Os grupos marginalizados que difundiram a tatuagem no Brasil:zebet mobile sign up

Crédito, Divulgação – Editora Veneta

Legenda da foto, Nesta fotozebet mobile sign up1939, os dois temas mais recorrentes da tatuagem brasileira: religiosidade e afeto

Em 1959, desembarcou no portozebet mobile sign upSantos e logo abriu um ateliê. Trazia consigo um artefato até então desconhecido por aqui — uma máquina elétrica, própria para tatuagens.

Tornava-se assim o primeiro (e, por muito tempo, o único) tatuador a possuir um estabelecimento do gênero no país. Sob o pseudônimozebet mobile sign upLucky Tattoo, angariou fama nacional nos anos 1960. Quando morreu, vitimado por um ataque cardíacozebet mobile sign up1983, já havia se convertidozebet mobile sign upfigurazebet mobile sign upculto entre adeptos das artes corporais. Hoje, seu nome desponta como elo fundamental entre o passado e o presente da tatuagem brasileira.

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Legenda da foto, O dinamarquês Knud Gregersen, conhecido como Lucky Tattoo, chegou ao Brasilzebet mobile sign up1959

"A tatuagem se desenvolviazebet mobile sign uplugareszebet mobile sign upconfinamento, como navios, quartéis e prisões", explica Silvana Jeha, doutorazebet mobile sign upHistória Social pela PUC-Rio. "Por outro lado, ela também aparecia na praça pública, na rua, no bar. Não existiam estúdioszebet mobile sign uptatuagem. Até então, o tatuador era um cara qualquer, que desenhava ali na esquina."

O repertório iconográfico pouco diferia do atual. Há cem anos, a pele dos tatuados já ostentava âncoras, animais, mulheres nuas, símbolos políticos ou religiosos, personagenszebet mobile sign uphistóriaszebet mobile sign upquadrinhos, nomes e iniciaiszebet mobile sign uppessoas queridas. Os traços, porém, evidenciavam certo amadorismo, ligado a uma prática quase ritualística, infinitamente mais bruta e perigosa que os procedimentoszebet mobile sign uphojezebet mobile sign updia.

Agulhas, espinhos e cacoszebet mobile sign upvidro eram alguns dos apetrechos utilizados na feitura dos desenhos. Cinzaszebet mobile sign upcigarro, graxazebet mobile sign upsapato, carvão vegetal, fuligem e nanquim compunham fórmulaszebet mobile sign uppigmentos improvisados. Aos arrependidos, sobravam métodoszebet mobile sign upremoção igualmente dolorosos, baseadoszebet mobile sign upqueimaduraszebet mobile sign upácido ouzebet mobile sign upcastanhazebet mobile sign upcaju.

"A tatuagem era uma prática horizontalizada e sofreu enorme discriminação. Perdemos o fio dessa meada e só retomamos muito tempo depois, via cultura pop", afirma Jeha, que pesquisou o tema por maiszebet mobile sign upcinco anos.

No livro Uma História da Tatuagem no Brasil, publicado no finalzebet mobile sign up2019 pela editora Veneta, a historiadora compartilha suas descobertas e analisa as transformações sofridas por essa arte entre a primeira metade do século 19, períodozebet mobile sign upque se firma como cultura popular urbana, e meados da décadazebet mobile sign up1970, quando cai no gosto da classe média.

Imaginário

"O livro é filho do meu doutorado", diz. A tese que defendeuzebet mobile sign up2011 versa sobre a Marinha Imperial brasileira e as contribuiçõeszebet mobile sign upseus recrutas para o desenvolvimentozebet mobile sign upuma cultura cosmopolita no país. "Eu entrei nessa onda do marinheiro ser um tipo meio extraordinário e mítico", afirma.

Um livrozebet mobile sign upregistros da fragatazebet mobile sign upguerra Imperatriz, contendo informações sobre 900 marujos, ganhou espaço na tese. Trata-se do documento mais antigo que a autora já encontrou acerca da presençazebet mobile sign uptatuados no Brasil.

Os tripulantes que embarcaram no navio entre 1833 e 1835 foram catalogadoszebet mobile sign upfunçãozebet mobile sign upseus atributos físicos — altura, cor dos olhos e da pele, cicatrizes, formato da cabeça e, vez ou outra, desenhos descritos como "marcas" ou "sinais". A palavra "tatuagem" surgiria apenas algumas décadas depois.

