Pandemiacoronavírus evidencia 'velhofobia' no Brasil, diz antropóloga:
"Esse tipodiscurso já existia antes da pandemia: os velhos são considerados inúteis, desnecessários e invisíveis. Mas agora está mais evidente. Políticos, empresários e até o presidente da República já vieram a público dar declarações 'velhofóbicas'", diz Goldenberg (em março, o presidente Jair Bolsonaro chegou a defender apenas o isolamento da população idosa, evezda populaçãogeral).
"Homens e mulheres mais velhos, que já experimentam uma espécie'morte simbólica', ficam desesperados ao constatar que são considerados um peso para a sociedade", acrescenta Goldenberg, que diz ainda que "muitos dos que disseminam o discursoódio eextermínio dos mais velhos já passaram dos 60 anos".
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - A s ra diz que a pandemia tornou evidente a 'velhofobia'. Mas o que é exatamente essa velhofobia?
Mirian Goldenberg - Me refiro ao termo 'velhofobia' para descrever não só os preconceitos, estigmas e tabus associados ao envelhecimento, mas também o pânicoenvelhecer que, no Brasil, é muito mais forte do que na Europa, por exemplo. Outros especialistas usam denominações diferentes, como ageísmo, idadismo ou gerontofobia. Mas eu prefiro velhofobia porque todo mundo entende do que estou falando.
O que temos visto nesta pandemia são discursos que chamovelhofóbicos se generalizando. Políticos, empresários e até o presidente da República já disseram que 'não se pode deixar a economia parar' e que os jovens 'têm que voltar a trabalhar'. Ou até que os velhos vão morrer 'mais cedo ou mais tarde'.
Estamos assistindo horrorizados a discursos sórdidos, recheadosestigmas, preconceitos e violências contra os mais velhos.
BBC News Brasil - Mas esse preconceito contra os idosos já não existia?
Goldenberg - Sim. Mas nãoforma tão explícita. Os velhos sempre foram vistos como um peso para a sociedade, ou seja, já experimentam o que chamo'morte simbólica'. O valor que se dá a essas pessoas mais velhas é quase nulo, socialmente e dentrocasa.
Ocorre que, agora, isso ficou mais evidente.
Temos visto isso não só nos discursosque os velhos devem morrer para a epidemia acabar logo mas tambémmemes zombando deles, dizendo que eles são teimosos e desobedientes, como se fossem crianças malcomportadas.
BBC News Brasil - Mas por que a 'velhofobia' ficou mais evidente, naopinião?
Goldenberg -O preconceito sempre existiu, mas numa situaçãoque os velhos não estavam tão vulneráveis.
Agora, estão fragilizadosduas formas:um lado, são a populaçãomaior risco. De outro, perderam seu bem mais precioso: a liberdadeir e vir.
Antes, podiam ir ao supermercado, à farmácia, dar a volta na praça, frequentar o teatro, o cinema, encontrar com os amigos.
Mas já não podem mais. Estãouma prisão que não tem data nem hora para terminar.
Há cinco anos, venho acompanhando o dia a diahomens e mulheres90 a 103 anos. Todos lúcidos, ativos e saudáveis. Eles estão desesperados. Têm dificuldade para compreender uma realidade que não fazia parte da vida deles antes do isolamento.
Alémtudo isso, precisam enfrentar todo esse discursoódio. Imagine ligar a TV e escutar pessoas que pregam amorte 24 horas por dia.
BBC News Brasil - Qual tipoabordagem a s ra acha que deveria ser a mais correta?
Goldenberg - Tenho tentado fazer as pessoas escutarem os mais velhos. Esse é meu propósito desde que começou essa pandemia. Não dá para ficar dando ordem. Precisamos compreender a a realidade deles e juntos com eles encontrar alternativas para amenizar essa situação,forma que eles não vivam como se estivessem numa prisão.
Isso seria uma morte antecipada para eles.
Ligue para eles, faça atividades junto com eles. Faça com que eles se sintam vivos, úteis, amados, cuidados.
E que eles também possam cuidar da gente.
Quando meu melhor amigo, Guedes (de 97 anos), me liga desesperado, alarmado sobre a quantidadecaixões na Itália, eu lhe digo: 'Você não pode fazer nada por quem está lá, mas cuidemim aqui'. E ele se sente importante. Não estou dando ordem. É ele quem está tomando uma decisãocuidarsi mesmo,mim eoutras pessoas.
Meu maior temor é como os idosos vão sobreviver emocionalmente durante esta pandemia. Essa é a maior angústia deles.
