Mulheres sobrecarregadas e homens desempregados: famílias brasileiras chegam a 2019 aindaoint onabetcrise:oint onabet

Alessandra e Alexandre

Crédito, Fernando Quixote/BBC

Legenda da foto, Depois que Alexandre perdeu o emprego, Alessandra passou a sustentar a casa

Apesar dos efeitos colaterais, são os remédios que ajudam Alessandra, 45, a dormir, acordar e respirar durante crisesoint onabetasma, bronquite e síndrome do pânico. Essas doenças apareceram há alguns anos, quandooint onabetvida começou a mudar.

Em 2014, o maridooint onabetAlessandra deixou um emprego como gerenteoint onabetlogística e não conseguiu arrumar outro. Desde então, é o salário dela como agenteoint onabetviagens que sustenta a casa, onde também mora umaoint onabetsuas filhas,oint onabet18 anos e desempregada. Responsável pelas contas, sem carteira assinada, dinheiro no banco ou gastos que ainda possa cortar, Alessandra está cansada e doente. E é assim que ela eoint onabetfamília chegam a 2019.

Legenda do vídeo, O amor na crise: com mulher responsável pelas contas, marido assume tarefas domésticas

A recente recessão vivida pelo Brasil foi a maior desde os anos 1980, quando o Comitêoint onabetDataçãooint onabetCiclos Econômicos, da Fundação Getulio Vargas (FGV), começou a medir as crises brasileiras. Em 11 trimestres, entre 2014 e 2016, o PIB do país acumulou uma quedaoint onabet8,6%. Nesse período, o desemprego chegou a atingir 14,2 milhõesoint onabetpessoas e a renda per capita caiu 9,4%, o segundo pior resultado do século. Durante uma das crises mais longasoint onabetnossa história, muitas famílias passaram por transformações semelhantes às experimentadas por Alessandra.

Uma delas merece destaque, por influenciar com força as dinâmicas familiares: o protagonismo das esposas, grupo que não tinha salário ou cujo salário era secundário no sustento da casa. Na maioria dos casos, elas são as esposas ou companheiras, enquanto os maridos se identificam como "chefesoint onabetfamília".

Alessandra

Crédito, Fernando Quixote/BBC

Legenda da foto, 'Tem semanaoint onabetque a gente não tem grana', diz Alessandra sobre mudanças na vida da família após a crise

Um levantamento feito para a BBC News Brasil pelo professor Marcelo Neri, diretor do centrooint onabetpolíticas sociais da FGV, com baseoint onabetdados da Pesquisa Nacional por Amostraoint onabetDomicílios (Pnad), indica que as cônjuges se saíram melhor do que os chefesoint onabetfamília durante a recessão. Elas tiveram aumentos expressivosoint onabetrenda, horas trabalhadas e participação no mercadooint onabettrabalho. Nesta reportagem, o termo será usado no feminino já que 72,5% dos que ocupam esse papel são mulheres,oint onabetacordo com a Pnadoint onabet2017. É importante ressaltar que muitas brasileiras também são chefes - 29,28% das brasileiras exercem essa funçãooint onabetcasa.

Os dados da Pnad mostram que, entre o segundo trimestreoint onabet2015 e o segundo trimestre 2018, a renda das mulheres do casal cresceu 17,9% enquanto que a dos principais responsáveis pelo domicílio (cuja maioria éoint onabethomens) caiu 10,3%. O crescimento da renda do grupo das mulheres cônjuges também ultrapassou o dos jovens, os que mais sofreram com o desemprego - nesse período, a renda dos que se identificavam como filhos encolheu 9,6%.

O bom desempenho, no entanto, não é motivooint onabetcomemoração: emoint onabetmaioria, os rendimentos das mulheres não melhoraram a situação da família, mas apenas impediram que seus membros ficassem ainda mais pobres.

"A trabalhadora adicional entra no mercado para amortecer a quedaoint onabetrenda da família, como um colchão", diz Neri.

"Ou seja: há um ganho individual, mas uma perda familiar."

