Sobreviventes das balas perdidas: relatos mostram trauma das vítimas da violência no Rio:mk bet
Sobreviventes, os dois irmãos são partemk betuma estatística invisívelmk betpessoas feridas por bala perdida no Rio - e que tem impactos físicos e psicológicos duradouros.
O Estado não contabiliza casosmk betbalas perdidas. Não há uma medida precisamk betquantas pessoas morremmk betincidentes do tipo, nemmk betquantas conseguem sobreviver aos tiroteios diários que acometem sobretudo nas regiões mais pobres.
A BBC News Brasil conversou com sobreviventesmk betbalas perdidas sobre as marcas deixadas pelos ferimentos no longo prazo. Eles e suas famílias relatam o penoso processomk betrecuperação, o calvário para obter indenizações na Justiça e a ruptura representadamk betsuas trajetórias pela irrupção da violência.
'Mamãe ficou desesperada'
"Tia, tomei um tiro!" Pedro está commk betmãe na fila do Hemorio e esse é o seu jeitomk betexplicar à reportagem por que está ali, realizando exames no centromk bethematologia do Estado para uma cirurgia, a terceira após ser atingido.
"Eu e o meu irmão. A mamãe ficou desesperada", conta, abraçando a mãe.
Falante, o menino conta o que ocorreu com uma leveza desconcertante, lembrando o sangue espirrando do braço do irmão, a chegada ao hospital, os vômitos, os médicos chutando a porta no caminho para a salamk betcirurgia, a lâmina que viu antes da operação.
"Aí acordei, minha mãe do meu lado, e eu na cama. Fim!"
Ele brinca enquanto espera seu nome ser chamado para o exame, e lamenta estar perdendo aula naquela terça-feira porque era diamk beteducação física, quando joga futebol e basquete.
"Ele faz tudo o que não pode", diz a mãe, referindo-se às limitações impostas pela colostomia a um meninomk bet10 anos. Pedro mostra a bolsa transparente fixada rente à barriga sem rodeios, ao lado da cicatriz deixada pelo tiro. Ele vai fazer uma cirurgia para reconstruir o intestino e poder deixarmk betutilizar o objeto. Até lá, ele tem várias restrições alimentares e não deveria correr - mas não para quieto.
"Ele é muito positivo. É um guerreiro. Foi o que me deu força diantemk bettudo", diz Gabriela.
Vidas alteradas
Gabriela largou o empregomk betgerentemk betuma lanchonete para cuidar do filho. Ela diz que "tudo relacionado à colostomia é caro", sobretudo as bolsas. Ele utiliza aproximadamente 35 por mês, e só consegue obter cercamk betmetade delas na rede pública, mas recorre às redes sociais para pedir ajuda financeira e comprar as demais.
A família se informou com advogados para saber se poderia pedir algum tipomk betindenização, mas concluiu que não valia a pena entrar na Justiça, porque os tiros que atingiram seus dois filhos haviam partidomk bettraficantes.
Quando a família se mudou da Paraíba para o Rio, há cercamk bet15 anos, a regiãomk betGuadalupe era dominada por milícias. Depois, foi invadida pelo tráfico, e os confrontos se tornaram frequentes.
"O foco é na parte baixa da comunidade. Quando passa o caveirão, eles dão tiro. Acham que vai atingir policial, mas acabam atingindo inocente. Tem uns que nem sabem dar tiro direito. Pegamk betquem estiver passando", diz, sem planosmk betse mudar apesar da violência. "A bala perdida infelizmente não é mais perdida, é achada. A gente não tem o que fazer. Está perigosomk bettodo lugar."
Pedro diz que não sente medomk bettomar outro tiro. "Porquemk betlugar nenhum a gente está seguro mesmo", diz o menino. "Então, a qualquer dia a gente pode tomar tiro, se machucar feio ou até morrer."
A mãe foi com ele a uma psicóloga e foi orientada a sempre deixar que ele conte o que aconteceu, a embarcar no assunto com ele, sem evitar o tema.
