Encantado com a natureza e indignado com a corrupção: o que Charles Darwin achou do Brasil do século 19:

Charles Darwin

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, 'Darwin ficou encantado com a nossa biodiversidade. A Mata Atlântica foi o bioma mais rico que ele conheceu. Por outro lado, ficou revoltado com a escravidão. Sua família lutava contra o comércioescravos', afirma o biólogo Nélio Bizzo

"A viagem do Beagle foi,longe, o acontecimento mais importante na minha vida", escreveu o pai da Teoria da Evolução na autobiografia editada por seu filho, Francis,1887. "As maravilhas dos trópicos erguem-se hojeminha lembrançamaneira mais vívida do que qualquer outra coisa".

Prevista para durar pouco maistrês anos, a viagemcircum-navegação levou quase cinco. Nesse período, a tripulação do Beagle enfrentou abalo sísmico no Chile, doença misteriosa na Argentina — alguns especialistas cogitam a hipóteseDoençaChagas — e tempestade tropical no Brasil.

Sim, o Brasil estava entre os maisdez países, como Austrália, Nova Zelândia e África do Sul, visitados pelo naviopesquisa da Marinha Real Britânica — o HMS, a propósito, significa His Majesty's Ship ("NavioSua Majestade") —, ao longoquatro anos e nove meses.

"Por um lado, Darwin ficou encantado com a nossa biodiversidade. A Mata Atlântica foi o bioma mais rico que ele conheceu. Por outro, ficou revoltado com a escravidão. Sua família lutava contra o comércioescravos", afirma o biólogo Nélio Bizzo, doutorEducação pela UniversidadeSão Paulo (USP) e autorDarwin - Do Telhado das Américas à Teoria da Evolução (2009).

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Tem inglês no samba

O navio chegou a Salvador (BA)28fevereiro1832. Antesancorar na Bahia, passou pelos arquipélagosSão Pedro e São Paulo, a 1.000 kmNatal (RN), eFernandoNoronha, a 345 kmRecife (PE). Já no primeiro diasua estadia no Brasil, Darwin encantou-se com a exuberância da floresta tropical. "Luxuriante" foi um dos adjetivos que usou para descrever a paisagem local.

"O dia passou deliciosamente", escreveu no diário que levou a bordo. "Delícia, no entanto, é um termo vago para exprimir os sentimentosum naturalista que, pela primeira vez, se viu perambulando por uma floresta brasileira."

Em terra firme, o jovem cientista gostavaembrenhar-se pelas matas úmidas e coletar bichos, plantas e rochas. A cada novo porto onde o Beagle atracava, Darwin enviava suas amostras, desidratadas ou conservadasálcool, aos cuidadosseu tutor, John Henslow,Londres. Ao todo, catalogou mais5,4 mil peças, entre espécies fósseis e espécimes preservados.

"Seus professoresCambridge recebiam o material e distribuíam-no entre os maiores especialistas da época. Resultado: ao voltar à Inglaterra,1836, Charles Darwin já era um cientista famoso", observa a geóloga Kátia Leite Mansur, doutoraGeologia pela Universidade Federal do RioJaneiro (UFRJ) e coordenadora do projeto turístico-científico CaminhosDarwin, que mapeou a região por onde o naturalista passou emexpedição pelo interior do RioJaneiro.

Gravura do navio inglês H.M.S. Beagle

Crédito, Divulgação

Legenda da foto, O navio inglês H.M.S. Beagle zarpou da Inglaterradezembro1831 e dois meses depois chegou a Salvador

Na Bahia, a estadia foi relativamente curta: 18 dias. Tempo suficiente para Darwin testemunhar uma tromba d'água, sofrer um corte no joelho — que lhe deixoumolho por seis dias — e brincarcarnaval pelas ruasSalvador. Bem, brincar não é exatamente a palavra.

Hospedado no Hotel do Universo, no antigo Largo do Theatro (atual Praça Castro Alves), Darwin teve, no dia 4março1832, uma segunda-feiraCarnaval, a infeliz ideiapassear pela cidade.

Infeliz porque um dos passatempos dos foliões era arremessar "bolascera cheiaságua", apelidadas"limõescheiro", nos incautos transeuntes. De quebra, ainda lambuzavam suas roupas com sacosfarinha. "Difícil manter nossa dignidade", resmungou,seu diário.

O desagrado com a burocracia – e com os brasileiros

De Salvador, o capitão FitzRoy seguiu para o RioJaneiro, onde chegou no dia 4abril. Dessa vez, passou mais tempo: 93 dias. "Em maio1832, Darwin escapou da morte ao se recusar a participaruma caçada no rio Macacu, que deságua na BaíaGuanabara. Três dos marinheiros que participaram da caçada morreram vítimasuma febre fulminante", relata o físico IldeuCastro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Na cidade, o naturalista fixou residênciaBotafogo, aos pés do Corcovado. Apenas dois dias depoissua chegada, não disfarçou seu aborrecimento ao tecer críticas à burocracia local. Segundo constasuas anotações, Darwin levou um dia inteiro até conseguir autorização para excursionar pelo interior fluminense.

"Nunca é agradável submeter-se à insolênciahomensescritório, mas aos brasileiros, que são tão desprezíveis mentalmente quanto são miseráveis as suas pessoas, é quase intolerável", reclamou,6abril1832. "Contudo, a perspectivaflorestas selvagens zeladas por lindas aves, macacos e preguiças fará um naturalista lamber o pó da sola dos pésum brasileiro".