Na cozinha, enquanto se prepara para sair, Alessandra coloca potesoint onabetplástico com seu almoço e lanche da tarde dentrooint onabetuma bolsaoint onabettecido. Depoisoint onabetempilhá-los, equilibra uma banana sobre eles.

"Está na hora. Vamos?"

O relógio marca 6h15.

O retrocesso

Alexandre e Alessandra

Crédito, Fernando Quixote/BBC

Legenda da foto, Todos os dias, Alexandre leva Alessandra até o trabalho, no centrooint onabetSão Paulo

As paredes brancas da casa estão descascadas, sem pintura há algum tempo. O varal no quintal está quebrado. Ao tirar o carro da garagem, Alexandre diz que vai tentar consertá-lo mais tarde.

Alessandra senta no banco do passageiro para o trajetooint onabetuma hora até o trabalho, no centrooint onabetSão Paulo. Ela fala sobre o que mudou nos últimos anos.

"Tem semanaoint onabetque a gente não tem grana. Não tem. Se eu te falar que tem dez reais na carteira é mentira", ela diz, olhando pela janela.

"A gente nunca foi extremamente consumista...Mas começamos a ir ao shopping já almoçados, para não gastar, e a pesquisar muito só para comprar um paroint onabettênis. Vendemos carro, cortamos telefone fixo, TV...É apertado."

O desemprego e a perda do poderoint onabetcompra que ele traz geram sofrimento, diz a professora da Unicamp e presidente da Associação Brasileiraoint onabetEstudos do Trabalho Angela Araújo. Isso porque, ao longo do tempo, tais condições obrigam as famílias a repensarem até as pequenas escolhas: optar por roupas mais baratas e às vezes diminuir a quantidadeoint onabetcomida.

"A classe média e média baixa sofreram muito com a crise. As famílias não conseguiram manter o padrãooint onabetvida, que se tornou descendente. E a tendência ainda é essa:oint onabetqueda."

Alexandre, 49, trabalhavaoint onabetdistribuidorasoint onabetalimento há 20 anos quando,oint onabet2014, depoisoint onabetdesentendimentos com colegas, pediu demissão. Ele tinha experiência, dinheiro guardado e, antesoint onabetprocurar uma vaga, decidiu tirar alguns mesesoint onabetdescanso. Ao começar a enviar currículos, notou algo diferente. Os amigos também estavam desempregados,oint onabetantiga empresa havia fechado e nas entrevistas,oint onabetvez dos dez candidatos habituais, 40 disputavam os cargos mais altos.

"Foi quando eu percebi que o mercado estava sumindo", ele diz, dandooint onabetombros.

"É muito estressante você não ter grana para fazer o que fazia", Alessandra interrompe.

"A gente saia todo finaloint onabetsemana, né, Alê?", ela vira para o marido enquanto o trânsito para na avenida. "A gente dava uma volta no sábado ou no domingo, ia comer fora. Agora deixamosoint onabetter lazer…"

Na agênciaoint onabetviagens, onde ganha pouco maisoint onabetR$ 4 mil por mês, Alessandra manteveoint onabetfunção. Seu salário, que então ajudava a pagar as contas, tornou-se o único da casa.

Contratam-se mulheres

Em períodosoint onabetcrise, os empregadores preferem contratar ou manter mulheresoint onabetsuas empresas, dizem professores entrevistados pela BBC News Brasil. Apesaroint onabeta taxaoint onabetdesemprego ser tradicionalmente maior entre elas, durante recessões os empresários são guiados pela necessidade: mulheres têm salários menores do que homens e,oint onabetgeral, aceitam condiçõesoint onabettrabalho menos garantidas.

Em 2017,oint onabetacordo com a Pnad, os homens ganhavam,oint onabetmédia, 29,7% a mais do que as mulheres.

"Elas têm uma formação melhor, mais escolaridade, mas salários menores. Ganhar menos ou aceitar empregooint onabetcondições piores, sem carteira, é uma característica do emprego feminino que atrai as empresas. As empresas querem reduzir custos, se livrar das leis trabalhistas. É uma questãooint onabetsobrevivência", diz a professora do Departamentooint onabetEconomia da PUC Anita Kon.

