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Como 'O ShowTruman' previu o futuro:
Ele conta a históriaum homem que viveuma realidade artificial, inventada por produtoresTV.
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O filme causou impacto no seu lançamento, mas ninguém sabia ao certo o quanto ele seria profético.
Nos anos que se seguiram, O ShowTruman se tornaria a incorporaçãoinúmeras ansiedades culturais, como a vigilância onipresente, o voyeurismomassa e a moda dos reality shows na TV, que varreu o planeta, mostrando todos os dilemas existenciais da vida para a audiência global.
Com roteiroAndrew Niccol e direçãoPeter Weir, a receita bruta do filme atingiu maisUS$ 125 milhões (cercaR$ 605 milhões) nos Estados Unidos e cercaR$ 264 milhões (cercaR$ 1,3 bilhão)todo o mundo.
Foram três indicações para o Oscar: melhor ator coadjuvante, roteiro original e diretor. Mas os números não representam a extensão do seu impacto.
O filme é profético. Ele apresentadetalhes o dia a diaTruman, um pacato vendedorseguros que desconhece totalmente o fatoquevida é o temaum programaTV eticamente questionável, transmitido para o mundo inteiro – quefamília e seus amigos são atores e o mundo àvolta é um cenário produzido por alguém.
Escolhido para aparecer na TV desde o nascimento, a vidaTruman é documentada por cinco mil câmeras espalhadas por toda a"cidade-natal" na ilhaSeahaven e transmitida 24 horas por dia para uma audiência fiel1,5 bilhãopessoas.
Até que, um dia, as mentiras daexistência começaram a ruir, depoisuma sérieanomalias acidentais, como um equipamentoiluminação que caiu do “céu” e a cenaque Truman encontra seu “falecido” pai vivo. Estas falhas levaram à revelação da realidade.
Mas, enquanto Truman decide bravamente fugir da“realidade” construída e sair daquela manipulação, parece que nós, enquanto sociedade, tomamos coletivamente a direção contrária. As linhasadvertência do filme foram solenemente ignoradas e o voyeurismo nos meioscomunicação ganhou raízes cada vez mais profundas nas nossas vidas.
Peter Weir afirmou à BBC que, apesar da notável e oportuna relevância do filme, ele não tinha ideiaque O ShowTruman fosse tão preciso. “Eu não tinha noção do tsunamireality shows que havia pouco além do horizonte”, ele conta.
Na época da produção do filme, os reality shows na TV estavam apenas começando. A série norte-americana Na Real (lançada1992) foi pioneira, mas o modelo holandêsBig Brother, com pessoas comuns morando por semanasuma mesma casa, transformaria o gêneroum fenômeno mundial.
Weir relembra um comentário do criadorBig Brother, “[que estava] na faseplanejamento na época do lançamento do filme. Ele disse algo como: ‘quando vi Truman, achei que era melhor nos apressarmos.’ Big Brother foi lançado cercaum ano depois.”
Mas a visão incisivaO ShowTruman sobre a vidavigilância constante foi um prenúncio não só da era dos reality shows na TV, mastoda a cultura das redes sociais.
Com o lançamentoBig Brother, O ShowTruman pareceu real demais. Mas, durante aprodução, segundo Weir, o conceito parecia um exagero para muitos dos envolvidos.
“O problema era que precisávamos aceitar que [O ShowTruman] foi acompanhado por uma audiência global por 30 anos, 24 horas por dia”, relembra ele.
Atualmente, este tipoprogramação parece muito menos absurdo, graças não só ao fluxo contínuoreality shows, mas à disponibilidade onlinetodo tipoplataformasredes sociais, onde os usuários documentam extensos períodos das suas vidas para que os espectadores possam apreciar.
O que háreal na ‘realidade’?
Weir também acertoucheio sobre as normas da televisão “sem roteiro”, antes mesmo que existisse esta denominação.
