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'Maioria prefere democracia com toda abagunça a seguir China num novo tipototalitarismo', diz Niall Ferguson:
"Há países que podem optar pelo modelo chinês, mas eles precisam estar cientesque isso implica um controle muito mais drástico do indivíduo pelo governo", diz o autor16 livros, dos quais seis se tornaram best-sellers.
Na entrevista concedida24março, o historiador que será um dos palestrantes especiais do Fórum da Liberdade 2022, tratou também das muitas possibilidades para o futuro do conflito na Ucrânia que, segundo ele, pode durar anos até que o país seja reduzido a escombros.
"Meu medo é que essa guerra se estenda primeiro por semanas, depois por meses e depois por anos. E no final, a Ucrânia será reduzida a escombros e se transformaráum país independente que foi amplamente despovoado", avalia.
De acordo com Ferguson, o mundo deveria estar preocupado com "o perigo da guerra na Ucrânia se transformarum confronto maior e, potencialmente,uma guerra nuclear".
À BBC News Brasil, o historiador disse ainda esperar um futuro brilhante para o Brasil, desde que o país consiga superar o choque da pandemia, impulsione reformas e se mantenha como economiamercado.
"O Brasil é a economia mais importante da América Latina e um país que nunca se deve subestimar por seus recursos naturais,população e seu ambientenegócios cada vez mais favorável ao mercado", diz.
Leia a seguir os principais trechos da entrevistaNiall Ferguson à BBC News Brasil.
BBC News Brasil - Estamos realizando esta entrevista no dia 24março, ou seja, um mês depois do início da guerra na Ucrânia. O senhor acredita que ainda há espaço para uma resolução diplomática?
Niall Ferguson - Tem que haver. As guerras geralmente terminam quando há um impasse que leva a negociações ou quando um lado é derrotado. No momento, não há sinaluma vitória decisiva ouum impasse definitivo. Creio que provavelmente ainda teremos mais algumas semanasguerra pela frente.
Mas estamos chegando a um pontoque será muito difícil para a Rússia manteriniciativa, pois suas linhassuprimento estão sobrecarregadas, o país sofreu muitas baixas importantes para uma guerra tão curta e o ritmoseus avanços claramente diminuiu. É difícil ver Kiev caindo tão cedo. Portanto, espero que negociações sérias comecem quando os russos realmente não puderem avançar mais.
E já podemos ver os contornosum acordoalguns aspectos. Está claro que a Ucrânia não vai se tornar um membro da OTAN e será um país neutro, mas com garantiassegurançaalgumas potências externas. A parte difícil está na divisão territorial, porque a Ucrânia teve um desempenho superior até agora e há um sentimentoque o país não deveria fazer concessões reconhecendo a anexação da Crimeia2014 ou cedendo [as províncias separatistas de] Donetsk e Luhansk. E esse é o problema com as guerras: quanto mais duram, mais difícil se torna chegar a um acordo, porque muitas vidas foram perdidas e as apostas aumentaram.
Me preocupo que tenhamos perdido a oportunidadeacabar com essa guerra há duas semanas e que tudo só tenha ficado mais difícil desde então. Também tenho sentido falta da presença dos Estados Unidos nas negociações. Creio que será difícil chegar a qualquer tipocessar-fogo ou acordopaz até que os EUA estejam diretamente envolvidos.
BBC News Brasil - Como o senhor acredita que os historiadores no futuro verão o momento atual? Como os principais personagens dessa guerra serão retratados nos livroshistória?
Ferguson - Os futuros historiadores podem dizer foi assim que a Terceira Guerra Mundial começou. Em outras palavras, eles podem comparar a situação atual com a1939 na Europa, quando a Polônia foi invadida após receber promessasapoio das potências ocidentais que provaram ser praticamente inúteis. Ou então dirão que esta foi a primeira 'guerra quente'uma segunda Guerra Fria. Eu tendo a acreditar mais nessa segunda analogia, pois creio que já estamos na vivendo a segunda Guerra Fria. Acho que a Ucrânia é hoje o que a Coreia foi para a primeira Guerra Fria.
Mas há muitas outras analogias que podem ser mais apropriadas. A verdade é que não se pode escrever a história com antecedência, tudo o que se pode fazer é oferecer cenários com mais ou menos plausibilidade e tentar atrair probabilidades. E o que acontece a seguir dependerá muito da China, assim como dos Estados Unidos
Meu medo - e esta é a última observação que farei - é que essa guerra se estenda primeiro por semanas, depois por meses e depois por anos. E no final, a Ucrânia será reduzida a escombros e se transformaráum país independente que foi amplamente despovoado.
BBC News Brasil - Como esse conflito afeta o confronto entre EUA e China e a posiçãoPequimrelação a Taiwan?
Ferguson - Do pontovista do governo [americanoJoe] Biden, a China é mais importante do que a Rússiaordemmagnitude. Creio que há uma crençaWashingtonque se a situação atual na Ucrânia acabar mal para [o presidente russo Vladimir] Putin, isso impedirá a Chinatentar assumir o controleTaiwan.
Há relatosque a China planejava invadir Taiwan jáoutubro deste ano e isso provavelmente não ocorrerá mais depois dos últimos acontecimentos. Mas não acho que o país vá desistir da ideia, porque Xi Jinping fala sobre isso há anos e quer inclusive estender seu mandato para dar continuidade ao plano.