As mudanças estruturais no mercado brasileiro foram fundamentais para permitir que mulheres como Alessandra se tornassem provedoras durante a crise, acrescenta a professora Angela Araújo.

Uma dessas transformações foi o crescimento, na última década, do setoroint onabetserviçosoint onabeteducação e saúde, onde elas são maioria. Desde o começo dos anos 2010, esse tipooint onabetocupação ultrapassou os serviços domésticos como a função que mais emprega brasileiras.

Por trás da expansão dos serviços, explicam os entrevistados, está a multiplicaçãooint onabetsistemas privadosoint onabeteducação e saúde - faculdades e clínicas particulares -, muitos deles contratantesoint onabetempresas terceirizadas. Por causa disso, os professores alertam que boa parte dessas vagas oferece condições precáriasoint onabettrabalho.

Para a economista e professora da UFRJ Lena Lavinas, a flexibilização, impulsionada pela reforma trabalhista, também pode ter ajudado a entrada ou permanência das mulheresoint onabetseus cargos. Com a possibilidadeoint onabetnegociação direta entre patrão e funcionário eoint onabetcontratosoint onabettrabalho intermitente com salários mais baixos, por exemplo, a resistência à contrataçãooint onabetmulheres - por receiooint onabetque engravidem ou faltem para se dedicar aos filhos - é menor.

Alessandra recebe como Pessoa Jurídica desde 2016. Ela pediu para ser mandada embora porque não conseguia mais pagar o colégio da filha caçula e queria ganharoint onabetrescisão para quitar as mensalidades. Sua chefe sugeriu que ficasse, mas deixasseoint onabetter a carteira assinada. Hoje Alessandra recebe o salário sem descontos e passou a trabalhar mais - ligações e mensagens fora do horário comercial são comuns.

Se setores marcados pela presença feminina cresceram na última década, o mesmo não se pode dizer dos "masculinos". A construção civil foi a campeãoint onabetdemissõesoint onabet2017. Foram 104 mil vagas fechadas, como mostram dados do Caged (Cadastro Geraloint onabetEmpregados e Desempregados). A indústriaoint onabettransformação demitiu 20 mil pessoas.

Alexandre diz que jáoint onabet2014 percebia que seu setor não ia bem.

"Às vezes estouravaoint onabetvendas e daqui a pouco não vendia nada. Antesoint onabetsair, vi que as empresas diziam que não dava para pagar a distribuição."

Enquanto Alexandre dirige, Alessandra conta sobre quando deixou o emprego para acompanhar o maridooint onabetuma transferência. Então, seu salário era apenas um complemento.

"Uma vez fiquei fora do mercado por três meses e só depois comecei a procurar emprego. Quando a gente foi para o interior, fiquei parada maisoint onabetum ano", ela diz.

"Falei pra ela 'se quiser, trabalha, se não quiser, ficaoint onabetcasa'. Quando ela ficou desempregada, era diferente. Não era tão ruim...", Alexandre continua a explicação, olhando pelo retrovisor.

As trajetórias profissionais das mulheres costumam ter um movimentooint onabetentrada e saída do mercado para se adaptar ao itinerário da família, explica a professora do Institutooint onabetCiências Humanas da Universidade Federaloint onabetJuizoint onabetFora Ana Claudia Moreira Cardoso. E seria por isso que muitas não conseguem subir na hierarquia profissional e permanecem auxiliares no sustento da casa.

"Essas entradas e saídas também são uma maneiraoint onabetmanter a desigualdade, porque você não está dando as mesmas chances para os dois sexos. Elas perdem a oportunidadeoint onabetconstruir uma carreira", diz Cardoso, que estudou a vivência dos trabalhadores e os processosoint onabetnegociação coletivaoint onabetseu doutorado.

Além dela, outros professores entrevistados pela BBC News Brasil defendem que, apesaroint onabetconsistente e representativaoint onabetuma luta por autonomia, a entrada das mulheres na forçaoint onabettrabalho aconteceu pela porta lateral.