"E aí ele vai falando o que ele lembra, que ele está na van e que é muito ruim levar tiro, e que está escrito na Bíblia que a gente está no mundo para sofrer, sentir dor e morrer. Ele diz, 'eu estou aqui só para sofrer e sentir dor.' Você não tem noçãomk betcomo é ruim ouvir isso do seu filho", diz Gabriela.
Mais tiroteios apesar da intervenção
A intervenção federal na áreamk betsegurança pública no Rio acabamk betcompletar quatro meses. De acordo com balanço do Observatório da Intervenção, grupomk betespecialistas criado para monitorar suas ações, o númeromk bettiroteios no Estado teve aumentomk bet36% no período.
Nos quatro meses antes do decreto do presidente Michel Temer, o Rio havia tido 2.355 tiroteios, conforme medição do aplicativo Fogo Cruzado. Já nos últimos quatro meses, foram 3.210 episódios.
Pesquisa realizada pelo Instituto Datafolhamk betparceria com o Fórum Brasileiromk betSegurança Pública no fimmk betmarço indicou que 92% dos moradores do Rio têm medomk betser vítimas ou terem um parente vítimamk betbala perdida - e que 8% já teriam sido vítimas ou tiveram um familiar atingido, o que equivale a 415 mil cidadãos.
Na mesma pesquisa, 76% da população disse apoiar a intervenção, mas 69% disseram achar que a presença do Exército "não fez diferença alguma" na segurança da cidade.
O tiroteio que vitimou João e Pedro reflete a recente escaladamk betviolência no Rio e a explosãomk betcasosmk bettiroteios provocados por disputasmk betterritórios entre facções criminosas e grupos milicianos, o aumentomk betincursões policiaismk betfavelas e o declínio das UPPs.
Mas as balas perdidas são um problema antigo no Rio, como bem sabe Josicleide Urbano da Silva. Há 11 anos, ela viveu desespero semelhante aomk betGabriela, vendo seus dois filhos baleadosmk betuma só vez dentromk betcasa, no Complexo do Alemão.
Assim como Gabriela, ela também foi questionada se seus filhos tinham "envolvimento com o tráfico" ao chegar no hospital.
Trajetórias interrompidas
Foimk bet2007, mas Josicleide, hoje com 50 anos, relembra os detalhes com vividez. Vitória,mk bet3 anos, e Ivo,mk bet17, estavam sozinhosmk betcasa quando um confronto entre policiais e traficantes começou. Ivo falou para a caçula se deitar no chão e continuoumk betpé no fogão, fazendo almoço para os dois.
Josicleide saiu às pressas do trabalho ao ser alertada do confronto pelo marido, conseguiu furar os bloqueios impostos pelo tiroteio e, ao entrarmk betcasa, viu a filha "sentadinha no chão", atingida por estilhaçosmk betbala na perna e na orelha, e o filho desmaiado, com um pano amarrado pela irmã onde estava sangrando. "A bala perfurou o braço e atravessou para o lado, rasgando as costas dele", conta.
O pior, entretanto, veio depois. Policiais acusaram Ivomk bettrocar tiros com a polícia e, do hospital, o levaram algemado para o Instituto Padre Severino. Ele passou oito noites preso no centro para menores infratores.
Dois meses depois, ele foi absolvido e inocentado pela Vara da Infância e Juventude do Estado do Rio e recebeu uma moçãomk betdesagravo do Conselho Estadualmk betDefesa da Criança e do Adolescente do Estado do Riomk betJaneiro, um pedido oficialmk betdesculpas por ter sido vitimizado fisicamente e "ainda acusado ilegalmente e injustamente da práticamk betato infracionalmk betassociação para o tráficomk betdrogas".
Mas Josicleide conta que o episódio interrompeu totalmente a trajetória do filho, que era estudante, trabalhava como jardineiro e sonhavamk betir para o Exército. Apósmk betdetenção, seu alistamento não foi aceito e ele viu os sonhos irem por água abaixo. Hoje, trabalha como mototaxista.
