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AbigailAndrade: A pintora premiada quando as mulheres eram proibidas na EscolaBelas Artes no Brasil:
"Por conta dessa situação institucional, os críticos consideravam as mulheres sempre 'amadoras', porque elas não podiam se profissionalizar na instituição", destaca a pesquisadora Ana Paula Simioni Cavalcanti, que estudou a artista emtesedoutorado na UniversidadeSão Paulo (USP).
O termo era usado por críticos importantes como Luiz Gonzaga Duque Estrada e refletia a ideiaque o grande papel das mulheres estava circunscrito à esfera doméstica e que qualquer coisa fora desses limites, inclusive a pintura e a escultura, era secundário, um hobby.
E foi como "amadora" que a jovem, então com 20 anos, foi premiada na Exposição Geral1884.
As exposiçõesbelas artes eram grandes eventos sociais no Segundo Império.
Realizadas desde 1840, elas surgiram a partirduas mostras organizadas1829 e 1830 pelo pintor francês Jean Baptiste Debret, membro da missão artística francesa que chegara ao Brasil1816 e professor da Academia ImperialBelas Artes.
Foram 26 ao todo, com a participação516 artistas. A última,1884.
Dois dos cinco trabalhos que Abigail apresentou naquele ano levaram a medalhaouro1º grau: O CestoCompras e Um Canto do Meu Ateliê.
Aquela era a primeira vez que o júri especializado dava o mais alto reconhecimento da mostra a uma mulher.
Um século 'esquecida'
A trajetória da artista, apesarintensa, seria curta.
Ela morreu cinco anos depois,Paris, vítimatuberculose, semanas após dar à luz o segundo filho.
E por quase um século — por uma sérierazões que incluempolêmica biografia —, o nomeAbigailAndrade foi sendo gradualmente apagado da história da arte brasileira.
Até que,1989, um livro chamado 150 anosPintura no Brasil resgata a vida e a obra da artista.
O trabalho era do pesquisador Donato Mello Junior, feito com base no acervo do megacolecionador Sérgio Fadel, que era donoalguns quadros assinados por Abigail.
O livro ganhou uma exposição, que amplificou a "redescoberta tardia".
"Abigail, uma artista visionária sobre cuja obra pouco se sabe, exibia já naquela época uma técnica pré-modernista similar ao quemais consistente surgia então nas artes plásticas europeias", dizia uma nota no jornal O Globo23junho daquele ano.
Foi por meio dessa notícia que a museóloga e restauradoraarte Míriam AndréaOliveira soube da existência da pintora.
Há anos ela procurava uma artista daquele período — o temasua dissertaçãomestrado era as mulheres na arte no Segundo Império.
"Eu já estava quase no final, (quase) para entregar o trabalho, e não achava quadro nenhum", conta.
"Já discutia com minha orientadora porque não apareciam quadrosmulheres, porque tinha ficado apagado na história."
Até que um colecionador para quem ela trabalhava comentou sobre a nota no jornal.
"Fui na mostra e fiquei enlouquecida com a estética da obra dela."
Da elite do café ao romance com um abolicionista
AbigailAndrade nasceu no interior do RioJaneiro, na cidadeVassouras,1864.
Supõe-se quefamília fosse abastada e estivesse ligada à lavouracafé, já que aquela região concentrou a maior produção cafeeira do mundo entre 1850 e 1900.
"Do pontovista social, ela (a cultura do café) gerou uma nova aristocracia, os barões do Vale do Paraíba", diz Míriam Andréa na dissertação.
Reconstituir o pouco que se sabe sobre a biografia da pintora não foi fácil. A pesquisadora viajou a Vassouras, mas não encontrou registros sobre a família na cidade.
As informações vieramespecialistas como Donato Mello Junior, autor150 AnosPintura no Brasil, e do museólogo Arnaldo Machado, que a presenteou com uma das poucas fotos que existemAbigailAndrade — e que inspirou Um Canto do Meu Ateliê.
Não se sabeonde veio o interesse da jovem pelas artes e nem o que a levou a deixar a casa dos pais e resolver morar com uma tia na capital para estudar no LiceuArtes e Ofícios.
Para a pesquisadora Ana Paula Cavalcanti Simioni, a mudança é um dos indicativosque na jovem existia "um desejo efetivose tornar uma profissional da arte no campo da pintura — o que não era uma coisa impossível no Brasil, mas era muito rara".
"Ainda mais supondo que ela eraelite. O LiceuArtes e Ofícios não era um lugarformação para as elites."
O nomeAbigailAndrade apareceuma exposição organizada pelo liceu1882.
Um ano antes, a escola passara a aceitar mulheres entre os alunos.
A aberturavagas para o sexo feminino 25 anos depois da fundação da escola, entretanto, não foi exatamente um projetodemocratização do acesso à educação.
A ideia era qualificar as mulheres pobres para que elas pudessem contribuir para o orçamento doméstico.
"A aceitação da formação profissional das mulheres não era uma questãogênero, não havia uma valorização da intelectualizaçãosi. O que tais discursos afirmavam era a necessidadecolaborar para que a mulher pobre obtivesse recursos", diz a pesquisadora no livro Profissão Artista - Pintoras e Escultoras Acadêmicas Brasileiras.
Assim, a formação no liceu era "eclética", incluindo temas como "chapelaria" e "prendas do lar".