Por fim, temos que entender que os velhos não são um fardo para a sociedade. Conheço inúmeros casosvelhos cujo filho é alcoólatra, a filha está com câncer, o neto tem depressão. E são eles que cuidam deles, não só financeiramente.
BBC News Brasil - A s ra diz que "muitos dos que disseminam o discursoódio eextermínio dos mais velhos já passaram dos 60 anos". Por quê?
Goldenberg - É urgente que todos aprendam uma lição importante: a única categoria social que une todo mundo é ser velho. A criança e o jovemhoje serão os velhosamanhã. Os velhofóbicos estão construindo o seu próprio destino como velhos, e também o destino dos seus filhos e netos: os velhosamanhã.
Ou seja, muitas dessas pessoas não se enxergam como velhos. A velhice é associada à imobilidade, à doença, à incapacidade, à inutilidade. Por isso ninguém se reconhece como velho, nem os próprios velhos.
BBC News Brasil - A s ra acha que esse sentimento é potencializado no Brasil?
Goldenberg - Sem dúvida. Aqui no Brasil sempre fomos a cultura da juventude, do corpo jovem. O corpo considerado belo e saudável sempre está associado à juventude.
O brasileiro fica "velho" mais cedo. Na Alemanha, uma pessoa60 anos vaibicicleta para o trabalho e falaprojetos. A idade não é importante.
Aqui, aos 30 anos, já estamos falandovelhice. Todos têm pânicoenvelhecer. Não é à toa que o Brasil está entre os países com maior númerocirurgias plásticas.
Esse pânico não é só físico, mas também simbólico. Perdemos valor para a sociedade ao envelhecermos. Tanto valor que nos tornamos descartáveis. Que podemos morrer para "salvar a economia".
É disso quando falo que a pandemia deixou a velhofobia mais evidente.
BBC News Brasil - Essa velhofobiaque a s ra fala põexeque a suposta crençaque o brasileiro seria mais benevolente com o idoso? Se na Europa, ele é colocadoum asilo, no Brasil, ele é trazido para dentrocasa...
Goldenberg -Deixe-me corrigi-lo. São os filhos - e às vezes os netos - que vão para a casa do idoso no Brasil. Não o contrário. Quantos idosos se tornaram chefesfamília no Brasil comaposentadoria? Eles bancam os filhos e netos. Vemos issotodas as classes sociais, inclusive nas comunidades carentes.
O maior índiceviolência contra o idoso está dentrocasa. Mais da metade das agressões (agressão física, verbal, psicológica e financeira) é feita por filhos e netos.
Portanto, desconheço essa suposta benevolência. A violência contra o idoso está fora e dentrocasa. E está dentrocasa porque a casa é dele, na maioria das vezes.
Imagine o que deve estar acontecendo dentromuitas casas nessa pandemia. Certamente, veremos um aumento da violência contra o idoso.
BBC News Brasil - Qual a lição a s ra aprendeu ao longo destes anos pesquisando idosos?
Goldenberg -O amor que eles têm pela vida. Tudo o que eles fizeram e ainda fazem para se manter saudáveis e lúcidos faz com que a vida deles tenha mais valor.
Não importa se vai ser mais um dois ou três anos. Mas eles têm uma ganaviver pela vida que ninguém tem.
E uma imensa gratidão por estarem vivos. É triste, portanto, ver como eles vêm sendo tratados nesta pandemia.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube ? Inscreva-se no nosso canal!
Este item inclui conteúdo extraído do Google YouTube. Pedimosautorização antes que algo seja carregado, pois eles podem estar utilizando cookies e outras tecnologias. Você pode consultar a políticausocookies e os termosprivacidade do Google YouTube antesconcordar. Para acessar o conteúdo clique"aceitar e continuar".
FinalYouTube post, 1
Este item inclui conteúdo extraído do Google YouTube. Pedimosautorização antes que algo seja carregado, pois eles podem estar utilizando cookies e outras tecnologias. Você pode consultar a políticausocookies e os termosprivacidade do Google YouTube antesconcordar. Para acessar o conteúdo clique"aceitar e continuar".
FinalYouTube post, 2
Este item inclui conteúdo extraído do Google YouTube. Pedimosautorização antes que algo seja carregado, pois eles podem estar utilizando cookies e outras tecnologias. Você pode consultar a políticausocookies e os termosprivacidade do Google YouTube antesconcordar. Para acessar o conteúdo clique"aceitar e continuar".
FinalYouTube post, 3