'As pessoas estão muito fechadas ao diferente': a difícil inclusão do autista na escola:

Carolina Felício e Júlia

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, A empresária Carolina Felício com a filha Júlia,17 anos: três negativasmatrícula e luta por educaçãoinstituição regular

Uma lei federal2012 garantiu a autistas o acesso à educação e ensino profissionalizanteescolas regulares. Fixou puniçãoaté 20 salários mínimos (R$ 18,7 mil) ao gestor escolar que recusar a matrículaaluno com autismo - e prevê perda do cargocasoreincidência.

Na prática, contudo, as recusas continuam - e muitas vezes por desinformação das famílias sobre seus direitos.

Três escolas privadas já negaram matrícula à Júlia, que viveRibeirão Preto (SP). Letícia soma nove negativasseus oito anosvida, todasinstituições privadas da capital paulista.

Em geral, as negativas são "veladas": as instituições dizem não ter estrutura, material adaptado. Às vezes impõem condições - como um psicólogo bancado pela família - ou citam o atraso no desenvolvimento da criança como obstáculo à admissão.

Amígdala no cérebro

Crédito, Science Photo Library

Legenda da foto, Indivíduos com autismo possuem menos atividade na amígdala (em vermelho), que tem um papel fundamental no processamentoemoções

Reaçãooutros pais

Para a empresária Carolina Felício,43 anos, mãeJúlia, a batalha pela educação regular começou cedo: mães da escolaque a filha cursava o jardiminfância fizeram um abaixo-assinado pedindo a saída da garota.

"Ela tinha um problema motor grande à época e precisavaajuda para andar, mas a coordenação aceitou recebê-la. Uma semana após o início das aulas, as mães, com medoos filhos serem prejudicados, pediram que ela saísse. A coordenação me informou, e a Jú acabou saindo", conta.

Carolina recorreu à fantasia para consolar a filha. "Falei que havia monstros na escola, porque ela chorava querendo ir."

Aos seis meses, Júlia foi diagnosticada com uma das formasepilepsia mais graves da infância. Remédios para controlar as convulsões dificultaram a identificação dos sintomas, e o diagnósticoautismo veio somente aos três anos.

"A Jú não falava. Chegamos até a cogitar algum meiocomunicação alternativa, mas trabalhamos a fala e a comunicação com figuras. Ela também tem intolerância a som, luz, ruídos e certos tecidos e dificuldade com relacionamento, comunicação e intolerância a esperas", diz a empresária.

Após o episódio no jardiminfância, a mãe se mudou com a filha para São Paulo e depois para os Estados Unidos, onde Júlia começou um tratamento com medicações e terapia comportamental que realiza até hoje.

Quando voltaram a Ribeirão Preto, quatro anos depois, Júlia conseguiu ingressaruma escola particular da cidade, mas a mãe resolveu tirá-la da escola quando ela completou 12 anos.

"Foi por faltamaterial adaptado,conhecimento dos professores para lidar com o assunto einclusão, principalmente com outras crianças. Daí continuei a educação delacasa, com terapeutas e professores", conta a mãe.

Agora, aos 17 anos, Júlia está retornando à salaaula - mas aos poucos.

"Fizemos um esforço intenso para prepará-la. A escola está ajudando, houve um trabalho com professores e alunos sobre inclusão. Mas a volta será gradativa: ela ficará por períodos menores na escola, para ter vontadevoltar no dia seguinte sem se cansar."

Papel da escola

Para a psicóloga Denise Callao, do Instituto Neurocomportamental da Flórida (EUA), o preconceito ainda é a maior dificuldade para portadorestrantorno do espectro autista.

"É o que barra qualquer tiporelacionamento. As pessoas estão muito fechadas para o diferente. Desde que a gente aceite simplesmente (o autismo) como uma característica diferente do ser humano, tudo pode ser mais fácil."

Diferentemente da mãeJúlia, que optou pela educação convencional, a enfermeira Elaine Sabbag,40 anos, decidiu matricular Letíciauma instituição específica após as nove negativasescolas regulares.

A escola têm as chamadas salas regulares e inclusivas. Estas últimas atendem, por exemplo, alunos cadeirantes e com autismo. Há todas as disciplinas normais (exceto inglês), atendimento especializado, teatro e música.

"Essa escola tem mais preparo, conhecimento e dedicação a uma criança especial. Ela estudauma sala com mais seis crianças, com acompanhamento terapêutico", afirma a mãe, que também vê pontos negativos nessa opção.

"Ela vem imitando muito outras crianças, e falando menos, por exemplo", afirma.

Letícia,oito anos

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Aos oito anos e com autismo, Letícia teve a matrícula recusadanove escolas

A questão,fato, divide paisfilhos autistas. Há quem defenda o direitoeducar as criançasescolas específicas oucasa, enquanto outros dizem que a educação regular melhora a socialização.

"A melhor escola é a que quer receber a criança. Claro que queremos que elas estejam incluídas no mundo desde pequenas e colocá-las numa escola específica já é separá-los. Mas se a escola regular não tem condições e a criança irá sofrer, a questão da escola especial pode ser pensada", avalia a psicóloga Callao.

Punição e método

Carolina e Elaine dizem que não denunciaram as escolas que recusaram suas filhas porque desconheciam as sanções previstas na lei2012. Mas a desinformação também está no poder público, diz a mãeJúlia.

"Quando procurei a delegaciaensino municipal e estadual sobre esse assunto, questionaram se a lei estavavigência", afirma a empresária, que conseguiu matricular a filha na instituição atual após intervençãoum promotor.

Qual seria, portanto, a melhor maneiraensinar e inserir uma criança autista na escola?

Para a educadora e especialistainclusão Maria da PazCastro, que trabalha na Escola da Vila,São Paulo, não há uma solução exata, já que cada criança (inclusive as autistas) tem características específicas.

"A única regra é conhecer a criança, deixar ela se apresentar a você, porque não interessa o que ela tem, mas quem ela é. É importante que as outras crianças aprendam a conviver e conversem entre si. E às vezes elas perguntam: 'Por que ele (colega autista) não fala? Por que ele gira?' E eu respondo: 'Não sei, ele ainda não fala do jeito que você fala, mas pergunta para ele, gire um pouco com ele'."

Castro afirma que esse desafio da inclusão deve contemplar uma reflexão sobre o próprio modeloeducação.

"A escola é repressora, não foi feita pra atender a diferenciação, é um funil. E criança não foi feita para ficar cinco horas sentada numa sala. Mas acho que as escolas irão mudar, porque vão ser invadidas pela diversidade", aposta.

Mãe da adolescente Júlia, Carolina vai na mesma linha e defende o empregoplanos individualizadosensino.

"Estão fazendo um plano para a Jú. E isso se aplica a qualquer criança, pois estudos já mostraram que nosso métodoensino é arcaico. Os planos já são feitosescolasreferência no mundo. É nissoque acredito, não apenas para autistas, mas para todas as crianças. Pois cada uma tem seu talento ehabilidade."