'Nossa luta contra Bolsonaro é a mesma que fizemos contra Lula e Dilma', diz cacique Raoni:

Cacique kayapó Raoni Metuktire

Crédito, AFP

Legenda da foto, Raoni Metuktire rodou o mundoprol das causas indígena e ambiental décadas antes da popularização das conferências sobre o meio ambiente e das marchas pelo clima

Embora a conversa fosse por telefone, o cacique parecia discursar a uma multidão: falava alto e se valiatécnicas da oratória kayapó, como pausas e mudanças bruscas no tom da voz. Na entrevista, criticou índios que têm se aproximado do presidente, tratoucomunidades nativas favoráveis ao garimpo e disse querelação com o governo federal começou a se deteriorar nos anos Lula e Dilma, com a construção da hidrelétricaBelo Monte.

"Todos os presidentes anteriores nos apoiaram. A partirLula, todos geraram divisão entre o índio e o governo", afirmou (leia mais abaixo).

Infância e juventude

Segundo um site mantido pela ONG francesa Planète Amazone, parceiralonga dataRaoni, ele nasceu por volta1932 na aldeia Krajmopyjakare, no nordeste do Mato Grosso. Na época, o povo kayapó (autodenominado mebêngôkre) era nômade e não tinha contato regular com o mundo exterior.

Naqueles anos, os irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas percorriam a região a serviço do governo federal, identificando áreas onde autoridades pretendiam realizar obras e instalar núcleos habitacionais. Numa dessas andanças,1954, os irmãos Villas-Bôas conheceram Raoni. Foi com eles que o líder kayapó ampliou suas noções sobre a língua portuguesa e sobre o mundo dos brancos.

Em 1958, o indígena acompanhou o trio numa expedição para demarcar o centro geográfico do Brasil, às margens do rio Xingu,cuja bacia os kayapós vivem até hoje. O país era então presidido por Juscelino Kubitschek, que já estivera o próprio com Raoni1950.

Em 1964, o cacique encontrou o rei Leopoldo 3º da Bélgica, que visitou o Brasil 13 anos após deixar o trono. Foi o primeirovários líderes estrangeiros com que ele teve contato, lista que inclui dois papas — João Paulo 2º e Francisco — e três presidentes da França — Fraçois Mitterrand (1981-1995), Jacques Chirac (1995-2007) e o atual mandatário, Emmanuel Macron.

Macron e Raoni

Crédito, AFP

Legenda da foto, O presidente da França, Emmanuel Macron, recebeu Raoni no Palácio do Eliseu,maio, quando se comprometeu a apoiar suas bandeiras

'Quem furou a barriga dele não fui eu'

No mesmo pronunciamentoque criticou os laçosRaoni com autoridades estrangeiras, Bolsonaro elogiou a youtuber indígena Ysani Kalapalo, que o acompanhou na viagem à ONU,Nova York. O presidente citou uma cartaque uma organizaçãoindígenas favoráveis ao agronegócio apoiava a presença da jovem na comitiva presidencial. "Acabou o monopólio do senhor Raoni", afirmou.

Após a fala, as principais organizações indígenas brasileiras saíramdefesaRaoni e disseram que Ysani não tem representatividade no movimento.

Questionado pela BBC News Brasil sobre o discurso do presidente, Raoni diz que não deu bola para as críticas e que nunca pretendeu ser um porta-voztodos os indígenas. "Quando Bolsonaro tenta apagar minha imagem ou criticar minha pessoa, isso não tem a menor importância para mim."

"Nunca falei que sou uma liderançatodo mundo. Apenas estou defendendo a natureza e o meu povo. Não só meu povo, mas também o homem branco. A natureza é nosso pulmão. Se acabar com a natureza, não conseguiremos mais sobreviver, não vamos ter mais ar para respirar."

Ele disse que não conhece Ysani Kalapalo. "Não sei a origem dela, não sei onde cresceu. Elarepente apareceu e está junto do Bolsonaro falando mal da minha pessoa."

Ysani Kalapalo

Crédito, Facebook/Reprodução

Legenda da foto, Levada por Bolsonaro à ONU, Ysani Kalapalo se projetou com canal no YouTubeque expõe visõesdireita

Indagado sobre outra falaBolsonaro a seu respeito, o cacique abandonou o tom ameno. Dias depois do discurso na ONU, quando já havia voltado ao Brasil, o presidente disse que Raoni "vive tomando champagneoutros países por aí".

"É tudo conversa fiada do Bolsonaro, é mentira dele. Bolsonaro tem a cabeçaum drogado. Nunca tomei cerveja ou bebida alcoólica", afirmou o cacique, aos berros.

Raoni diz que não esperava os ataques repetidos do presidente. "Foi uma surpresa, porque eu não fiz nada contra o Bolsonaro, nunca fiz mal à família dele. Nunca quis esse conflito. Quem furou a barriga dele não fui eu."

Fama internacional

A fama internacionalRaoni foi catapultada por um encontro com o cineasta belga Jean-Pierre Dutilleux. Os dois se conheceram1973 e, anos depois, o cineasta gravou um documentário sobre o indígena e seu povo.

Aclamado pela crítica, o filme "Raoni" teveversãoinglês narrada pelo ator americano Marlon Brando. Foi indicado ao Oscar e exibido no FestivalCannes. No Brasil, ganhou o prêmiomelhor filmeGramado.

Filme Raoni

Crédito, Divulgação

Legenda da foto, Cartaz do filme "Raoni", indicado ao Oscar e exibidoCannes

Nos anos 1980, Dutilleux apresentou Raoni ao cantor britânico Sting. Vários anos antes da popularização das marchas pelo clima e das conferências globais sobre meio ambiente, a dupla rodou o mundo pedindo apoio à preservação das florestas e aos direitos dos povos indígenas.

