A 'legalização silenciosa' da maconha medicinal no Brasil:casa betano

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Legenda da foto, 'Quando a Justiça nega o cultivo associativo, está impedindo que pessoas mais pobres acessem o remédio mais barato", diz Felipe Farias, presidente da Reconstruir

Apesarcasa betanouma lei aprovadacasa betano2006 já prever o uso medicinal da maconha, a faltacasa betanoregulamentação levou a recentes decisões judiciais autorizando pacientes a cultivar cannabis para tratar diversas patologias, como autismo, epilepsia, Alzheimer, depressão, ansiedade e enxaqueca crônica.

Na mesma linha, duas associaçõescasa betanopacientes conseguiram autorização para cultivar e produzir remédios para seus milharescasa betanoassociados.

Essas decisões da Justiça, somadas a um maior númerocasa betanoprescrições médicas e à diminuição da burocracia para importaçãocasa betanoremédios, estão criando uma espéciecasa betano"legalização silenciosa" da maconha medicinal no Brasil. O resultado foi o florescimento desse mercado nos últimos meses, segundo médicos, pacientes, advogados e empresários ouvidos pela BBC News Brasil.

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Legenda da foto, A médica Ninacasa betanoQueiroz usa cannabis para preparar comida: 'Funciona muito bem para mim'

Por outro lado, quem plantar ou comercializar maconha no Brasil sem autorização da Justiça pode ser punido com prisão. Na cidadecasa betanoSão Paulo, por exemplo, 35 pessoas foram detidascasa betanoflagrante por cultivar a planta dentrocasa betanocasa desde 2017, segundo dados obtidos via Leicasa betanoAcesso à Informação. Isso sem contar os milharescasa betanopresos por tráficocasa betanodrogas — hoje, esse é o crime que mais leva pessoas aos presídios brasileiros.

Já no casocasa betanoNina, por exemplo, a Justiça concedeu a ela um habeas corpus preventivo,casa betanocaráter provisório, que a resguarda do riscocasa betanoser presa e processada por cultivar uma planta proibida no país.

"Sempre tive muito preconceito com cannabis. Minha geração foi preparada para enxergar a maconha como algo ruim, usado por gente que não queria nada com a vida. Precisei enfrentar esse preconceito, porque nenhum medicamento que usei, e foram vários, funcionou para meu problema", diz a médica.

CBD importado

No últimos anos, diversos estudos científicos apontaram que substâncias extraídas da cannabis, como o canabidiol (CBD) e o tetra-hidrocanabidiol (THC), seu princípio psicoativo, podem ser usados para fins medicinais,casa betanoterapias para pacientes com dores crônicas e outras enfermidades graves, como câncer, epilepsia e fibromialgia.

Apesar disso, profissionais e algumas entidades médicas, como o Conselho Federalcasa betanoMedicina (CFM), acreditam que mais estudos clínicos e pesquisascasa betanolongo prazo são necessários para garantir a eficácia e a segurança do uso da cannabis no tratamentocasa betanodoenças. O CFM orienta que médicos não receitem THC, por exemplo. No caso do CBD, a entidade recomendou apenas o uso "compassivo", ou seja, ele só deve ser receitado depois que todas as alternativas tradicionais já tenham sido testadas pelo paciente.

O plantiocasa betanocannabis para uso medicinal e científico já é previsto no Brasil desde 2006, por meio da lei 11.343, a chamada Leicasa betanoDrogas, aprovada no governo Luiz Inácio Lula da Silva. Mas pouco se avançou nacasa betanoregulamentação até o início desta década.

Foi quando pais e mãescasa betanocrianças com epilepsia grave pressionaram o governo e entidades médicas, pedindo autorização para usar derivados da cannabis: os únicos medicamentos que funcionavam para diminuir a incidência dos espasmos e melhorar a qualidadecasa betanovida das crianças.

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Legenda da foto, Associação canábica paraibana Abrace Esperança fornece remédio à basecasa betanomaconha para 3 mil brasileiros

Em 2014, a Anvisa passou a autorizar a importaçãocasa betanoremédioscasa betanoCBD, mas trazer o produto custava caro, tornando a medicação inviável para famílias mais pobres. Jácasa betanodezembrocasa betano2019, a entidade regulamentou a pesquisa, produção e vendacasa betanoremédios no país por parte da indústria farmacêutica, embora as plantas ainda precisem ser trazidas do exterior. O principal medicamento com permissão para vendacasa betanofarmácias — e que tem CBD isolado — custa maiscasa betanoR$ 2 mil.

