas ambientais provocaram o acúmulomatéria orgânica (mato, galhos e folhas secas), que depois serviucombustível para os incêndios.

Essas teorias, porém, não procedem. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que a criaçãogado aumentou no Pantanal nos últimos anos, ao invésdiminuir — o que contradiz a ideiaque o boi pantaneiro seria fundamental para impedir incêndios.

Além disso, a queima preventiva não foi proibida totalmente nos últimos dois anos — só foi restrita pelos governos estaduais durante a estação seca, seguindo orientações do próprio Ministério do Meio Ambiente. E área coberta por unidadesconservação na região é ínfima,menos5% do bioma.

Na verdade, um dos principais motivos para os incêndios é o clima: o Pantanal vive a pior seca dos últimos 60 anos, segundo o Centro NacionalMonitoramento e AlertasDesastres Naturais (Cemaden).

As queimadas no Pantanal neste ano são consideradas as pioresdécadas. Cerca26% da área do bioma já foi consumida pelo fogo até agora. A labaredas já destruíram uma área33 mil quilômetros quadrados no bioma — o equivalente a quase seis vezes a área do Distrito Federal.

Argumentos do governo

"O que aconteceu com o Pantanal? Eles estão há dois anos sem fazer o 'fogo frio' (queima controlada), que (é) esse fogo preventivo, o manejo preventivo do fogo. Por questões ideológicas, questões administrativas", disse Salles no dia 13agosto,entrevista ao canal do YouTube deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

"Segundo aspecto que também foi chamada a nossa atenção lá: cada vez mais vem se perseguindo a criaçãogado solto no Pantanal. Só que é o gado solto que come o capim. Então, diminui também essa massa orgânica (inflamável). E você não deixarcriar gadomaneira extensiva lá também propiciou um aumento substancial desse material orgânico", disse o ministro do Meio Ambiente — sem, no entanto, mostrar evidênciasque a criaçãogado na região tenha diminuído.

O mesmo discurso é adotado pelo presidente da República. "Se o gado não come capimdeterminadas áreas, acumula capim seco e graveto sem vida e, quando vem o fogo (...), vai embora", disse Bolsonarouma live no fimagosto.

Na verdade, tanto Bolsonaro quanto o ministro ecoam uma tese defendida pelo agrônomo e pesquisador da Embrapa EvaristoMiranda, atual chefe da Embrapa Territorial.

Em entrevista à rádio Jovem Pan no fimagosto, Miranda culpou o declínio da pecuária no Pantanal e a criaçãoreservas ambientais na região pelo fogo. "Quando a pecuária declina, por razões econômicas,competitividade etc., quando se retira o boi, como se retirougrandes reservas que se criaram na região, reservas ecológicas, a RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural) do Sesc Pantanal, o que acontece nesses lugares, tirando o gado e cercando? O capim cresce muito e acumula muita massa vegetal. Na horaque pega fogo, é um fogo muito intenso", disse ele.

A reportagem da BBC News Brasil procurou o Ibama e o Ministério do Meio Ambiente para comentários sobre o assunto, mas até o momento não houve resposta.

Rebanho aumentou e pastagens também

Especialistas ouvidos pela BBC dizem que o gado criado solto ajuda,fato, a reduzir a quantidadematéria prima disponível para queima — mas não é a redução na pecuária que explica os incêndios deste ano.

Os dados da Pesquisa Pecuária Municipal do IBGE sobre os rebanhos bovinosMato Grosso e Mato Grosso do Sul nas últimas décadas e as informações do Instituto NacionalPesquisas Espaciais (INPE) sobre os focoscalor no bioma Pantanal não indicam que haja correlação entre uma coisa e outra.

Segundo os técnicos, há pelo menos dois problemas com a teoria do "boi bombeiro".

O primeiro é que o rebanho bovino no Pantanal está crescendo nos últimos anos, ao invésdiminuir. Além disso, no caso da reserva natural citada por Miranda, o fogo teria começado justamenteuma fazendacriaçãogado, segundo perícia — e não na áreapreservação.

"Os dados da Pesquisa Pecuária Municipal, que engloba 22 municípios no MT e MS que fazem parte do Pantanal, apontam um crescimento do rebanho, e não uma redução. O último dado é2018, mas ele vem crescendo desde os anos 1999. Nos últimos 19 anos, está crescendo. Então, não tem nenhuma lógica dizer que diminuiu a criaçãoboi no Pantanal", diz o engenheiro florestal e coordenador do projeto Mapbiomas, Tasso Azevedo.

Segundo Tasso, o que está acontecendofato no Pantanal é uma substituição das pastagens naturais — que fazem parte do bioma — por pastagens plantadas, com espéciescapim estranhas ao ecossistema.

"Quando você usa a pastagem natural, o gado precisa se moverum lado para o outro, conforme a época do ano. Então, para fazer uma pastagem mais intensiva, você faz essa conversão (das pastagens nativas para plantadas)", diz ele.