Alessandra

Crédito, Fernando Quixote/BBC

Legenda da foto, Nos últimos anos, sobrecarregadaoint onabettrabalho, Alessandra desenvolveu várias doenças

Seus salários sempre foram inferiores aos dos homens e encarados como uma "ajuda"; elas eram e são maioria nos empregosoint onabettempo parcial, para dar conta das tarefas domésticas; e as funções que ocupavam ainda se parecem muito com as ditas "atividades femininas": o cuidado,oint onabetdiferentes acepções.

"O maior espaço que encontram são as funções parecidas com as que já faziam no domicílio, que é o cuidado do outro: saúde, educação, serviços domésticos. Entende-se que mulheres são boas para cuidar", diz Cardoso.

No entanto, mesmo com todas essas dificuldades, trabalhar tornou-se parte da identidade feminina, pondera a socióloga e professora da Universidade Federal do Riooint onabetJaneiro Bila Sorj. Segundo ela, é improvável que mulheres que agora veem seus rendimentos tornarem-se tão importantes para a sobrevivência da família voltem a ficaroint onabetcasa.

"Isso não regride porque elas realmente se percebem como trabalhadoras, como tendo uma participação no mundo público. A mulher considera que participar do mercado é um valor."

Todas essas transformações mexem com as definições tradicionaisoint onabet"chefesoint onabetfamília" e "cônjuges".

"Ela é a única que põe um dinheirooint onabetcasa. Eu só ponho uns trocados", Alexandre comenta, enquanto o carro se aproxima do centrooint onabetSão Paulo.

"Ela virou a chefe da família", ele diz, ao estacionaroint onabetfrente a um dos prédios cinzas da rua da Consolação. Alessandra abre a porta, bolsa e sacolaoint onabetmãos, seguida pelo marido. Na calçada, fumam um último cigarro.

Ela vai passar as próximas oito horas no escritório; ele será motorista para um aplicativooint onabettáxi. É assim que tira seus "trocados".

O motorista

Alexandre demorou a aceitar que ser motorista eraoint onabetúnica opção. Foram dois anosoint onabetcurrículos recusados até ser convencido a tentar.

"No começo eu não queria", ele diz ao voltar para o carro. "Eu tinha um cargooint onabetchefia e você ainda estáoint onabetcima do pedestal: não tem mais dinheiro, mas se acha conde, duque…"

O telefone toca. Ele tem um novo passageiro.

De acordo com os professores entrevistados, a crise econômica e os altos níveisoint onabetdesemprego que os brasileiros experimentam há anos são, claro, determinantes para o desânimo observado hoje. Mas eles ressaltam que há algo a mais nesse cenário: uma mudança profunda das vagas oferecidas, cada vez mais flexíveis e frágeis.

À recessão, dizem, soma-se o contexto da reforma trabalhista, texto aprovadooint onabet2017 que regulamentou contrários temporários e intermitentes e permitiu a negociação direta entre empregadores e empregados. Para esses especialistas, o Brasil seguiu uma tendência mundialoint onabetfragilizar as contratações, tornando-as mais esporádicas e sem garantias.

O professoroint onabetsociologia do trabalho da Unicamp Ricardo Antunes afirma que essas transformações fazem parte do que é chamadooint onabetquarta revolução industrial ou indústria 4.0. Nela, estaria incluída a substituição, como motor da economia, da indústria - um setoroint onabetrelações trabalhistas bem estruturadas - pelos serviços, onde essas trocas são mais flexíveis.

"A precarização é ainda mais intensa aqui porque a sociedade brasileira já nasceu sob a égide do trabalho escravo - só que hoje ele éoint onabetoutro tipo. O empresário acha que só por dar trabalho é um benfeitor."

Enquanto segueoint onabetbuscaoint onabetoutros passageiros, Alexandre conta que hoje,oint onabetentrevistasoint onabetemprego, as condições oferecidas são diferentes das que estava acostumado: são muitas exigências para um salário menor.

