'O rio está passando por dentro da nossa sala': os relatos da chuva que parou o RioJaneiro:
Chega a sete o númeromortes causadas pelo temporal. Duas irmãs morreram soterradas após um deslizamento no Morro da Babilônia, no Leme, zona sul da cidade. Outros três corpos foram encontradosum táxi na Ladeira do Leme, onde um deslizamento soterrou carros.
Pela manhã, enquanto a cidade buscava entender a escala das perdas, Adriana caminhou pelo Jardim Botânico para tentar juntar pedaçossua casa.
Espalhados pelo parque fundado por Dom João 6º1808, encontrou duas camisas do marido, uma calça, o poteração do cachorro e um maiô da filha. Ainda mais longe, na rua Pacheco Leão, um vizinho encontrou um capacetemoto flutuando e o trouxevolta para seu marido.
"A ficha ainda não caiu. Vamos esperar a chuva passar para ter uma noção do que podemos fazer. Só espero que consiga pelo menos refazer um pedaço da minha casa e continuar. Minha história está toda aqui", diz Adriana, ainda sem saber como reconstruir a vida estando ela e o marido desempregados.
Adriana, o esposo, a filha adolescente e os três cachorros foram temporariamente para a residênciasua sogra, a poucas casasdistância. O imóvel alagou, como os outros da vizinhança, mas continuapé.
A família mora na comunidade do Horto, área adjacente ao parque composta originalmente por residênciasantigos funcionários do parque. Os terrenos são alvouma disputadécadas com o Jardim Botânico do Rio. Mordores buscamregularização fundiária, mas são ameaçadosremoção.
"Eles já queriam tirar a gente daqui. Acho que agora vão ver como uma boa oportunidade", teme. "Vão falar 'está vendo, era árearisco'. Mas isso nunca foi árearisco."
Prefeito na berlinda
O terceiro grande temporal do Rio neste ano acirra a pressão sobre o prefeito Marcelo Crivella (PRB), que sofre fortes críticas por cortesgastos com drenagem urbana e manutenção das encostas e pela faltapreparo da cidade para enfrentar chuvas e enchentes, que estão longeser uma novidade.
Por volta das 20h, Crivella disseentrevista à TV Globo que havia enviado "20 homens" para as ruastoda a cidade para resolver incidentes como bolsões d'água. Já na manhãterça-feira, ele admitiu que faltou pessoal nas ruas e que a prefeitura terámudar o protocolooperação previsto para essas situações.
"Teremos que ter reboques, pessoal da conservação e da Comlurb esperando previamente nesses locais", disse o prefeito, afirmando que já havia constatado a necessidade dessa açãochuvas anteriores. "Infelizmente, não fomos prudentes para fazer agora", disse.
Durante o temporal, a prefeitura acionou 45 sirenes26 comunidades - mas não no Morro da Babilônia, onde duas vítimas morreram soterradas. O órgão demorou a fechar o Túnel Rebouças, via crucial da cidade onde motoristas passaram mal durante horasengarrafamento, respirando monóxidocarbono proveniente dos carros.
As cobranças aumentam o desgaste do prefeito, que enfrenta um processoimpeachment aberto há uma semana pela Câmara dos Vereadores e deve apresentardefesa na próxima semana. O processo tem basedenúnciairregularidades na postergaçãoum contrato municipal autorizado por Crivella.
A sala virou mar
No Jardim Botânico, um dos bairros mais afetados, foram 311 milímetroschuva entre meio-diasegunda e o mesmo horário na terça - o equivalente a quase toda a chuva que caiu no bairro no mêsmarço -, segundo o Alerta Rio. O volume formou rios caudalosos descendo por ladeiras como na rua Lopes Quintas, arrastando carros, pedras, terra, blocosconcreto, e abrindo crateras pelo caminho.
Apesaro volumechuva ter diminuído na terça-feira, o fluxoágua não paroudescer por ruas do Horto, parte do Jardim Botânico que fica no pé da da Floresta da Tijuca. Os morros verdes costumam tornar o local um recanto bucólico e sossegado na zona sul, mas com a chuva formaram trombas d'água que invadiram casas construídas sob a encosta, rompendo muroscontençãoterrenos e forçando novos cursos d'água passando por janelas, salas e escadarias.
"O rio está passando por dentro da nossa sala e saindo pela porta principal da casa", descreve o músico Bi Ribeiro, baixista da banda Paralamas do Sucesso, morador do Horto.
Sua esposa, a jornalista Patrícia Nóbrega, estavacasa fazendo jantar para os dois filhos adolescentes quando a lama começou a invadir a cozinha. De repente a porta começou a tremer com a pressão da água que vinhafora.
Patrícia correu com os filhos para o segundo andar e escutou a porta se romper, enquanto via a água subir do ladofora. A empregada doméstica, que estava no primeiro andar, já não conseguia mais sairseu quarto, e Patrícia começou a gritar por socorro. Vizinhos e um bombeiro acabaram vindo resgatar todos.
"A nossa casa acabou", diz, abrigada temporariamenteum prédio da vizinhança, mostrando fotos da residência com lama até a janela. "Parecia que a gente estavaum barco. A água enchendo a casa, tudo quebrando, os móveis nadando", descreve.
Suspeitadanos por desmatamento
Moradores do Horto ouvidos pela reportagem da BBC News Brasil acusam"descaso" a prefeitura do Rio e desconfiam que os efeitos da chuva tenham sido agravados pela capinagem recente da mata recobrindo parte da encosta, que está sendo preparada para receber um novo campus para o InstitutoMatemática Pura e Aplicada (Impa).
A vegetação cortada do terreno teria sido arrastada pela chuva, entupindo dutos que escoam riachos por debaixocasas e prédios - fazendo com que esses cursos d'água, com seu volume multiplicado, encontrassem novos caminhos.
Foi o que aconteceu na casaAndrea Maria Bruno, que mora do lado da mata e viu a água começar a entrar porjanela. A correnteza empurrou os móveis para a porta, fechando-a antes que Andrea conseguisse sair. Ela ficou com o braço preso para o ladofora, enquanto o nível da água subia. Foi salva por vizinhas e operários que trabalhavamuma obra na rua.
"Nossa casa está cheialama. Perdemos tudo", dizmãe, Maria Augusta Leitão Bruno,76 anos. Por sorte, ela e o marido, Getúlio, 79, não estavam lá durante o temporal.
Um riacho que vinha da mata era canalizado e passava sob a casaAndreia, mas o duto entupiu, e agora um rio atravessacasa e corta a vilacinco casasque mora, formando uma cachoeira incessante na escadaria, e impedindo que ela e outros moradores voltem.
"Esse é o único caminho que a água agora tem para passar", lamenta Priscila Accioly, moradora da vila. Na segunda, ela resolveu deixarcasa pouco maisuma hora após o início da chuva, e se deparou com uma enxurrada do ladofora, ouvindo os gritossocorroAndrea. "O barulho era o mesmo que estar dentrouma cachoeira", descreve.
Em nota, o Impa afirmou que não houve remoçãoárvores do terrenosua propriedade no bairro, apenasvegetação rasteira, e que contratou empresa especializada para fazer limpeza do capim do terreno nas últimas semanas, "para realizar testes geológicos e sísmicos para construir barreirascontenção". "O Impa cumpre rigorosamente todas as exigências dos órgãos municipais para obter a licençaobra, que ainda não foi iniciada", diz o instituto.
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