Por outro lado, a última resolução facilitou a importação, processo que demorava até 90 dias para ser autorizado.

"Até dezembro, o paciente precisava fazer o pedido na Anvisa com uma receita, um termocasa betanoconsentimento e um relatório citando outros remédios que ele já havia tomado, alémcasa betanoreferências bibliográficas com um artigo científicocasa betanoimpacto. Na prática, muitos médicos não receitavam por preguiça dessa burocracia", explica a médica nutróloga Patrícia Savoi, que atua com cannabis medicinal desde 2015.

Agora, esse relatório detalhado não é mais necessário, e a Anvisa costuma autorizar a importaçãocasa betanoaté 10 dias. Segundo a agência, cercacasa betano7 mil pessoas já têm essa permissão.

Emcasa betanomaioria, pacientes com prescriçãocasa betanocannabis utilizam um óleo que contém quantidades variadascasa betanoTHC ecasa betanoCBD — extraído por meiocasa betanoum processocasa betanoevaporação com etanol. O óleo normalmente é administradocasa betanogotas sob a língua — a quantidade varia para cada pessoa. Os preços podem variarcasa betanoR$ 100 a até maiscasa betanoR$ 1 mil.

"Na quarentena, aumentaram bastante as receitas para ansiedade, depressão e insônia. As pessoas estão se informando a respeito e, às vezes, já chegam na consulta dizendo que querem usar cannabis, pois estão a fimcasa betanomudar o estilocasa betanovida", explica Savoi, que receita esse tipocasa betanoremédio pelo menos uma vez por semana.

95 cultivos autorizados

Já os habeas corpus preventivos para cultivo caseiro, como o da médica Ninacasa betanoQueiroz, têm se tornado uma das ferramentas pelas quais a legalização tem ocorrido no Brasil casa betano . Um dos grupos atuantes nesse sentido é o Reforma, que tem 26 advogadoscasa betanonove Estados. Estima-se que metade das 95 permissões para autocultivo tenham passado pelas mãos dos profissionais do grupo.

Segundo Emilio Figueiredo, advogado do Reforma, o númerocasa betanohabeas corpus concedidos vem aumentando a cada ano. Foram três casoscasa betano2016, mais novecasa betano2017 e outros 16 no ano seguinte. No ano passado, a Justiça concedeu outros 25 habeas corpus e, até julhocasa betano2020, mesmo com a pausacasa betanotribunais na pandemia, já foram novas 42 permissões.

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Legenda da foto, Advogado Emílio Figueiredo acredita quecasa betanoum ano aumentocasa betanodecisões favoráveis ao cultivo vai gerar uma ondacasa betanojudicialização, como ocorreu na Califórnia (EUA)

Figueiredo explica que esse aumento se deve a uma maior sensibilidade das autoridades e uma participaçãocasa betanoadvogadoscasa betanomaneira organizada. O próprio grupo Reforma tem dado cursos ensinando como pedir habeas corpus — também está preparando um livro sobre o assunto.

"O habeas corpus atende desde pessoas da elite que plantam o remédio por uma questão ideológica e filosófica até mães periféricas e solteiras que não têm condiçõescasa betanoarcar com o tratamentocasa betanoseus filhos", afirma.

A psiquiatra Eliane Nunes, diretora da Sociedade Brasileiracasa betanoEstudos da Cannabis (Sbec), também tem dado cursos sobre maconha medicinal e obtençãocasa betanohabeas corpus na periferiacasa betanoSão Paulo. Recentemente, ela criou o projeto "Mães e Mulheres Jardineiras" — o grupo reúne cercacasa betano30 parentes e pacientescasa betanobaixa renda que estãocasa betanobusca da permissão judicial.

"O objetivo é capacitar essas mulheres para que elas tenham a documentação necessária. Outro ponto importante é que o habeas corpus é preventivo. Uma mãecasa betanoum filho com epilepsia, por exemplo, já precisa estar plantando para entrar com o pedido. Mas, para isso, ela corre riscocasa betanoser presa enquanto a decisão não sai", explica.

Consultas para cannabis

Com acesso facilitado, já existem sites no Brasil cujo modelocasa betanonegócios é agendar consultas com médicos que prescrevam cannabis e também importar o óleo e outros produtos, como pomadas e sprays.