"Saiu foto dele no jornal, falando para o mundo todo que ele era traficante do Alemão. Depois veio o pedidomk betdesculpas, mas mesmo assim não o aceitaram no Exército. Sabiam o que tinha acontecido. Trataram ele muito mal quando ele foi se apresentar. Ele foi muito humilhado", conta.
Josicleide fez tratamento com uma psicóloga e até hoje toma remédio para dormir. Ela diz que a filha, hoje com 16 anos, ainda tem tremores quando há tiroteio. Já Ivo mudou totalmente.
"Eu acho que ele ficou meio revoltado, meio rebelde. Não gosta que ninguém fale do assunto. Não deixa ninguém tocar no braço dele (onde foi baleado). Quando ele saiu do Padre Severino passou um mês tomando remédio. Depois não teve mais nenhum tipomk bettratamento porque não quer."
A família entrou com uma ação indenizatória contra o Estado, mas o processo foi arquivado. "A gente queria que o Estado pagasse pelo erro que cometeu. Todo mundo não tem que pagar pelos seus erros? Com os pobres é assim."
Defasagens no atendimento
O psiquiatra William Berger, professor adjunto da UFRJ e pesquisador do Laboratório Integradomk betPesquisas sobre Stress (Linpes), diz que o traumamk betser atingido por uma bala perdida na infância ou juventude pode ser "devastador" para a formação do indivíduo.
"Ela pode crescer uma criança muito mais insegura, irritada, temerosa, com medomk betir para o colégio,mk betsairmk betcasa, podendo ocasionar por exemplo evasão escolar", afirma. "Quanto mais precoce, maior a tendênciamk betcomprometer um indivíduo que sobreviveu a um trauma desses", diz.
Berger acompanhamk betperto os efeitos da violência no Rio no Ambulatóriomk betViolência Urbana do Institutomk betPsiquiatria da UFRJ, que há quinze anos presta atendimento médico e psicoterápico gratuito a vítimas.
"Antesmk beteu começar a atender a essa população, eu achava que a situação não era tão ruim assim, que mídia pegava os piores casos e isso impressionava muito a opinião pública", lembra. "Hoje, posso dizer que os casos são muito piores do aparece na TV. Só tendo contato é que temos alguma dimensão do que essas pessoas passam no dia a dia", diz.
O ambulatório atende a pessoas que sofreram diversos tipomk betviolência,mk betbalas perdidas a assaltos com sequestro-relâmpago, estupros ou tiroteios no meiomk betuma salamk betaula com crianças.
Tais eventos podem gerar uma sériemk bettranstornos mentais, como depressão, transtornosmk betansiedade e síndrome do pânico. Mas a sequela mais grave, considera, são os casosmk bettranstornomk betestresse pós-traumático, patologia que começou a ser descritamk betsituaçõesmk betguerra, estudadamk betveteranos da Guerra do Vietnã, e que aparecemk betcidades com altos índicesmk betviolência, emk bettiroteios sem hora nem lugar para acontecer, como o Rio.
"O transtornomk betestresse pós-traumático (TEPT) é muito incapacitante. Gera um sofrimento enorme para o portador. Leva a prejuízos econômicos grandes, tanto pela perda da produtividade quanto por problemasmk betsaúde, e produz sintomas como dores abdominais, taquicardia, irritabilidade, tremores e até diarreia", explica.
Berger diz que casosmk betTEPT são subdiagnosticados porque os pacientes têm dificuldademk betfalar sobre a doença. "É preciso que os médicos procurem ativamente, perguntem sobre traumas sofridos, porque os pacientes não vão falar espontaneamente. Pelo contrário, ele vai esconder para não ter que lembrar daquilo que é tão sofrido para ele", afirma.
Apesar do quadro críticomk betviolência urbana no Brasil, um atendimento médico especializado está longemk betser uma realidade na redemk betsaúde pública, diz a psicóloga Edinilsa Ramosmk betSouza, do departamentomk betEstudosmk betViolência e Saúde da Escola Nacionalmk betSaúde Pública (Ensp), da Fiocruz.
"Nossos profissionais ainda estão muito pouco capacitados para lidar com violência urbana. Esse tema entra pouco na graduaçãomk betmedicina e enfermagem. E sabemos que é uma questão complexa,mk betmúltiplos fatores, na qual os profissionais têm que atuarmk betrede com outros setores da sociedade", afirma.