"Essas pastagens plantadas (com espécies exóticas) não têm a mesma dinâmica (em relação ao fogo) que as pastagens naturais. E a interface delas junto ao fogo é que pode explicar melhor o que está acontecendo lá", diz Tasso.

"Segundo dados do Mapbiomas, entre 1999 e 2019 a coberturavegetação nativa no Pantanal caiu 7%, reduzindo13,1 milhõeshectares, para 12,2 milhõeshectares", detalha Vinícius Silgueiro, que é coordenadorinteligência territorial do Instituto CentroVida (ICV).

"Já a áreapastagem exótica cresceu 64% sobre áreas naturais, passando1,4 milhõeshectares, para 2,3 milhõeshectares. Nesse mesmo período, o rebanhobovinos no Pantanal aumentou 38%,6,9 milhões para 9,58 milhõescabeças", disse Vinícius à BBC News Brasil, por meiomensagemtexto.

"Ainda que ele tenha crescido no Pantanal, proporcionalmente, o rebanho bovino aumentou maisoutras regiões do estado. Mas, por razões econômicas, e não por restrições ambientais específicas do Pantanal. E isso, como mostram os dados, vem se consolidando a mais20 anos, e não nos últimos 2 anos", acrescenta ele, que é engenheiro florestal.

"O município com maior rebanho bovinotodo Mato Grosso, com mais1 milhãobovinos, segundo dados do IBGE, é justamente Cáceres, um município pantaneiro. TambémPoconé, o efetivo bovino, que tem maismeio milhãocabeças, é o maior desde 1974 e cresceu 48% nos últimos 11 anos", pontua ele.

'O problema não é o boi, é o dono', diz agrônomo

Engenheiro agrônomo e doutorgeografia pela UniversidadeSão Paulo (USP), Felipe Augusto Dias é taxativo sobre a possibilidade dos incêndios estarem ligados à saída dos bovinos. "Essa relação não existe", diz ele.

Dias explica que o fogo é uma das ferramentasmanejo usadas na pecuária.

"O que existe é que toda atividade pecuária necessita ter um bom manejo. Manejo significa o quê? É utilizar, dentrouma áreapasto, a capacidadeunidade animal por hectare naquele pasto. Ou seja, cada pasto tem a capacidadesuportar, por hectare, uma quantidade determinadaboi pastando", diz ele. Se a quantidadebovinos for maior (ou menor) que o necessário, a pastagem se torna imprestável com o tempo, explica o agrônomo.

"Então, o problema do boi-bombeiro não está no boi. Está no dono. Se o dono não tem, naárea, o manejo adequado, ele vai depois usar a ferramenta, que é o fogo, para melhorar o seu pasto. Então essa relação depende muito da atividade ser bem feita", diz ele.

"Eu não sou contra o uso do fogo no manejo da pastagem no Pantanal. Sou contra o uso no momento inadequado. Para fazer esse uso você tem que ter um certo nívelumidade, a temperatura mais amena, para você queimar o pasto num período adequadomodo a evitar grandes incêndios", explica.

Clima é o principal componente, diz biólogo

O biólogo André Luiz Siqueira diz que o principal determinante para as queimadas na região é o clima — e não a criaçãogado ou as áreaspreservação.

"O que existe (da parte das autoridades) é um desconhecimento completo do que se passa no Pantanal. O ciclo hidrológico é o que rege o que se passa naquele ambiente. (...) Estamos tendo eventos climáticos extremos nos últimos dois anos, que têm agravado a situação", diz ele.

"O principal reguladordesmatamento e queimadas no Pantanal (...) sempre foi a água. Sempre foi o ciclo hidrológico. É a maior zona inundável permanente do mundo", diz ele, acrescentando que a região enfrenta a pior estiagem60 anos.

"Quando se tem cheias regulares ou boas, milhareshectares são inundados e seguram durante muito tempo o fogo que é feito pelos proprietários rurais. Por não termos isso, é óbvio que se expandiu o fogo. De uma forma que não teve como segurar, porque o Pantanal estava seco", diz Siqueira, que é presidente da Ecoa, uma organização não governamental.

"Então esse é o principal ponto. Nós não tivemos o período úmido e chuvoso para fazer a queima prescrita (...). E outra: não foi feita, também, por faltarecursos (inclusive do governo federal). Então todo o trabalhoprevenção e controle começoujunho2020, no auge já das secas", diz.

O biólogo conta o casouma unidadeconservação apoiada pela Ecoa no municípioLadário (MS): a organização pagou para manter equipesbrigadistas atuando na áreajunho deste ano, no auge da seca, porque o repasse do governo federal para o Prevfogo ainda não tinha sido feito. Segundo ele, situaçõesatraso como estas também aconteceram no ano passado.

"É claro que isso é uma ferramenta (a queima controlada) que é fundamentalser utilizada. Mas estão descontextualizando tudo, e fazendo uma análise muito simplificada e superficial dessa relação", diz ele.

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