Como ocorre com todos os bons reality shows da TV, a “realidade”O ShowTruman, na verdade, é desenvolvida por produtores que ditam os acontecimentos no mundo restrito do protagonista.
O personagem Christof (Ed Harris), o megalomaníaco criador do programa, tem um olhar despótico que supervisiona tudo. Seu poder é ilustrado na cenaque ele manda “entrar o sol” antes da hora.
Os encontros com transeuntes e conhecidos são ensaiados detalhadamente, para que as interaçõesTruman com o mundo pareçam naturais.
O desejo coletivoobservar uma “realidade” mundana é descrito por Christof na abertura do filme: “nós enjoamosver atores nos dando emoções fingidas...alguns aspectos, o mundo onde ele mora é simulado, mas não há nadafalso sobre o próprio Truman”.
Essa ambiguidade sobre o que é simulado e o que é “real” é fundamental para a cultura inconsistente da comunicação atual – desde séries como Keeping Up with the Kardashians até as lives do Instagram.
O público quer ver realidade, mas essa “realidade” que chega até ele pode ter autenticidade questionável, já que é adulterada pelas instruções dos produtores, inserçãoprodutos, filtrosredes sociais etc.
Ao mesmo tempo, os participantes dos reality shows da TV, na maioria dos casos, exibem algum nívelrepresentação, por saberem que estão sendo seguidos por câmeras. É aqui que, naturalmente, eles são diferentes do inocente Truman do filme.
Mas, independentemente da cumplicidade ou não dos participantes, como ocorreO ShowTruman, esses programas atendem o desejo do públicoviver indiretamente a vida “real”outras pessoas.
As imagens na caverna
A narrativaprogramaTV embutido no filmeO ShowTruman também lida com a questão existencial e epistemológica sobre o que compreendemos como “real”.
Ela relembra a alegoria da cavernaPlatão – uma situação na qual pessoas acorrentadasuma caverna por toda a vida veem sombras projetadas sobre a parede oposta. Para elas, essas imagens tornam-se “reais”, mesmo que não sejam representações precisas do mundo verdadeiro.
O ShowTruman pode ser interpretado como uma reflexão moderna desta ideia, expressa por Christof quando ele proclama: “nós aceitamos a realidade do mundo como ela se apresenta. É simples assim.”
O mesmo certamente pode ser dito sobre o público do século 21geral. Como Truman, nós recebemos uma realidade que,muitas formas, pode ser compreendida como orquestrada.
As identidades online e os reality shows da TV são uma “verdade” criada com forte edição, da mesma forma que a vidaTruman é muito artificial. O mundo construído por Christof é a verdadeTruman – a cavernaTruman – e todos nós também estamoscâmaraseco e cavernas com a nossa própria verdade.
O ShowTruman também apresenta como a vida pode ser vivida para o entretenimento dos demais. Afinal, hojedia, todos nós podemos nos tornar Trumans, graças ao vasto acesso às plataformas online.
O fenômeno da autodivulgação proliferou-se na nossa sociedade autodescritiva. Você pode oferecer um fluxo infinitouma novela da própria vida para seu público online no Twitter, Instagram, Facebook, TikTok emuitas outras plataformas.
Nós também podemos nos deixar levar pela tão ridicularizada Síndrome do Personagem Principal – uma denominação das redes sociais para as pessoas que se imaginam, narcisisticamente, como protagonistas daprópria históriavida, com as pessoas àvolta como personagens coadjuvantes.
“Acho que [o filme] apresenta um argumento convincente sobre essa sensaçãoimpossibilidade cada vez maiorseparar o entretenimento da realidade”, afirma a roteirista e produtora cinematográfica Lilia Pavin-Franks.
“Talvez o público tenha afinidade pelos reality shows da TV porque eles oferecem uma sensaçãoidentificação, mas, fundamentalmente, os reality shows ainda são, antestudo, entretenimento”, explica ela.
