'É triste que eu tenha que tomar esse cuidado', diz torcedor gay que vai à Copa da Rússia sobre alertashomofobia:
Um destes alertas partiu do governo brasileiro para os 60 mil cidadãos que, segundo estimativas oficiais, têm ingressos para jogos da competição marcada para começar na próxima quinta-feira.
A cartilha para torcedores divulgada pelo Itamaraty na quinta-feira explica na seção sobre as leis locais que "não são comuns manifestações intensasafetopúblico" e recomenda expressamente que não haja "demonstrações homoafetivas", alémmanifestações sobre temas delicados - entre eles, os relacionados a orientação sexual.
O motivo seria uma lei2013, que tem o objetivo declarado"proteger criançasinformações que advogam pela negação dos valores da família tradicional".
Mais conhecida como "lei contra a propaganda gay", ela veta a distribuiçãomaterial informativo que defenda os "interessesrelações sexuais não tradicionais" para menores18 anos. Isso, na prática, proíbe manifestações públicas da comunidade LGBT no país. Violar a norma pode resultarmulta e deportação, alertou o Itamaraty.
Questionada sobre a inclusão desse alerta na cartilha, Luíza Lopes, diretora do departamento consular ebrasileiros no exterior do Itamaraty, explicou que a intenção foi prevenir "experiências ruins".
"Nossa preocupação é dar as informações necessárias para orientar brasileiros da melhor forma possível e evitar que passem por situações constrangedoras, e há uma lei específica sobre isso. Não poderia ficarfora", disse a embaixadora na coletivaimprensaque apresentou a cartilha.
'Risco significativo'
Uma mensagem semelhante partiu nesta sexta-feira do comitêRelações Exteriores do Parlamento britânico, segundo o qual cidadãos LGBT correm um "risco significativo" não só pela possível "violênciagruposjusticeiros", mas também por uma "faltaproteção adequada pelo Estado".
"A culturaextrema direita dos gruposhooligans russos pode colocar torcedores LGBT sob um risco especialserem alvoviolência", diz o relatório.
A ONG Fare, dedicada a combater qualquer discriminação no futebol, vem alertando torcedores LGBT sobre o assunto desde o ano passado.
A organização criou um canal especial no WhatsApp para quem deseja buscar informação e apoio ou fazer denúncias, e preparou um guia para orientar sobre esse problema no país.
"Casoshomofobia egruposextrema direita que 'caçam' pessoas LGBTaplicativos e na internet para atraí-los para apartamentos e depois gravar enquanto eles são humilhados estão aumentando" na Rússia, diz o documento.
A Fare também publicou recentemente um estudo mostrando que, após o veto a bandeiras com conteúdo radical nos estádios russos, houve um aumento no último anogritostorcida marcados pelo preconceito a minorias nesses locais.
"O aumento da homofobia é algo novo nos estádios russos. Hoje, mais do que nunca, vemos torcedores chamando adversários'gay'. Isso é uma prática que deriva da homofobia que parte do Estado", diz o documento.
Ponta do iceberg
Piara Power, diretor-executivo da Fare, diz que isso é apenas a "ponta do iceberg". "Esses são os incidentes públicos, mas há muitos outros que não vêm à tona", afirma.
A homossexualidade era crimesodomia na Rússia até 1993 e classificada como uma doença mental até 1999. Em 2012, uma decisão da Justiça do país baniu a realização da Marcha do Orgulho GayMoscou por 100 anos.
A Rússia foi considerada2017 o quarto país, entre 49 Estados europeus, com mais violaçõesdireitos e discriminaçãocidadãos LGBT, segundo a Associação InternacionalLésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (ILGA, na siglainglês).
De acordo com o Centro Para Pesquisa Social Independente, uma ONG baseadaSão Petesburgo, os crimesódio contra pessoas LGBT dobraram nos cinco anos desde a aprovação da lei contra "propaganda gay".
E o mais recente relatório da LGBT Network, a principal organização da área na Rússia, documentou 366 casosdiscriminação no período 2016-2017, dos quais 104 foram ocorrênciasviolência física, como assassinatos e estupros.
"Os ataques são frequentes porque é um país onde a homofobia está institucionalizada na legislação. Isso manda um sinal claro para grupos homofóbicosque não há problemaatacar gays, porque não serão investigados", diz Yulia Gorbunova, pesquisadora da ONG Human Rights Watch (HRW) na Rússia.
No entanto, destaca ela,dois dos principais eventos esportivos sediados pela Rússia - as OlimpíadasInverno,2014, e a Copa das Confederações,2016 -, não foi registrado nenhum incidente do tipo com torcedores.
"Talvez porque os torcedores LGBT estavam cientesque era um ambiente hostil a eles e agiramforma mais discreta, mas o fato é que pessoas abertamente homossexuais na Rússia não estão seguras, e isso se aplica também aos estrangeiros."
A BBC News Brasil procurou a embaixada da Rússia ano Brasil, que não se manifestou sobre o assunto até a publicação dessa reportagem.
Combate ao preconceito
A Fifa criou nos últimos anos políticas para combater o preconceito e a violaçãodireitos humanospartidasfutebol, e criou um canal online para denúncias.
A entidade e os organizadores da Copa da Rússia também já se manifestaram para dizer que garantirão a segurançatorcedores gays.
Será usado ainda um sistemamonitoramento antidiscriminaçãotodas as partidas da Copa, permitindo ao árbitro "interromper, suspender ou até mesmo abandonar" um jogo se "um comportamento discriminatório não cessar".
"Também trabalhamos com diversos times participantesmedidas educacionais preventivas, entre eles, é claro, os anfitriões, a Rússia", disse o diretordiversidade e sustentabilidade da Fifa, Federico Addiechi,um comunicado.
Ao mesmo tempo, diz a pesquisadora da HRW, o governo russo tomou algumas medidas para impedir que grupos radicais criem problemas durante o evento.
"As autoridades russas não são estúpidas. Sabem que precisam garantir a segurança dos visitantes. Alguns dos líderes foram detidos e interrogados, e foram enviados alertas contra possíveis ataques e agressões", afirma.
Ambiente tóxico
Mas Gorbunova alerta que, apesar da influência do governo sobre os grupos ultranacionalistas e das ações para evitar maiores problemas durante o evento, o ambientegeral no país é "tóxico" para cidadãos LGBT.
"É uma herança da era soviética e um reflexo dos valores cristãos num paísque não há uma separação entre a Igreja e o Estado", afirma a pesquisadora.
"O governo promove esses valores conservadores para contrapor os valores mais progressistas do Ocidente e, assim, reforça essa atitude hostil do povo. Isso não vai mudar na sociedade enquanto as autoridades tiverem essa posição."
Power, da Fare, diz que os torcedores LGBT não devem ter medo, mas recomenda cautela. "Se um casal LGBT ficarum hotel, haverá menoschancester problemas do que se ficarum apartamento", diz.
"O mesmo se aplica a quem estácidades maiores, como Moscou e São Petesburgo, do quelocais mais remotos, como a cidadeSamara."
Ele explica que a organização não prevê ataques a pessoas LGBT na Copa, mas diz ser bom esses torcedores teremmente que a maioria dos torcedores serão russos, "e eles podem se ofender".
"A Copa será um período especial, com o mundoolho na Rússia. A polícia vai conferir mais proteção, e população vai ser mais tolerante, porque sabe que terá muitos visitantes e quer exibir o país da melhor forma possível", diz.
"A questão é quanto tempo isso vai durar e se as pessoas que agora batalham por direitos iguais enfrentarão ainda mais dificuldades."