"O que eles querem? Que você seja PJ (pessoa jurídica) e receba R$ 3 mil para montar toda uma operaçãooint onabetlogística", ele diz, enquanto o aplicativo apita.

"Chega num pontooint onabetque você fala 'beleza, eu vou'. Mas sei que esse tipooint onabetcoisa não dá certo..."

Alexandre

Crédito, Fernando Quixote/BBC

Legenda da foto, Como Alessandra passou a trabalhar muito, Alexandre assumiu as tarefas domésticas

Empregos digitais

Diretamente implicadas nessa nova fase estão as plataformas digitais, acrescenta a professora Ana Claudia Moreira Cardoso. Os aplicativosoint onabettáxi usados por Alexandre, por exemplo, seriam um símbolo do tipooint onabetrelação trabalhista para o qual o Brasil estaria caminhando: virtuais e efêmeras.

"Muitas dessas empresasoint onabetplataforma digital tentam se vender como sinônimooint onabetautonomia e liberdade, dizendo que o trabalhador vai ser independente. As pessoas compram isso mas, quando entram, percebem que é uma falácia porque, se querem ter rendimento, precisam trabalhar pra caramba. A liberdade cai por terra."

"Hoje diminuiu até o ganho do motoristaoint onabetaplicativo porque todo dia aumenta cem carros na rua", Alexandre diz, dandooint onabetombros.

Tudo o que ele ganha vai para compras básicas no supermercado.

"Para o cara fazer um bom dinheiro precisa trabalhar doze, catorze horas por dia", diz.

Uma crise longa combinada a novas formasoint onabetencarar o trabalho seria a receita ideal para despertar um sentimento nos brasileiros: o medo.

Em junho do ano passado, o Índiceoint onabetMedooint onabetDesemprego da Confederação Nacional da Indústria (CNI) atingiu um dos piores resultados da série histórica, com 67,9 pontos. Calculado desde 1996, o indicador melhorou um poucooint onabetsetembro (65,7), mas ainda assim está muito acima da média histórica,oint onabet49,7 pontos.

Dirigindo seu carrooint onabetdireção à zona leste, onde prefere continuar o dia como motorista, Alexandre fala que aprendeu com a experiência do aplicativo. Ouvir os desabafos das pessoas lhe deu perspectiva sobreoint onabetprópria vida.

"Você vira meio que um psicólogo", ele pondera, avançando sob os viadutos da Radial Leste.

"É uma terapia e tanto. Você percebe que não é o único que está ruim. Numa semana peguei uma gerenteoint onabetRH que iria mandar dois mil funcionários embora."

Ele entraoint onabetuma rua lateral e aponta para a direita.

"Olha isso, há uns meses não tinha moradoroint onabetrua aqui. É como eu disse, sempre pode ser pior..."

Numa praça, folhasoint onabetpapelão e barracas cobrem os canteiros. Um grupooint onabethomens está sentadooint onabetroda, passando uma garrafaoint onabetvidrooint onabetmãooint onabetmão.

A sobrecarga

Quando Alexandre e Alessandra se reencontram, às 18h, dão um beijo rápido e fumam mais um cigarrooint onabetfrente ao escritório, na República. Ainda é dia por efeito do horáriooint onabetverão e uma luz amarela cai sobre os prédios do centrooint onabetSão Paulo.

"Não gosto desse horário", Alessandra diz, já dentro do carro. "Parece que estou fazendo algo errado, que não trabalhei."

"Que besteira", Alexandre ri. "Como foi lá?"

"Tudo bem. Hoje estou bem", Alessandra responde, olhando pela janela enquanto eles avançam pelas ruas da Sé, cheiasoint onabethomens e mulheres apressados.

"Aproveitamos esse momento para fazer piada", Alexandre diz à reportagem, batucando com as mãos no volante.

"Senão, ninguém aguenta."

Ele pede que Alessandra abra um vídeo no WhatsApp. Ela segura o celular e estende o braçooint onabetdireção ao para-brisa, para que o marido consiga assistir. Com sotaque caipira, um YouTuber anuncia as "cinco dicas para você que é pobre".

