'Invisíveis até na morte': a lutaemail betnacionalum moradoremail betnacionalrua para evitar queemail betnacionalmulher fosse enterrada como indigente:email betnacional
"Ela era casada, mas nos casamosemail betnacionalnovo, na rua. Todo mundo aqui conhecia a gente. De repente ela foi embora, sumiu - quando soube dela, já tinha morrido. Andei muito, fui, voltei, meus pés ficaram inchadosemail betnacionaltanto andar. Passeiemail betnacionaltodo canto para não deixá-la ser enterrada como indigente", conta o morador.
A trajetória expõe um problema ainda crítico no Brasil, o da identificação da populaçãoemail betnacionalsituaçãoemail betnacionalrua.
Vítimasemail betnacionalinúmeros estigmas, essas pessoas somavam 101,8 mil no Brasilemail betnacional2015, segundo estimativa do Institutoemail betnacionalPesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Desse total, 40% não possuem documentosemail betnacionalidentificação,email betnacionalacordo com o Movimento Nacional da Populaçãoemail betnacionalSituaçãoemail betnacionalRua (MNPR).
Tal situação, alémemail betnacionaldificultar o acesso a quase todos os direitos negados pela falta da comprovação (de ir e vir, a voto, educação, saúde, habitação e trabalho, por exemplo), também os torna invisíveis na hora da morte. Sem identificação, são enterrados como indigentesemail betnacionalcemitérios públicos.
"Às vezes a gente tem a impressão que até para morrer esse povo não é gente, e a gente precisa muito superar isso", afirma Nailson Nelo, da Pastoral do Povo da Rua.
Via-crúcis
Após Ana Paula sumir, Cláudio passou duas semanas àemail betnacionalprocuraemail betnacionalpraças, abrigos e hospitais da cidade. Em 28email betnacionaljulho, soube que a companheira,email betnacional51 anos, havia morrido no Instituto Doutor José Frota, um dos maiores hospitaisemail betnacionalFortaleza.
Àquela altura, a mulher falecera havia dois dias e o corpo, sem identificação, já tinha sido encaminhado para o Instituto Médico Legal (IML) -email betnacionalcinco dias, seria direcionado para sepultamento.
Menosemail betnacionaluma semana: este foi o tempo que Cláudio teve para reclamar o corpo e provar que era companheiroemail betnacionalAna.
"No hospital, a assistente social confirmou que o corpo já estava no IML, mas não me deixaram vê-la, pois não tinha como provar que a gente vivia junto. Foi difícil, rodei muito até conseguir", conta Cláudio.
Para Fabiana Miranda, representante da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), ainda há muitos obstáculos, como discriminação e preconceito, para que moradoresemail betnacionalrua possam ter acesso a serviços públicos.
"A burocracia ainda é extremamente rígida e não consegue se adequar às necessidades da populaçãoemail betnacionalrua. Gestores precisam flexibilizar exigências à realidade dessas pessoas", analisa a defensora pública.
No casoemail betnacionalClaudio, o entrave era a faltaemail betnacionaldocumentação da companheira - ou seja, era preciso provar que o corpo que ele reclamava era mesmo da pessoa a qual ele se referia.
Segundo a assistente social Carla Carneiroemail betnacionalSouza, que acompanhou todo o processo, foram feitos examesemail betnacionalpapiloscopia (impressões digitais) eemail betnacionalDNA para comprovar a identidade do corpo.
Nesse processo, descobriu-se que o casal já tinha sido abordado por um dos serviços da prefeitura, o Centro Pop (de referência à populaçãoemail betnacionalrua), e que possuía cadastro lá.
"Então foi encontrada uma certidãoemail betnacionalcasamentoemail betnacionalAna, onde constava o nome real dela, que era Maria Emília. A certidão havia sido tirada para poder emitir os seus documentos civis", conta Carla. Ana Paula provavelmente perdera os documentos.
Nesta busca, também foi identificada uma filhaemail betnacionalAna Paula, que contribuiu ao reconhecimento do corpo, por meio do exameemail betnacionalDNA, mas se absteve da responsabilidade pelo enterro.
Faltava ainda, contudo, comprovar a relação estável do casal.
"Tive muita ajuda. Eu não podia deixar que ela fosse jogada na vala como nada. Era a minha família, a gente ia pra todo canto, pegava a estrada e ia mangueando (mendigar)", conta Cláudio, alcoólatra como a antiga companheira.
Solução
A comprovação da união estável só foi possível por meio do Núcleoemail betnacionalDireitos Humanos da Defensoria Pública do Ceará, que tomou uma medida denominada liberação administrativa.
Assim, Cláudio pôde reconhecer o corpo da companheira e se responsabilizar por ele. Há pouco maisemail betnacionaldois anos isso não seria possívelemail betnacionalum prazo tão curto, e levaria um tempo mínimoemail betnacionaldois a seis meses.