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Legenda da foto, Mickey Mouse, icônico personagemzebet mobile sign upWalt Disney, tatuado nos braçoszebet mobile sign upum marinheiro paulista na décadazebet mobile sign up1930

Intrigada, a historiadora decidiu iniciar uma pesquisa sobre o tema. "Eu não sabia muito bem como isso funcionava socialmente. Aliás, acho que quase ninguém sabia", diz. "Há um imagináriozebet mobile sign upque tatuagem era apenas coisazebet mobile sign upmarinheiros, bandidos e putas. Mas não foi bem assim."

A pesquisa, financiada pela Biblioteca Nacional, se apoiouzebet mobile sign upduas fontes principais: a coleçãozebet mobile sign upjornais da instituição e o acervo do Museu Penitenciário Paulista, que abriga 2.600 fotografiaszebet mobile sign updetentos do Carandiru, tiradas entre as décadaszebet mobile sign up1920 e 1940.

Muitos desses indivíduos, ressalta Jeha, já chegaram tatuados ao complexo penitenciário. "É preciso entender que essas pessoas tiveram uma existência anterior à cadeia", diz. "Elas trabalharam, andaram pelo mundo, e, depoiszebet mobile sign uppresas, reafirmaram seu domínio sobre a única coisa que ainda tinham — o corpo."

Cruzando informaçõeszebet mobile sign upseus prontuários com textos encontrados nas páginas dos jornais, a autora pôde mapear os principais grupos envolvidos na difusão da tatuagem no Brasil e entender como foram vistos pela sociedade da época.

Os marinheiros, como esperado, marcavam forte presença. "Os marujos não são necessariamente os pioneiros da tatuagem dita ocidental", esclarece a historiadora. "Mas foram eles que espalharam essa cultura pelo mundo."

Eram sujeitos como Joaquim, que, tentando driblar uma rotinazebet mobile sign upcastigos físicos, tatuou um crucifixo nas costas e a imagemzebet mobile sign upCristo no peito. Segundo relatoszebet mobile sign up1904, os capatazes do navio temiam agredi-lo — acreditavam que os golpes feriam Jesus.

Ou como o idoso que, à beira da morte num leitozebet mobile sign uphospital, narrou a Jeha a origem da frase "Amor à Cuba", que trazia inscrita na mão. Por dois meses, seu navio permanecera atracado na ilha. Enquanto a embarcação sofria reparos, o tripulante saiu, dançou salsa e conheceu Fidel Castro. A tatuagem, garantiu o marinheiro à pesquisadora, seria uma "lembrança daqueles dias maravilhosos".

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Legenda da foto, Ariosto, detento do Carandiru, tinha na coxa o desenhozebet mobile sign upuma mulher nua. Ele fez a tatuagemzebet mobile sign upcasa, no anozebet mobile sign up1934

Já nas páginas dos tabloides, manchetes sanguinolentas davam testemunho dos supostos vínculos entre a tatuagem e a criminalidade: "Tatuado no assalto ao armazém"; "Dois tatuados e um bicheiro assassinados a bala e faca"; "Massacre do homem tatuado só poupou um bebê"; "Jovem tatuado agonizava na rua com três romboszebet mobile sign upbala na cabeça".

Tangenciando ambos os universos, reportagens sobre prostituição documentavam as trajetórias erráticaszebet mobile sign upmulheres que transgrediam as normaszebet mobile sign upseu tempo.

A alagoana Beatriz Barbosa, por exemplo, pautou dezenaszebet mobile sign uptextos jornalísticos entre 1919 e 1948. Suas andanças pelo Riozebet mobile sign upJaneiro, então capital federal, costumavam terminarzebet mobile sign updelegacias e faziam as delícias do noticiário sensacionalista. Foi presa maiszebet mobile sign upvinte vezes, sempre por delitos menores: furtos, brigas, bebedeiras, vadiagem, meretrício. Viciadazebet mobile sign upcocaína, chegou a ser descrita como "recordistazebet mobile sign upentradas na detenção e campeãzebet mobile sign uptatuagens".

Fervor e pertencimento

Nem sózebet mobile sign upmar, crime e sexo pago viviam os tatuados nos grandes centros urbanos. Militareszebet mobile sign upbaixa patente, trabalhadores braçais, artistas circenses, imigrantes e degredados também ostentavam desenhos no corpo.

Muitos soldados se tatuavam com bandeiras nacionais, siglaszebet mobile sign upbatalhões, slogans ufanistas e emblemas patrióticoszebet mobile sign upgeral. Outros, porém, escolhiam símbolos e imagens não vinculadas às questões bélicas.