Eram temposque o agronegócio e a mineração se expandiam velozmente pela Amazônia, favorecidos por grandes obras e políticas da ditadura militar (1964-1985). No norte do Mato Grosso, só não virariam fazendas as áreasfloresta demarcadas como terras indígenas ou reservas ambientais.

Naqueles anos, garimpeiros começaram a chegarmaior número às terras dos kayapós — e, desde então, jamais saíram completamente. Hoje eles têm o respaldoalguns líderes do grupo, que recebem dinheiro dos garimpeirostroca da permissão para atuar no território. A atividade é ilegal.

A situação é mais grave na Terra Indígena Kayapó, onde os rios Fresco e Branco foram contaminados por mercúrio e desfigurados por retroescavadeiras. O governo Bolsonaro pretende enviar ao Congresso um ProjetoLei para legalizar o garimpoterras indígenas e afirma que a mineração beneficiará as comunidades.

Garimpo na Terra Indígena Kayapó

Crédito, Planet

Legenda da foto, Garimpo no rio Fresco, na Terra Indígena Kayapó,fotojulho2019; atividade se intensificou desde o início do governo Jair Bolsonaro

Já a maioria das comunidades kayapós — que hoje somam cerca11 mil integrantes — é contra a atividade, assim como as principais organizações indígenas brasileiras.

Para Raoni, caso o projeto seja aprovado, cada grupo será livre para decidir sobre a atividade. "Se outros indígenas quiserem garimpar nas suas terras, a autonomia vai ser deles. Mas eles vão ter problemas. Se o garimpo entrar, vai acabar a floresta e não vai ter mais animais para eles caçarem, não vai ter mais rio para pescarem e poderem sobreviver. A natureza é o mercado do indígena. Todos os que fizerem isso vão acabar destruindo a própria casa. Os que estão junto do Bolsonaro vão destruir tudo."

Ele afirmou que uma eventual legalização do garimpo não impactariaterra. "Nunca vou aceitar que madeireiro entre na minha terra. Nunca vou aceitar que garimpeiro garimpe na minha terra. Nunca vou autorizar um pescador a entrar no meu rio Xingu."

Constituição1988

Enquanto se projetava no exterior ao ladoSting, Raoni também se tornava cada vez mais conhecido no Brasil. Na Assembleia Constituinte, o líder levou dezenasguerreiros kayapós a Brasília para pressionar os congressistas a aprovar uma Constituição favorável às comunidades nativas. O movimento, do qual participaram vários outros povos nativos, teve sucesso e abriu o caminho para a demarcaçãograndes terras indígenas no país.

Raoni e kayapósBrasília

Crédito, Beto Ricardo/ISA

Legenda da foto, Raoni (na fileira abaixo, ao centro) com guerreiros kayapós nos debates da Assembleia Constituinte,Brasília

Desde aquela época, Raoni e os kayapós viraram presença frequentemobilizações indígenas na capital. No Acampamento Terra Livre, hoje o principal evento do tipo, os kayapós costumam atrair a atençãocinegrafistas quando apresentam suas danças e cantos típicos, adornados com penas e pinturas corporais.

Nesses eventos, Raoni é tratado com deferência e tietado por outros indígenas — feito notável para alguém cujo povo, até meio século atrás, viviaguerra com quase todas as etnias vizinhas.

No início da década, Raoni e os kayapós participaramuma sérieatos contra a construção da hidrelétricaBelo Monte no rio Xingu — causa que mobiliza o grupo desde que a obra foi planejada, no governo militar. A usina só começou a sair do papel no governo Luiz Inácio Lula da Silva e foi inaugurada porsucessora, Dilma Rousseff.

Raoni diz que os anos Lula e Dilma marcaram uma inflexão narelação com o governo federal. Ele afirma que foi recebido por todos os presidentes que governaram entre a redemocratização e a posseLula: José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e FHC. Todos eles, diz Raoni, "me apoiaram muito para que eu pudesse ajudar meu povo".

Com Lula, porém, a relação se deteriorou. "Ele começou a planejar essa ideialevantar Belo Monte. Nós conseguimos parar a obra, só que ela recomeçou com o governo Dilma. E Dilma autorizou Belo Monte."

Crítico ao empreendimento, Raoni deixouser recebido no Palácio do Planalto. "Nossa luta contra Bolsonaro é a mesma que fizemos contra Lula e Dilma. Todos eles — Lula, Dilma, Bolsonaro — geraram essa divisão entre o índio e o governo. Por isso que eu venho lutando para que não haja essa divisão."

Protestolíderes indígenasBrasília

Crédito, Agência Brasil

Legenda da foto, Raoni e outras lideranças indígenas entram pela garagem do Congresso Nacionalprotesto2013, no governo Dilma, quando usinaBelo Monte estava sendo construída

Aldeia onde nasceu

Hoje próximo dos 90 anos, Raoni continua a viajar o mundo e a divulgar suas bandeiras. Umasuas prioridades é a conclusão da demarcação da Terra Indígena Kapôt Nhinore, onde ele nasceu. É a única dentre as dez terras indígenas habitadas pela etnia que ainda não foi formalizada. Bolsonaro afirmou, no entanto, que não demarcará "nem um centímetro"terra indígenaseu governo.

Raoni diz que, caso vença o Nobel da Paz no futuro, usará a premiaçãodinheiro para avançar a demarcação da Kapôt Nhinore e promover melhorias na Terra Indígena Capoto/Jarina, onde ele vive hoje. Em 2019, o vencedor do prêmio recebeu 9 milhõescoroas suecas, o equivalente a R$ 3,8 milhões.

"Neste ano não saiu meu nome, mas vou esperar o ano que vem", afirma.

"Estou firme."

Línea

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