"Antigamente, para conseguir essa liberação, era preciso entrar com uma ação judicial, e eles quase nunca conseguiam, pois normalmente a populaçãoemail betnacionalrua não tem nem sequer documentação, ou seja, são invisíveis 100%", explica a defensora pública geral do Ceará, Mariana Lobo.
Antes, através da ação judicial, era preciso oficiar todos os cartórios da cidade para verificar se a pessoa morta ou quem fazia o pedido tinha alguma documentação, processo que poderia levar até seis meses - e os corpos acabavam sendo enterrados como indigentes.
"Além desta situaçãoemail betnacionalque eles estão, negar o direito à cidadania, negar o direitoemail betnacionalvelar um corpoemail betnacionalum ente querido seria outro ônus e outra invisibilidade colocadaemail betnacionalcima deles", afirma a defensora.
'Minha infância foi uma porcaria'
De fato, a vidaemail betnacionalClaudio é marcada por dificuldades. Logo ao nascer, ele foi trocado na maternidade. Com dois anos voltou para a família biológica, onde viveu até os 18 anos, no bairro Vila União,email betnacionalFortaleza.
Rejeitado pela mãe e alvoemail betnacionalviolência doméstica, ele cresceu fugindoemail betnacionalcasa. Com laços familiares rompidos, buscou refazer a vida nas vias da cidade, onde conheceu Ana Paula.
"Minha infância foi uma porcaria. Minha mãe me batia, não gostava da minha cor, morreu impedindo que a chamasseemail betnacionalmãe. Com Ana Paula peguei a estrada. Mendigamos juntos, vivemos muita coisa, era minha companheira. O que eu passei com ela, nem com minha família, que é sangue do meu sangue", relembra Claudio, que viveemail betnacionalesmolas e R$ 87 mensais do Bolsa Família.
Obstáculos
Para órgãos como o Conselho Nacionalemail betnacionalDireitos Humanos (CNDH) e o MNPR, estimativas do Ipea e dos municípios sobre populaçãoemail betnacionalrua no país não refletem a realidade. Para eles, o Brasil possui hoje aproximadamente 400 mil moradoresemail betnacionalrua.
"A contagem só é feita por meioemail betnacionalnúmeros que chegam pela assistência e pela população encontrada nas praças e vias mais movimentadas. Mas a populaçãoemail betnacionalrua também estáemail betnacionalterrenos baldios, buracos, lixões e outros lugaresemail betnacionalque a assistência não chega", diz Leonildo Monteiro, do CNDH.
Segundo ele, as principais demandas que chegam ao CNDH sobre populaçãoemail betnacionalsituaçãoemail betnacionalrua têm origem na faltaemail betnacionaldocumentação. "Tentamos garantir os direitos que lhe são básicos e que acabam não acontecendo por falta desta identificação, o que é um absurdo", avalia.
Há conversasemail betnacionalcurso para que o Instituto Brasileiroemail betnacionalGeografia e Estatística (IBGE) inicie a contagem desta populaçãoemail betnacional2020, mas não há nadaemail betnacionalconcretoemail betnacionalrelação a isso.
A Política Nacional para Populaçãoemail betnacionalSituaçãoemail betnacionalRua, instituída pelo governo federalemail betnacional2009, teve adesãoemail betnacionalapenas oito capitais até hoje, segundo o MNPR: Brasília, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte , São Paulo, Salvador, Fortaleza e Rioemail betnacionalJaneiro.
"O que acontece é faltaemail betnacionalvontade, preconceito. Não existe nem sequer orçamento, e assim vamos caminhando com as piores perspectivas possíveis. Houve avanços, como a criação dos centros pop, consultóriosemail betnacionalrua, mas isso só não basta, pois esta população só cresce", diz Anderson Lopes, um dos coordenadores nacionais do MNPR.
Uma semana após saber da morte da companheira, Cláudio conseguiu garantir o direitoemail betnacionalenterrar o corpoemail betnacionalAna Paula, cuja morte aparece no atestadoemail betnacionalóbito como "causa a esclarecer".
Sem lápide, e com direito apenas à numeração da cova anotadaemail betnacionalum papel, deu a ela um enterro simples, no cemitério público Parque Bom Jardim,email betnacionalFortaleza.
Como no poema Morte e Vida Severina,email betnacionalJoão Cabralemail betnacionalMelo Neto, o resultado da saga pode ser traduzido no verso: "É a parte que te cabe deste latifúndio".
Ao pé da cova rasa, Claudio se emociona com suas lembranças. "Sinto muita falta dela. Pegamos chuva, estrada, passamos fome, fomos humilhados. Até hoje eu sonho com ela."