O praça Marcelino Bispozebet mobile sign upMello era um deles: possuía estrelaszebet mobile sign upcinco pontas tatuadas no peito, cotovelo e braço. Em novembrozebet mobile sign up1897, ele assassinou o marechal Carlos Machadozebet mobile sign upBittencourt, ministro da Guerra, num atentado contra Prudentezebet mobile sign upMorais, presidente da República. Os desenhos foram constatados no examezebet mobile sign upcorpozebet mobile sign updelito e citados pela imprensazebet mobile sign upjaneiro do ano seguinte, após Marcelino cometer suicídio na cadeia, enforcando-se com um lençol.

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Legenda da foto, José, um estivador português, tatuou no braço a frase 'Tudo por São Paulo', lema da Revolução Constitucionalistazebet mobile sign up1932, mas errou a data do levante, que teve início no dia 9zebet mobile sign upjulho daquele ano

Não foi o único momentozebet mobile sign upturbulência a contar com a participaçãozebet mobile sign uptatuados: os levantes tenentistas da décadazebet mobile sign up1920, bem como as revoluçõeszebet mobile sign up1930 e 1932, estimularam diversos trabalhadores a expressarem na pele suas convicções políticas. Outros perderam a vida, tendo seus corpos reconhecidos a partir das tatuagens que carregavam.

O marceneiro Manoel Moreira da Costa, vulgo Costeleta, foi preso, torturado e mortozebet mobile sign upoutubrozebet mobile sign up1931, ao se manifestar contra o governo que Getúlio Vargas instituira no ano anterior. Seu cadáver degolado, disposto numa linhazebet mobile sign uptremzebet mobile sign upRecife, foi identificado pela mãe e pela namorada graças a uma inscrição contendo o nomezebet mobile sign upuma terceira mulher — Adélia. Também movido pelo repúdio ao getulismo, o estivador José tatuaria no braço a frase "Tudo por São Paulo", lema do movimento constitucionalistazebet mobile sign up1932.

Na outra ponta, alheios ao caos social e imersoszebet mobile sign upexotismo escapista, profissionaiszebet mobile sign upfreak shows empreendiam turnês internacionais que incluíam os circos, cinemas e teatros das cidades brasileiras. Em 1890, o greco-albanês George Costentenus, um dos mais célebres artistas itinerantes do século 19, chegou a participarzebet mobile sign upespetáculoszebet mobile sign upSão Paulo e no Riozebet mobile sign upJaneiro. Às plateias, exibia seu corpo inteiramente tatuado e narrava as aventuras mirabolantes que teria vivido ao redor do globo.

Trajetórias tão diversas, relata Jeha, transformaram radicalmente o seu olhar sobre o tema, culminando num processozebet mobile sign upautoconhecimento. "Eu fiquei muito fascinada. Enquanto historiadora, sempre estive acostumada a estudar o outro", diz. "E,zebet mobile sign uprepente, descobri que meus antepassados se tatuavam."

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Legenda da foto, Retrato do greco-albanês George Costentenus, artista circense que rodou o mundo exibindo seu corpo tatuado

A pesquisadora, descendentezebet mobile sign uplibaneses, soube que o avôzebet mobile sign upum primo possuía uma cruz tatuada na mão. O desenho cumpria um objetivo específico, confirmado por fotografias e depoimentoszebet mobile sign uppatrícios: impossibilitar a negação da fé cristãzebet mobile sign upeventuais embates contra muçulmanos.

"Há algozebet mobile sign upemotivo, um sentimento incrívelzebet mobile sign upsaber que essa cultura também pertence a mim", diz. "Depois, fui percebendo que ela pertence a todo mundo que vive aqui. Portugueses, italianos, japoneses, alemães, indígenas, africanos."

Se existe algum vínculo a unir todas essas pessoas, afirma Jeha, trata-se do terreno por onde elas se movem — uma tênue e ambígua fronteira entre as dimensões do erótico e do sagrado.

"Embora se mostre tão escancarada atualmente, a tatuagem sempre foi algo muito íntimo. As mulheres tatuavam muito os seios, alguns homens chegavam ao extremozebet mobile sign uptatuar o pênis", explica. "É uma prática relacionada ao fervor e às paixões. O nome da pessoa que você ama, os símbolos dazebet mobile sign upreligião, o time para o qual você torce."