Com os olhos na tela, Alessandra ri, o rosto relaxado. Mas não é sempre assim.

Alexandre busca a mulher toda semana porque ela já teve crisesoint onabetpânico e desmaiou no ônibus ao voltar do trabalho. Ela também chegou a passar mal dentro do carro.

Alessandra tira uma bombinhaoint onabetasma da bolsa e aperta o tubooint onabetplástico duas vezes, com o bocal entre os lábios.

"Ela tem uma farmácia aqui. Já virei sócio das farmácias do bairro", Alexandre brinca.

"Não é só a pressão do trabalho, é toda a situação. Ela estava trampando que nem doida para colocar comida na mesa, fazia isso e aquilo, limpava e ainda tentava agradar", diz, sacodindo a cabeça.

Alexandre

Crédito, Fernando Quixote/BBC

Legenda da foto, 'Todo homem é machista', diz Alexandre, sobre dificuldadeoint onabetassumir tarefas domésticas

Além do trabalho foraoint onabetcasa, mulheres sempre dedicaram mais tempo às tarefas domésticas do que os homens. Com muitas delas tornando-se as principais responsáveis pela renda no Brasil, a tendência à sobrecarga é inegável, dizem os entrevistados pela BBC.

Dados da Pnad Contínuaoint onabet2017 mostram que as mulheres dedicam,oint onabetmédia, 20,9 horas semanais a afazeres domésticos e no cuidadooint onabetparentes ou moradores, enquanto os homens gastam metade desse tempo: 10,8 horas.

"O que acontece e acontecerá ainda é uma sobrecarga, enquanto os homens não se convenceremoint onabetque é preciso dividir", diz a professora Hildete Melo, da Universidade Federal Fluminense, que há décadas estuda mercadooint onabettrabalho e relaçõesoint onabetgênero. "E agora, nesse cenário, a mulher trabalha ainda mais."

Todas essas cobranças levam a um adoecimento que não é só físico, mas mental. A professora Ana Cardoso explica que transtornos como depressão, ansiedade e síndrome do pânico são mais comuns nos serviços, setor bastante feminino, enquanto queoint onabetpostos identificados como masculinos,oint onabetfábricas ou construtoras, os danos físicos são mais frequentes.

"Se a gente pensar que estamosoint onabetuma sociedade na qual ainda não se reconhece o adoecimento mental como verdadeiro, nem pelo público, nem pelo Estado, até a doença delas têm menos valor."

Há, no entanto, quem veja a crise como oportunidadeoint onabetreverter padrõesoint onabetcomportamento.

"É mais frequente hoje você ter maridos que realizem tarefas ditas femininas porque estão desempregados: lavar roupa, cozinhar. Isso vemoint onabetum movimento duplo, que inclui a luta feminina e feminista, mas também o papel secundário que os homens começaram a teroint onabetrazão do desemprego", diz o professor Ricardo Antunes, da Unicamp.

Foi isso que aconteceu com Alessandra e Alexandre. Às quartas, ele faz faxina.

"O Alê deu um salto nesse negóciooint onabetmachismo,oint onabetorgulho", Alessandra conta no meio do trajetooint onabetvolta, quando a noite já caiu.

"Ele aspira, passa pano, tira pó. Antes ele trabalhava que nem um louco e não tinha tempo, né. E a gente sempre teve quem ajudasse na casa. Essa mudança foi um pulo para nós dois", ela sorri.

Quando o carro volta à garagem, na Vila Industrial, a rua está vazia, como no começo da manhã. Antesoint onabetentraroint onabetcasa, eles se apoiam no portãooint onabetferro e fumam mais um cigarro.

Ali ao lado está o Subaru 1991 que Alexandre comprou há quatro anos, quando ainda estava empregado.

"Era meu sonhooint onabetconsumo", ele diz, o cigarro queimando entre os dedos.

Seu plano era reformar o carro, o que ele começou por conta própria, mas precisou interromper. Até o licenciamento deixouoint onabetpagar.

"Eu não tirava da garagem mesmo", ele dáoint onabetombros.

Apoiada no Subaru, Alessandra chama o marido.