Um dos maiores é o Dr. Cannabis, fundado há pouco maiscasa betanodois anos e que trabalha com três produtores dos Estados Unidos e da Suíça. "Antes da covid-19, a procura maior era para dores crônicas. Hoje, as consultascasa betanonosso site dobraram com a pandemia, principalmente para ansiedade e insônia", explica Viviane Sedola, fundadora e CEO da empresa.

O site tem 1,2 mil médicos cadastrados, como psiquiatras e nutrólogos. "Percebemos que muitos profissionais nem sabem que podem prescrever cannabis nem conhecem os benefícios que ela tem para os pacientes. Hoje, o problema da cannabis é maiscasa betanocomunicação do que científico", diz a empresária.

Porém, nem tudo são flores no uso medicinalcasa betanomaconha no Brasil. Um dos problemas é a qualidade do óleo utilizado pelos pacientes. Embora existam maneirascasa betanoimportar legalmente medicamentos testados, há dezenascasa betanooutras opções cuja composição e procedência são no mínimo desconhecidas.

Com exceção dos pacientes com habeas corpus ecasa betanoduas associações, mais ninguém tem permissão da Justiça para plantar e produzir o óleo no Brasil. Mas isso não impede que ele seja vendido ilegalmentecasa betanograndes sitescasa betanoe-commerce e nas redes sociais, com entrega pelo correio. Esse tipocasa betanovenda é considerado tráficocasa betanodrogas.

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Legenda da foto, Justiça concedeu 95 habeas corpus para plantiocasa betanomaconha no Brasil; 42 deles apenas neste ano

"Os óleos têm concentrações diferentescasa betanoTHC ecasa betanoCBD, por isso é muito importante o paciente saber o que está usando. E cada um precisa regular o usocasa betanoacordo comcasa betanopatologia. O CBD, que causa um relaxamento do corpo e acalma, quase não tem efeitos colaterais. No máximo, causa um poucocasa betanosono e uma leve quedacasa betanopressão", explica a médica Patrícia Savoi.

"Já o THC é bom para dores crônicas fortes, depressão e anorexia, pois ele aumenta o apetite. Mascasa betanograndes quantidades pode causar sintomas psicóticos. Não é recomendável dar altas quantidadescasa betanoTHC para menorescasa betano18 anos, que ainda estãocasa betanodesenvolvimento, nem para uma pessoa esquizofrênica."

Para o psiquiatra Pietro Vanni, o óleo com alta concentraçãocasa betanoTHC não é comum no Brasil, mas é necessário ficar atento a produtos feitoscasa betanomaneira inadequada. "Com o boom desse mercado, pode ter gente querendo se aproveitar para criar e vender óleoscasa betanomá qualidade, sem controlecasa betanodosagem, com agrotóxicos, fungos por má conservação e até outros produtos químicos tóxicos", diz.

A psiquiatra Eliane Nunes, que tem 500 pacientescasa betanocannabis, concorda que é preciso ter mais certeza sobre a qualidade dos remédios. "A verdade é que o está no rótulo nem sempre é o que está dentro do frasco. Como cada planta écasa betanoum jeito, cada lotecasa betanoóleo vendido pode ter uma composição diferente", explica.

Associações que cultivam

Além dos habeas corpus preventivos individuais, a Justiça já autorizou duas associaçõescasa betanopacientes a cultivar cannabis sativa no Brasil: a paraibana Abrace Esperança e a Apepi, no Riocasa betanoJaneiro. E há outras pleiteando a mesma decisão.

A Abrece conseguiu autorizaçãocasa betano2017 — ela produz medicamentos para 3 mil pacientescasa betanoepilepsia, Parkinson, Alzheimer e autismo.

Já a carioca Apepi, que já tem mil associados, entrou na Justiça Federalcasa betanosetembro do ano passado, e teve parecer favorável do Ministério Público Federal (MPF) e apoio da Fundação Oswaldo Cruz. A decisão permitindo o plantio saiucasa betanojulho.

Segundo Ladislau Porto, advogado e coordenador da associação, durante o processo, a entidade decidiu fazer algo "ilegal": aumentar o cultivocasa betanomaconha para outros pacientes a partir do habeas corpus individual obtido porcasa betanofundadora, a ativista Margarete Brito, mãe da garota Sofia, que sofre da síndrome CDKL5 — um problema raro que causa convulsões e prejudica o desenvolvimento.

