O que o caso do homem que ejaculoumulher no ônibus diz sobre a lei brasileira?:
O episódio colocou sob os holofotes um problema cada vez mais recorrente no transporte públicoSão Paulo - segundo dados oficiais, a cidade registrou 288 casosabuso sexualônibusjaneiro a julho2017, trens e metrô (pelo menos um por dia). De acordo com informações divulgadas pelo portal UOL, o númerocasos registrados no metrô cresceu mais350%2016, se comparado com o ano anterior.
Mas para juristas e especialistasDireito ouvidos pela BBC Brasil, esses casos expõem um problema na legislação: não há um tipo penal específico para classificá-los. Além disso, há uma dificuldade na interpretação da violência que não é física.
"O juiz considerou que era uma mera contravenção penal porque ele não consegue entender que existiu um constrangimento mediante violência. Isso porque ele só consegue entender como violência a violência física", afirmou à BBC Brasil a doutoraFilosofia do Direito e integrante do Comitê CEDAW/ONU (Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da ONU), Silvia Pimentel.
"Mas existe a violência simbólica, moral, psicológicaum ato como esse. É interessante que se abra na sociedade um debate jurídico a respeitoverificar que o artigo 213 (da lei do estupro) pode ser legitimamente interpretado e aplicado quando, independenteviolência física, exista outra violência como essas."
Entre dois extremos
Mas para além da questãointerpretação da "violência" nesses casos, outros especialistas apontam a dificuldadepenalizar esse tipoatoacordo com a legislação atual, que resume os crimes sexuais ou a "estupro" ou a "perturbação ao pudor".
Segundo Silvia Chakian, promotoraviolência doméstica do Ministério PúblicoSão Paulo, o problema é que "ficamos entre um crimeuma pena muito branda (contravenção penal) ou vai para a outra ponta, que é crime hediondo (estupro)".
"Não temos na legislação um tipo penal que se encaixe nesse tipoconduta. Para qualificar como estupro, os elementos precisam estar muito bem configurados - senão vai causar absolvição. E se não tem resposta penal adequada nesses casos, fica muito ruim. A sensação para essa mulher éque a integridade fisica, psicológica, sexual dela não vale nada para a Justiça. A sensação para ele éque saiu barato praticar esse ato."
Na decisãoque determina a soltura do réu, o juiz menciona a gravidade do caso, mas pontua que "penalmente, o ato configura apenas contravenção penal".
"O ato praticado pelo indiciado é bastante grave, já que se masturbou e ejaculouum ônibus cheio,cima da passageira, que ficou, logicamente, bastante nervosa e traumatizada. Ademais, pelo exame da folhaantecedentes do indiciado, verifica-se que tem histórico nesse tipocomportamento, necessitandotratamento psiquiátrico e psicológico para evitar a reiteraçãocondutas como esta, que violam gravemente a dignidade sexual das mulheres, mas que, penalmente, configuram apenas como contravenção penal."
Diante dessa situação, Chakian defende a criaçãouma nova tipificação criminal para esse tipoato, determinando uma punição intermediária. "A gente tem lei demais mesmo, mas existem formasviolência como essa que não têm tipificação adequada. E se você não nomeia, você não visibiliza o problema, você não colhe dados sobre ele nem pode criar políticas para combatê-lo", opina.
Segundo ela, outros países instituíram tipos penais intermediários para esse tipocaso.
"Em Portugal, por exemplo, há uma classificação diferente para condutas onde não há penetração, coito. Outros países optam por colocar uma cláusuladiminuiçãopena no estupro. Mas é um debate importante a se fazer aqui."
Lei mais severa
Até 2009, havia diversas classificações para os crimes sexuais, derrubadas quando todo o tipoviolência sexual passou a ser considerado crimeestupro - eliminando o "atentado violento ao pudor", por exemplo, que tinha a mesma punição, mas era considerado outro tipoinfração.
A mudança foi considerada um avançofavor dos direitos das mulheres, mas para Ana Gabriela Braga, professora do cursoDireito na Unesp, trouxe um problema.
"A gente comemorou, mas aí veio essa resposta: o crime ficou muito grave, então não vai condenar. Nesse caso, enrijecer (a lei) é questionável, porque olha o que a gente tevevolta."
DoutorDireito Penal pela USP, o jurista RenatoMello Jorge Silveira avalia que seria necessário diferenciar legalmente os crimes sexuais para não "equiparar" todos eles.
"(Essa equiparação) gera um vazio jurídico muito forte. Essa conduta do ônibus é reprovável. Eu só tenho um poucodificuldadeaceitar que ela venha a ser equiparável a um estupro 'tradicional'. Ela mereceria uma graduação um pouco menor do que alguem que é forçado à conjunção carnal", afirma.
"Uma apalpada não desejada pode ser equiparada proporcionalmente a uma situaçãoviolência invasivaestupro? Um beijo forçado, por mais reprovado que ele seja, não invasivo da mesma forma que um estupro no sentido tradicional."
Punição exemplar?
O clamor nas redes sociais por uma "punição exemplar" ao homem flagrado no ônibus também preocupa, afirma Jacqueline Sinhoretto, pesquisadoraSociologia da Violência da UFScar (Universidade FederalSão Paulo).
"As pessoas estão pedindo uma punição acabada, bruta, mas a vitima mal foi ouvida", pontuou.
Ela ressalta que a soltura do réu, neste caso, não significa necessariamente "impunidade".
"Ele vai ser processado pelo Ministério Público e pode ser condenado. Não é que ele foi absolvido. Mas as pessoas estão cansadasconviver com esse tipocoisa e aí descontam tudoum caso só. Não dá pra pegar esse caso e condenar todo o sistema penal", disse.
Mas mesmo sem uma tipificação específica, algumas especialistas defendem que esse caso deveria, sim, ser considerado estupro - e ter a punição que esse crime exige.
A promotora Gabriela Manssur, que atua há oito anos no combate à violência contra a mulher, considera que é preciso um olhar "mais humano" do Judiciário.
"É muito mais grave que uma contravenção penal. Temos que lutar com os crimes que temos e adequar os fatos aos tipos penais existentes. As mulheres não podem ficar à mercê do Estado. Ejaculou na mulher sem a permissão dela? Por que não podemos falarestupro? É preciso um olhar mais atento e mais humano: não com os réus, os agressores, mas para as mulheres", afirmou.
Silvia Pimentel reforça. "Eu sou pelo Direito Penal mínimo (contra punições excessivas), mas não quando estamos falandocrimes contra a mulher. Sou contra colocar na cadeia gente que furtou comida. Mas não dá para abrandar o sistema penal nos casosque a vítima é a mulher. E, nesse caso, houve um abrandamento lamentável."
A BBC Brasil procurou o juiz José Eugenio do Amaral, mas a assessoriaimprensa do TribunalJustiçaSão Paulo afirmou que ele não poderia falar sobre o caso.