Pavin-Franks destaca a relação complicada entre o espectador e os participantes, que é fundamental na históriaO ShowTruman e nos reality shows da TVgeral. Como o público vê os participantes? Como pessoas que merecem empatia, como objetos manipulados para que sejam agradáveis ou ambos?
Mas esta conexão, seja qual for anatureza, certamente pode ser sólida. Um estudo da agênciapesquisamercado OnePoll, realizado2016, concluiu que “quase umcada cinco entrevistados revelou ter crescido ligado a um personagem ou astroreality show, enquanto umcada 10 admite ter ficado obcecado por um reality show”.
Esta conclusão reflete a ideiaque os participantes são percebidos como produtosconsumo. Esta noção aparece no filmeWeir, pela formaque o público “compra” Truman, por meioprodutos inspirados no personagem.
Mas também há algodeslumbrante na formaque eles assistem ao programa, no sofá, nos bares e até no banho, 24 horas por dia – uma profunda experiência coletiva.
A Síndrome‘O ShowTruman’
A longa ressonância culturalO ShowTruman pode ser observadaforma muito concreta no surgimento da “SíndromeO ShowTruman”.
Esta expressão foi criada2008 pelo psiquiatra Joel Gold e seu irmão acadêmico Ian Gold, para descrever pacientes que acreditam terem sido documentados para entretenimento dos demais.
Ian Gold é professorfilosofia e psiquiatria da Universidade McGill, no Canadá. Ele conta que o filme pode ter “capturado um momento importante da história da tecnologia e muitas pessoas identificaram nele suas experiências”, mas não foi a causa específica deste tipoilusão. Na verdade, o impacto do filme coincidiu com o aumento da vigilância na cultura ocidental.
“Depois do 11Setembro, a Lei Patriótica [nos Estados Unidos] fez com que a vigilância se tornasse uma característica importante da cultura americana”, explica ele, “e, provavelmente, um importante colaborador para a ansiedade geral sobre a perda da privacidade.”
Alguém poderá acreditar que o acesso generalizado aos telefones celulares e às redes sociais só aumentou ainda mais os níveisansiedade como aTruman. E esta é, certamente, a convicção do professor Paolo Fusar-Poli, titular da cadeirapsiquiatria preventiva do DepartamentoEstudos Psicóticos do King’s CollegeLondres.
Fusar-Poli é um dos autores da pesquisa sobre a SíndromeO ShowTruman, publicada no British Journal of Psychiatry2008. Ele afirmou à BBC que “certamente, a recente e profunda digitalização e a hiperexposição das nossas vidas nas redes sociais pode desencadear essas experiências [como aTruman]”.
Ian Gold acrescenta que “as realidades culturais estão sempre se infiltrando na experiência psicótica” e, portanto, a transição para uma vida altamente digital pode amplificar a paranoia relativa à vigilância.
Gold e Fusar-Poli reconhecem a importânciaO ShowTruman para a identidade moderna, mas Weir também destaca que o filme aborda uma paranoia mais fundamental, independente das tendências culturais atuais. Ele revelou que, ao reunir-se com os atores que ensaiavam para o filme, diversos deles confidenciaram que se identificavam com Truman porque, najuventude, eles se sentiram “uma fraude, [com] todos àvolta representando”.
Obviamente, o crescimento dos reality shows e das redes sociais consolidou o legado permanente do filme, mas Weir ainda expressasurpresa com a relevância “duradoura”O ShowTruman.
“Ele parece ter apelo para o público jovem, o que é incomum para um filme mais velho do que eles”, afirma Weir.
No finalO ShowTruman, o personagem encontra uma saídadireção ao céu, por um caminho celestial que passa pela completa escuridão – o oposto da luz no fim do túnel. Mas existe um semblanteesperança na conclusãoaberto –que Truman possa vivervida sem a desagradável presença do público onipresente.
Truman nos oferece um exemplo que, como indicariam algumas pessoas, seria benéfico para a sociedade como um todo se fosse finalmente adotado.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.
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