"Lembra, Alê? Antes a gente costumava ir para o Guarujá no fimoint onabetsemana só para sujar a bundaoint onabetareia e voltar."

Alexandre sorri.

"Agora não dá mais", ela diz.

Alessandra pega o sacooint onabetpão que vai serviroint onabetjantar e entraoint onabetcasa. São 20h30.

A faxina

A manhãoint onabetquarta-feira está clara e silenciosa na Vila Industrial. É o silêncio das casas vazias: adultos no trabalho, crianças na escola, e uma ou outra senhora a cruzar a rua.

Alexandre aparece no portãooint onabetchinelos verde e amarelo, camiseta do Corinthians e bermuda surrada.

É diaoint onabetfaxina.

Em 2016, quando o dinheiro que tinha guardado acabou e não havia emprego à vista, ele ficou preocupado.

Em meio a entrevistas frustradas, a preocupação virou agitação, que se transformouoint onabetraiva, desânimo e inércia, até desembocar numa depressão

"Eu apagava tudo quanto era luz, ligava o videogame e ficava lá sentado. Para mim, eu só dava despesa. Quando você perde tudo,oint onabetautoestima vai embora", ele diz, tomando um café pretooint onabetpé na cozinha.

"Em 2017, virei aquela norte-coreano: queria explodir o mundo."

Alexandre falouoint onabetsairoint onabetcasa, porque se sentia um estorvo para a família. Nesse meio tempo, Alessandra começou a apresentar sinaisoint onabetsíndrome do pânico. Sentia faltaoint onabetar, não conseguia ficaroint onabetlugares fechados, estava cansada o tempo todo. A cada fimoint onabetsemana, mostrava-se mais lenta para limpar.

"Fiquei cego", Alexandre diz, enquanto coloca o copooint onabetcafé na pia, sobre o resto da louça suja.

"Me via como vítima, só que não percebia que Alessandra estava doente. Até que um dia nós sentamos e conversamos. Aí vi que estava tudo errado", diz, apertando as mãos.

Ele segue para o quarto para fazer a cama. Agita o lençoloint onabetelástico, ajusta-o ao redor do colchão e passa a mão sobre o tecido para que fique liso. Sacode os travesseiros e então estende a colcha sobre tudo.

Estudiosos do tema apontam que a divisãooint onabettarefas é um dos principais empecilhos para que homens e mulheres sejam mais iguais no mercadooint onabettrabalho. Em The Gender Revolution: Gender & Society (A Revoluçãooint onabetGênero: Gênero e Sociedade,oint onabettradução livre), a socióloga americana Paula England observa que as mulheres têm mais incentivos para arranjar empregos e adotar comportamentos antes tidos como masculinos, enquanto os homens são desestimulados - por questões financeiras e culturais - a assumir atividades femininas. Dessa forma, as transformações ocorreriam sóoint onabetum lado: as mulheres saem para o mercado, mas os homens não dedicam mais tempo à casa.

Como os incentivos não mudam, as diferenças também não diminuem. De acordo com uma análise do Institutooint onabetPesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre 1995 e 2009, a porcentagemoint onabetpessoas que fazem atividades domésticas ficou estável: mulheres sempreoint onabettornooint onabet90% e homens oscilando entre 46% e 50%.

Enquanto encera o chão da sala, Alexandre conta que encarar a faxina foi difícil. E não apenas por que não sabia que panosoint onabetchão e toalhas não podem ser lavados juntos. Ele diz que foi complicado, como homem, assumir essas tarefas.

"Todo homem é machista", ele explica, pingando o lustra móveis no pisooint onabettaco. "Me abalava que ela pagava tudo, até o cigarro. Mas o cara precisa entender que não estamos mais na décadaoint onabet1940."

Mas o casooint onabetAlessandra e Alexandre é uma exceção?

A maioria dos entrevistados acredita que há, sim, uma melhora na divisão das tarefas, mas eles divergem sobre seu alcance e profundidade. Alguns dizem que as mudanças são pequenas e estão concentradas nas classes altas e nos centros urbanos, onde há mais diálogo sobre esses assuntos.