A grade dispunhapoucos cursos mais técnicos ligados às chamadas "artes superiores".
Os estudantesdesenho pouco aprendiam sobre anatomia, por exemplo — disciplina contemplada, porvez, no curso da Academia ImperialBelas Artes, que até então não aceitava matrículasmulheres.
Na análise formal que faz da obraAbigail, Míriam Andréa destaca a "informação precáriaanatomia" muitas vezes presente nas figuras humanas pintadas pela artista.
"Ela também não tinha acesso a isso, não podia fazer aulamodelos vivos."
Assim, provavelmentebuscauma formação complementar, Abigail decidiu ter aulas tambémum ateliê particular.
Seus mestres eram o fotógrafo Insley Pacheco e o desenhista e pintor Angelo Agostini.
"Até onde eu sei foi a única aluna que eles tiveram", diz Ana Paula.
A dupla era conhecida pela preferência por temas do cotidiano, o chamado realismo social, que começava a ser valorizado na época como símbolo da pintura moderna —oposição à pintura histórica.
As temáticas "menores" também estiveram no centro da obraAbigail.
Ela pintou cenas do dia a dia do campoobras como Estendendo a Roupa e Paisagem, que retrata um cenário bucólico empobrecido,que um homem divide o espaçouma rua esburacadaterra com vacas e galinhas.
A hora do pão, porvez, registra uma cena do cotidianoum bairro pobre do RioJaneiro: a horaque o vendedor ambulantepão chegava à rua e gritava para a clientela.
Retratar as periferias da capital era algo que fugia dos padrões recorrentes no período.
Datado1888, aquele foi umseus últimos quadros.
Pouco tempo depois, Abigail deu à luzprimeira filha, Angelina Agostini, frutoum romance clandestino —uma épocaque não havia divórcio no Brasil — que teve com seu professor, Angelo Agostini.
Sob grande pressão social, ambos se mudam às pressas para a França.
"Ele era um homem muito mais velho, casado, com filhos, e era uma figura pública muito importante, o editor da Revista Illustrada, abolicionista convicto, republicano", destaca Ana Paula.
"A Abigail foi muito intimidada", acrescenta a museóloga Míriam Andréa.
Foi no navio rumo à Europa,1888, que a jovem provavelmente contraiu tuberculose, diz a pesquisadora.
Em Paris, Abigail ainda pintou algumas telas. E chegou a participar, ao lado da pernambucana Alice Santiago, da Exposição Universal1889.
Uma das estruturas criadas especialmente para a feira, a "portaentrada" para o ChampMars, acabou se tornando o maior símbolo da cidade: a torre Eiffel.
A pintora morreria pouco depois, meses após dar à luz o segundo filho. Desolado, Ângelo Agostini volta para o RioJaneiro com a filha Angelina — que mais tarde também tornaria pintora.
O pai entrega a menina à meia-irmã, Laura Alvim, que a criou como filha.
As razões para o 'esquecimento'
Para Ana Paula, pelo menos quatro razões explicam porque o nomeAbigail foi sendo esquecido com o tempo.
Alémela ter morrido precocemente e, por isso, ter deixado poucos trabalhos, todas as telas das quais se tem conhecimento estão nas mãoscolecionadores particulares.
Há ainda o fatoque, por muito tempo, a arte produzida no século 19 no Brasil foi pouco pesquisada.
"A gente passou boa parte do século 20 sob o triunfo do modernismo e, depois, do concretismo e do neoconcretismo. Então, é como se tudo o que fosse feito o século 19 fosse desinteressante", explica a cientista social.
Finalmente, há ainda o fatoa pintora ter sido considerada pela crítica especializada da época como "amadora".
"Foi muito difícil para mim convencer os pesquisadores (que hoje se dedicam a estudar) do século 19que o Gonzaga Duque não estava sempre certo."
Apesaro crítico ser considerado "o nosso Baudelaire" pela academia, segundo ela, cada vez mais se aceita a visãoque muito do que ele escreveu refletiaparte as concepçõesépoca.
"É uma visãoque ele não era um homem infalível, era um homem do seu tempo."
O direito das mulheres à educação
No ano da morteAbigail, o Brasil se tornou uma república.
Em 1893, a Academia ImperialBelas Artes, rebatizada como Academia NacionalBelas Artes, passou a aceitar matrículasmulheres.
Mas aquilo não significava uma democratização completa do ensino para ambos os gêneros.
Como conta Ana PaulaProfissão Artista - Pintoras e Escultoras Acadêmicas Brasileiras, o currículo "diferenciado" ao qual as meninas eram submetidas no ensino secundário dificultava a preparação para as provas cada vez mais rigorosas que selecionavam os estudantes da instituição.
Naquela época, muitos currículos ainda enfatizavam as aulas"prendas do lar" para as meninasdetrimento dos conteúdos científicos.
O direito das mulheres pela educação, escreve a pesquisadora, foi conquistadoforma paulatina, sem um movimento organizado que levantasse essas bandeiras.
Histórias como asAbigail eram casos isolados.
Foi o oposto do que aconteceupaíses como a França e a Inglaterra, por exemplo, onde gruposmulheres lutaram pelo direitoacesso à educação superior — inclusive nas escolasarte — e, posteriormente, ao voto.
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