Responsabilização do Estado
Apesar da urgência do tratamento das sequelas físicas e mentaismk betsobreviventesmk betferimentos por armamk betfogo, o tempo dos processos indenizatórios na Justiça segue o mesmo ritmo morosomk betações judiciaismk betoutras áreas.
De acordo com o defensor público Daniel Lozoya, do Núcleomk betDefesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio (NUDEDH), os casosmk betbalas perdidas são tão recorrentes que há jurisprudência determinando que o Estado tem responsabilidade cível sobre casosmk bethomicídio ou lesão corporal resultantesmk betoperações policiais - mesmo que o disparo não tenha partido da polícia oumk betcasos nos quais não se descubramk betonde partiu.
O fundamento é que o Estado está assumindo riscos ao ir para o confrontomk betlocais densamente povoados. Além disso, há o entendimentomk betque, se a polícia está agindomk betbenefício da sociedade, mas lesa um terceiro, é razoável que a sociedade assuma esse encargo. Isso vale apenas para terceiros não envolvidos no confronto, frisa Lozoya.
No entanto, como os processos contra o Estado são muito demorados, com recursos até a última instância, muitas vezes a saída mais realista é entrarmk betum acordo.
"Nos acordos, é feito o pagamentomk betindenização com muito mais celeridade. Alguns casos conseguimos resolvermk betmeses. Agora tem demorado mais, já que o Estado estámk betcrise, mas ainda assim é incomparável com o tempomk betum processo", afirma.
Indenização 20 anos depois
A jovem Camila Lima é um caso emblemáticomk betdemoramk betum processo quando não se opta por um acordo. O seu caso completará 20 anosmk betsetembro - e ela finalmente obteve uma vitória no Superior Tribunalmk betJustiça (STJ),mk betBrasília.
Camila tinha 12 anos quando foi baleada ao sair da escolamk betVila Isabel, na zona norte do Rio, atingidamk betuma trocamk bettiros entre seguranças privados e bandidos que assaltaram uma joalheria. A bala atingiumk bet6ª emk bet7ª vértebras, e ela ficou tetraplégica.
De acordo com a decisão do STJ, as empresas envolvidas no processo devem indenizar Camilamk betR$ 450 mil por danos morais e R$ 450 mil por danos estéticos, alémmk betmanter uma pensão alimentar vitalíciamk betum salário mínimo por mês. São elas a Drogarias Pacheco, a Sendas e o restaurante Petisco da Vila, à época responsáveis pela contratação dos seguranças.
Apesar da vitória, seu advogado, João Tancredo, afirma que deve demorar até que ela recebamk betfato a indenização - já que o STJ ainda precisa avaliar os embargosmk betdeclaração apresentados pela defesa, e depois virão as longas discussões sobre como executar a sentença e aplicar a correção monetária sobre a indenização.
"Na maioria dos casos, os processos são um segundo martírio. As pessoas vivem um sofrimento duplo. Há o malmk betsi, e há o mal que o Estado causa com essa morosidade da Justiça", diz o advogado, responsável por uma ampla gamamk betaçõesmk betindenizaçãomk betcasos emblemáticos, como o do pedreiro Amarildo, o do moradormk betrua Rafael Braga, preso nos protestosmk bet2013, e o da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes.
"Há um número enormemk betvítimas que não procuram indenização porque não têm consciência do direito que têm. Isso é muito triste. É muito doentio uma sociedade achar que só tem obrigações, e não exercer o direito da cidadania", considera.
O casomk betCamila foi amplamente noticiado na época e causou grande comoção social. Vinte anos depois, ela acha que o problema se banalizou.
"Naquela época, casosmk betbala perdida não eram tão comuns. Agora, está virando rotina. Crianças baleadas, pessoas que morrem ou ficam com sequelas graves. Isso abala a família toda. E é só mais uma vítima, só mais um caso. O Estado não faz nada. É lamentável o ponto a que chegamos", afirma.