A expectativaoint onabettodos está nos jovens.

"Os homens mais jovens são uma esperança. Começamos a ter exemplos minoritáriosoint onabetmaridos que cozinham, lavam louça, tomam contaoint onabetcriança, isso já é evidente nas classes sociais mais altas. Nas mais baixas, ainda é difícil", diz a professora emérita da UFRJ Alice Rangeloint onabetPaiva Abreu, que tem um longo históricooint onabetpesquisa sobre gênero e trabalho.

Para Abreu, essas alterações tímidas estão ligadas ao debate sobre os direitos da mulher, mais presentes nas conversas do brasileiro.

O mesmo tom é adotado pela professora Ana Cardoso:oint onabetsuas pesquisas, percebeu que jovens parecem querer construir uma relação mais igualitária com suas companheiras. Ela atribui essa percepção à maior presença das mulheres no mercado. Segundo Cardoso, quando a regra era a mulher ficaroint onabetcasa e o homem sair para ganhar dinheiro era mais difícil que o marido a encarasse como igual. Mas, à medida que começa a tornar-se independente, ela desperta uma nova visão sobre si mesma e faz com que o homem a vejaoint onabetforma diferente.

A filha mais velhaoint onabetAlessandra e Alexandre vive com o namorado no centrooint onabetSão Paulo. No apartamento que dividem com três gatos, Talita,oint onabet24 anos, conta que seu companheiro não só fazoint onabetparte na limpeza, como gasta mais tempo do que ele nessas atividades.

"No geral, tenho certeza que ele faz mais coisas do que eu. Já perdi as contas das vezesoint onabetque cheguei no trabalho e ele tinha limpado tudo sozinho."

Alessandra e Alexandre

Crédito, Fernando Quixote/BBC

Legenda da foto, Depois que Alessandra desmaiou no ônibus ao voltar do trabalho, Alexandre passou a buscar a mulher no trabalho

Futuro

Talita é professoraoint onabetinglês e teve vários ofertasoint onabetemprego nos últimos anos. O mesmo não vale para a caçula da família, Ana,oint onabet18 anos. Depoisoint onabetterminar o colégio particular, cujas últimas mensalidades foram pagas com atraso, Ana não conseguiu passar na faculdade que desejava nem arranjar um emprego. Juntou-se, então, aos "nem-nem", grupooint onabetjovens que não trabalha nem estuda e já representam 23% do total dos brasileiros entre 15 e 24 anos, segundo pesquisa do Ipea.

Mas agora Ana prepara-se para estudar Economia numa faculdade onde será bolsista.

Cercado pelas cadeiras da mesaoint onabetjantar, que espalhou pela sala durante a faxina, Alexandre diz que a filha sempre quis ser economista. "Nunca mudou, você vê só."

Ele suspira. "Mas já falei que elas precisam sair do país, não tem mais o que fazer aqui."

As palavras que melhor definem a visãooint onabetfuturo dos brasileiros, para a professora Ana Cardoso, são "faltaoint onabetperspectiva".

Há alguns anos, diz, acreditava-se que um curso superior seria suficiente para conseguir uma boa vaga. Tal crença não apenas caiu por terra,oint onabetrazão dos altos níveisoint onabetdesemprego, como a diminuição da renda tirou a possibilidadeoint onabetestudo das classes mais baixas.

No caso dos chefesoint onabetfamília, Cardoso explica, a perspectiva é negativa porque quando a economia melhorar,oint onabetinserção pode não acontecer via carteira assinada, mas por contrato temporário, e seu salário não deverá ser maior do que o recebido antes.

Duas noites antes, ao chegar do trabalho, Alessandra falava sobre o futuro quando Alexandre decidiu contar uma piada.

"Você sabe por que a esperança é a última que morre?", ele disse.

"Porque ela é a primeira que vai embora!"

Alessandra deu um tapa no ombro do marido.

"Tiramos coisas boas desse momento, acredito que vai melhorar", ela sorriu, antesoint onabetjuntar-se a Alexandre na risada.

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