Um sinalzebet mobile sign upsuspeição

Para além dos registros policiais e jornalísticos, o universo literário forneceu pistas igualmente valiosas à historiadora. Nos escritoszebet mobile sign upJorge Amado, Máriozebet mobile sign upAndrade, Guimarães Rosa, Plínio Marcos e João do Rio, ou até mesmo do americano Herman Melville, Silvana Jeha encontrou dezenaszebet mobile sign upreferências aos tatuados brasileiros.

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Legenda da foto, Adib, imigrante sírio-libanês, teve a mão tatuada com uma pequena cruz quando criança. Imigranteszebet mobile sign updiversas nacionalidades contribuíram para o desenvolvimento da tatuagem brasileira

"A literatura é o retratozebet mobile sign upuma época", diz. "Acredito que os escritores possuem uma sensibilidade maior. Boa parte deles via a tatuagem com muita curiosidade, como uma cultura dotadazebet mobile sign upbeleza própria. Eram muito mais atentos às nuances, se comparados aos demais narradores."

Machadozebet mobile sign upAssis, o mais antigo escritor brasileiro a ser analisado pela pesquisadora, já descrevia tatuagens na novela O Alienista,zebet mobile sign up1882. Em certo trecho da obra, protagonizada por um médico que inaugura um manicômio e se afunda na própria insanidade, o romancista carioca menciona brevemente uma estrelazebet mobile sign upcinco pontas "impressa no braço"zebet mobile sign upum personagem secundário.

Treze anos depois, Manuelzebet mobile sign upSouza, imigrante português preso sob acusaçãozebet mobile sign uphomicídio, seria retirado da delegacia onde cumpria pena e utilizado como modelo vivo numa aula da Faculdadezebet mobile sign upMedicina do Riozebet mobile sign upJaneiro. Na ocasião, o professor Souza Lima, precursor da medicina legal no Brasil, expôs aos alunos as tatuagens do acusado. Baseando-se nelas, emitiu seu veredicto: ainda que não tivesse cometido crime algum, Manuel deveria ser tratado como um suspeitozebet mobile sign uppotencial.

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Legenda da foto, Lauro, detento do Carandiru, tatuou no peito um coração trespassado por um punhal e o nomezebet mobile sign upsua amada

Machadozebet mobile sign upAssis, então, retornou ao tema. Em crônica publicada pela Gazetazebet mobile sign upNotícias no dia 23zebet mobile sign upjulhozebet mobile sign up1895, disse: "Foram as tatuagens do corpo do homem que me deslumbraram. As tatuagens são todas ou quase todas amorosas. Braços e peitos estão marcadoszebet mobile sign upnomeszebet mobile sign upmulheres ezebet mobile sign upsímboloszebet mobile sign upamor".

Por fim, o escritor lançava um questionamento: como poderia "um homem tão dado a amores, que os escreviazebet mobile sign upsi mesmo", ser também um assassino?

Jeha explica: "Nosso país sempre esbarrouzebet mobile sign upquestõeszebet mobile sign upclasse e raça. Os cidadãos são discriminados pela cor, pela aparência, pela posição social. E a tatuagem, no contexto daquela época, se destacava como um sinalzebet mobile sign upsuspeição. Era algo literalmente marcado na pele."

A sorte que o Brasil do século 20 reservou aos seus tatuados não foi muito melhor.

Na décadazebet mobile sign up1930, um trabalhador rural baiano, identificado apenas pelas iniciais J.R.B., tentaria a todo custo remover os desenhos que carregava na pele. Alegava que teriam lhe trazido "pintazebet mobile sign upmalandro".

O sambista carioca Guilhermezebet mobile sign upBrito, parceirozebet mobile sign upNélson Cavaquinho, também se arrependeriazebet mobile sign upuma tatuagem feita na juventude — um índio, traçado no braço por um morador da favela do Tuiuti.

Pelo resto da vida, o músico esconderia o membro tatuado — temendo represálias, nunca mais vestiu uma camisazebet mobile sign upmanga curta.

Feminicídios e execuções policiais foram o destino finalzebet mobile sign upalguns tatuados, mas o livro nem sempre expõe as circunstânciaszebet mobile sign upsuas mortes.

"Tentei descriminalizar a tatuagem", explica a autora.

"Se o cara pertencia a uma escolazebet mobile sign upsamba e torcia para um timezebet mobile sign upfutebol, por que me referir a ele como o sujeito assassinado pelo Esquadrão da Morte? Os jornais costumam criar admiração e fascínio mórbido por notíciaszebet mobile sign upcrime, quando isso não passazebet mobile sign upuma doença social."

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