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Legenda da foto, No Brasil, milharescasa betanopacientes utilizam medicamentos à basecasa betanocannabis para algumas doenças, como epilepsia, autismo e Parkinson

"Foi um desobediência civilcasa betanobenefíciocasa betanopessoas que precisam muito do remédio. A estratégia foi sensibilizar o juiz para o fatocasa betanoque nós poderíamos ser presos por tráficocasa betanodrogas caso houvesse uma operação policial. O juiz foi muito sensível: eles nos ouviu várias vezes e entendeu que vivemos um momentocasa betanomudançacasa betanorelação à cannabis."

Na decisão, o magistrado Mario Victor Bragacasa betanoSouza afirmou que, embora já existam diversos estudos comprovando a eficácia da planta no tratamentocasa betanodoenças graves, a União e a Anvisa permaneceram "absolutamente inertes quanto a quaisquer iniciativas" para suprir o problema, escreveu.

E completou: "Daí porque continua se mostrando relevante a atuação do Poder Judiciário neste campo, onde a administração parece preferir não se imiscuir,casa betanomodo a garantir o exercíciocasa betanodireitos já estabelecidoscasa betanolei, obstaculizados pela simples faltacasa betanoregulamentação".

No entanto, a própria Justiça Federal tem dado decisões conflitantes sobre o mesmo tema. Tambémcasa betanojulho, outra associaçãocasa betanopacientes, a ONG Reconstruir, do Rio Grande do Norte, teve seu pedido negado pelo juiz federal Janilson Bezerracasa betanoSiqueira — o MPF também se posicionou a favor da liberação nesse caso.

Para o magistrado, não deve ser o Judiciário a decidir sobre o tema, e sim o Legislativo ou órgãos reguladores, como a Anvisa. Ele também argumentou que estudos "contraditórios"casa betanorelação à eficácia do medicamento sugerem "temor" e "potenciais danos" ao bem-estar dos pacientes. A ONG vai recorrer.

"Hoje a cannabis já está liberada no país, mas para quem pode pagar maiscasa betanoR$ 2 mil na farmácia. Quando a Justiça nega o cultivo associativo, está impedindo que pessoas mais pobres acessem o remédio mais barato e tenham seu direito à saúde respeitado", diz Felipe Farias, presidente da Reconstruir.

Desde o início do processo, a ONG interrompeucasa betanoplantação, temendo operações policiais. Segundo Farias, os pacientes da entidade têm recorrido à importação do óleo, a compra do CBDcasa betanofarmácias e até ao tráficocasa betanodrogas comandado por facções criminosas.

Medicinal X recreativo

Para o advogado Emilio Figueiredo, do grupo Reforma, o aumentocasa betanodecisões favoráveis ao cultivo vai gerar uma ondacasa betanojudicialização, como ocorreu no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos. "A gente está num caminho da consolidação do cultivo doméstico para uso terapêutico. Hoje não se falacasa betanojurisprudência consolidada, mascasa betanocasos precedentescasa betano1ª e 2ª instâncias. Acredito que essa jurisprudência ocorra em, no máximo, um ano", afirma.

A defensora pública federal Tarcila Maia Lopes concorda: "A judicialização tende a aumentar. As pessoas estão ficando mais conscientes e menos preconceituosas. Ainda existe uma carga negativa muito fortecasa betanorelação à cannabis, mas ela está sendo gradualmente desfeita a partir desses casos individuaiscasa betanosucesso", diz ela, que atuacasa betanoprocessoscasa betanohabeas corpus pela Defensoria Pública da União.

Já o advogado Ladislau Porto, da Apepi, acredita que o chamado uso recreativo da maconha também deve ser relativizado — a descriminalização da possecasa betanopequenas quantidadescasa betanodrogas para consumo próprio ainda estácasa betanoanálise no Supremo Tribunal Federal, com três votos já favoráveis ao fim das punições.

"Existe essa discussão sobre o que são os usos medicinais e recreativos. As pessoas também usam maconha para ficar bem, mesmo que não estejam doentes. A Organização Mundial da Saúde diz que o bem-estar também é saúde. Conheço advogados e outros profissionais que frequentemente usam maconha durante o expediente para conseguir trabalhar melhor, para diminuir a ansiedade e o estresse. Isso é uso recreativo ou medicinal? Para mim, a maconha deve ser classificada como fitoterápico. Essa é uma questão que terácasa betanoser encarada", diz.

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