"Ao desembarcarSalvador, a relaçãoDarwin com o Brasil era positiva. Mas, ao chegar ao Rio, pareceu azedar. Darwin reclama muito da burocracia e chega a dizer que é interminável", diz o biólogo Charbel El-Hani, coordenador do LaboratórioEnsino, Filosofia e História da Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

A cavalo, Darwin e uma comitivaseis homens empreenderam uma viagem16 dias, entre 8 e 24abril, até ConceiçãoMacabu, a 227 km da capital. De maneira geral, a impressão deixada pelos donospousada não foi das melhores. Alguns demoravam até duas horas para servir a refeição. "A comida estará pronta quando estiver", respondiam os mais atrevidos. Outros, sequer, tinham garfos, facas ou colheres para oferecer.

Na Fazenda Campos Novos,Cabo Frio, os viajantes deram pela faltauma bolsa com algunsseus pertences. "Por que não cuidam do que levam?", retrucou o hospedeiro, mal-humorado. "Talvez tenha sido comida pelos cachorros".

Escravidão, nunca mais

RetratoCharles Darwin quando jovem

Crédito, Divulgação

Legenda da foto, Darwin tinha 22 anos quando recebeu uma carta que mudariavida: era um convite para uma viagem à América do Sul

Darwin tinha 22 anos quando recebeu uma carta que mudariavida: era um convite para uma viagem à América do Sul

Emtravessia pelo norte fluminense, Darwin deparou-se também com os horrores da escravidão. Dois episódios lhe marcaram profundamente. Um deles aconteceu na Fazenda Itaocaia,Maricá, a 60 km do Rio, no dia 8abril, quando um grupocaçadores saiu no encalçoalguns escravos. A certa altura, os foragidos se viram encurraladosum precipício.

Uma escrava,certa idade, preferiu atirar-se no abismo a ser capturada pelo capitão do mato. "Praticado por uma matrona romana, esse ato seria interpretado como amor à liberdade", relatou Darwin. "Mas, vindouma negra pobre, disseram que tudo não passouum gesto bruto".

O outro episódio ocorreu na Fazenda Sossego,ConceiçãoMacabu, no dia 18. Um capataz ameaçou separar 30 famíliasescravos e,seguida, vendê-los separadamente como formapunição. Darwin ficou tão indignado com a cena que a descreveu como "infame".

"Os avósDarwin participaram ativamente dos movimentos abolicionistas do século 17. Desembarcarum país onde ainda vigorava o comércioescravos foi um choque para ele. Darwin chegou a se desentender com o capitão do Beagle sobre o assunto e, por muito pouco, não voltou mais cedo para a Inglaterra", explica a bióloga Maria Isabel Landim, doutoraBiologia pela USP e organizadoraCharles Darwin - Em um Futuro Não Tão Distante (2009).

Não bastassem os maus-tratos aos escravos, Darwin também se escandalizou com a corrupção. No dia 3julho, chegou a rotular os brasileiros"ignorantes", "covardes" e "indolentes".

"Até onde posso julgar, possuem apenas uma fração daquelas qualidades que dão dignidade ao homem", queixou-se. "Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homemposses, é seguro que,pouco tempo, ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados."

Adeus também foi feito pra se dizer

A primeira parte da passagemDarwin pelo Brasil chegou ao fim5julho1832. Daqui, a expedição seguiu para o Uruguai e,lá, para a Argentina. Em setembro1835, chegou às Ilhas Galápagos, no Oceano Pacífico, o ponto mais famoso da viagem.

Darwin não teria colocado mais os pés no Brasil se,agosto1836, ventos contrários não tivessem obrigado o capitão FitzRoy a atracar novamente no país:1 a 6agostoSalvador e7 a 12 no Recife. Apesaragnóstico, Darwin deu "graças a Deus" por estar, finalmente, deixando as costas do Brasil. "Espero nunca mais visitar um paísescravos", escreveu no dia 19agosto.

O Beagle retornou à Inglaterra no dia 2outubro1836. Vinte e três anos depois,24novembro1859, seu tripulante mais ilustre publicaria A Origem das Espécies. Mas, será que a viagem exerceu algum tipoinfluência sobre a obra?

Na opinião dos especialistas, a passagemDarwin pelo Brasil foi mais importante para a Teoria da Evolução das Espécies do que podemos imaginar. O próprio Darwin é o primeiro a admitir isso. Logo no primeiro parágrafo da introdução, reconhece a importância da expedição para a elaboraçãouma das mais revolucionárias teorias da ciência moderna.

"A natureza brasileira, comgrandeza e diversidade, teve um impacto muito grande sobre Darwin eTeoria da Seleção Natural", afirma a bióloga Magali Romero Sá, vice-diretorapesquisa e divulgação científica da Fiocruz, e curadora da exposição Darwin - Origens & Evolução, que reúne 295 peças, entre fotos, documentos e fósseis. IldeuCastro Moreira assina embaixo: "A passagemDarwin pelo Brasil foi o passo inicial que o levou, anos depois, a desenvolver A Teoria da Seleção Natural".

O diáriobordo e as anotaçõesviagemDarwin, ricos tantodescrições geográficas quantocomentários sociológicos, não se perderam no caminho. Em 1839, viraram livro, ViagemUm Naturalista ao Redor do Mundo, e,2015, ganharam uma edição brasileira, O Diário do Beagle, um calhamaço528 páginas lançado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Já o capitão FitzRoy, que comandou o Beagleduassuas três viagens, teve um fim trágico. Aos 59 anos, endividado e sofrendoum transtorno mental, tirou a própria vida, cortando a garganta com uma navalha.

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