Mas este é o momento da verdade para a China, pois se Xi Jinping está mesmo decidido a assumir o controleTaiwan não pode demorar muito. Nos próximos anos, o Ocidente vai aprender muitas lições com a Ucrânia e vai armar Taiwan até os dentes para impedir uma invasão da China.
BBC News Brasil - E o resto do mundo? Haverá uma mudança nas forças geopolíticas após o conflito?
Ferguson - Já estamos vendo uma tremenda mudança ocorrer com a demonstraçãoforça e unidade do Ocidente. A importância da Otan também foi realçada, pois afinalcontas nada do que estamos vendo hoje aconteceria se a Ucrânia já estivesse na aliança. A outra grande transformação que observo é a aproximação entre Rússia e China. Se eu estiver certo, estamos vivendo uma segunda Guerra Fria - e está bem claro quem está do ladoquem no Hemisfério Norte.
Mas ainda há algumas alguns quebra-cabeças na região sul. No Oriente Médio, o Irã está do lado da Rússia e da China, enquanto os Estados árabes e Israel se mostram desapontados com a política do governo Bidententar ressuscitar o acordo nuclear iraniano. Já a Índia, que deveria ser uma aliada americana, não está interessadatomar partido contra a Rússia. E cada vez mais países da Ásia estão se perguntando: importa mais a uma aliança com os EUAprol da segurança nacional ou uma aliança com a China pelo bem da economia? Essa é uma questão para o Brasil e muitos outros países da América Latina também.
Felizmente, o Brasil está longe do conflito e pode adotar uma abordagem mais relaxada, evitando escolher lados. Há inclusive vantagens, pois o aumento dos preços das commodities pode ser uma boa notícia economicamente. Mas a desvantagem é que a inflação não parasubirtodo o mundo e pode ser uma dorcabeça.
BBC News Brasil - No início dos anos 2000 falava-se muito sobre a ascensão econômicapaíses como Brasil, China, Rússia, Indonésia e outros. Naopinião, essa ainda é uma possibilidade?
Ferguson - Sempre fui um pouco céticorelação aos Brics e as teoriasque Brasil, Rússia, Índia e China eram as economias do futuro. Quando adicionaram a África do Sul foi ainda mais difícilacreditar. Meu principal argumento é que há diferenças enormes entre a China e os outros. O crescimento chinês pôde ser sustentado e envolveu a criação da maior economia industrial do mundo. Estamos vendo uma desaceleração causada por fatores demográficos e pelo peso da dívida, mas ainda é concebível que a China possa ser a maior economia do mundo nos próximos 10 ou 20 anos.
A situação dos demais Brics sempre foi diferente. A Índia tem grandes problemas compopulação grande, porém pouco educada, e provavelmente não se tornará uma potência manufatureira como a China se tornou. Já a Rússia preferiu ressuscitar seu império por meio da força militar e se fechou para a economia global como resultado dos eventos das últimas quatro semanas.
A situação do Brasil sempre foi distinta. O Brasil é a economia mais importante da América Latina e um país que nunca se deve subestimar por seus recursos naturais,população e seu ambientenegócios cada vez mais favorável ao mercado.
O Brasilhoje é muito diferente daquele da minha infância nos anos 1960 e tem um caminho relativamente brilhante pela frente. Estou otimista sobre os rumos do Brasil caso o país consiga superar o choque da pandemia, aproveitar algumas das reformas que estavam sendo feitas no início do mandato do presidente Bolsonaro e lembrar àpopulação que tem um futuro excepcional como economiamercado.
BBC News Brasil - O pensamento Ocidental permanecerá dominante nas próximas décadas?
Ferguson - Uma das grandes lições que a História nos ensinou é que existem alternativas à democracia, ao livre mercado e ao Estadodireito. O único problema é que elas não são boas alternativas. Podemos experimentá-las, inclusive maisuma vez, mas o resultado será sempre o mesmo. Uma sociedade que restringe a liberdade será uma sociedade menos inovadora do que uma sociedade que permite a liberdade.
Não estou dizendo que o modelo americano seja perfeito. Há muitas coisas erradas nos Estados Unidos - às vezes olho para nossa política e nossos debates culturais e me desespero, porque usamos nossa liberdade para dizer coisas sem sentido. Mas sempre vou concordar com Winston Churchill, que disse que a democracia era o pior dos sistemas políticos, à exceçãotodos os demais.
BBC News Brasil - Mas veremos a democracia prevalecer nos próximos anos ou novos regimes autoritários e antidemocráticos ganharão força?
Ferguson - As democracias resistiram muito bem até agora. Periodicamente ouvimos dizer que elas estãorecessão, mas não é como se o autoritarismo tivesse ganhado muito espaço desde a década1990. Houve uma enorme ondademocratização após a queda da União Soviética. Mesmo que a Rússia e algum países do antigo bloco soviético tenham recuado, outros se saíram tremendamente bem, particularmente aqueles como os Países Bálticos que entraram na União Europeia.
Se olharmos para o mundo com cuidado, veremos que as democracias são economicamente, tecnologicamente e militarmente dominantes e que as opções autoritárias são muito menos atraentes. Há países que podem optar pelo modelo chinês, mas eles precisam estar cientesque isso implica um controle muito mais drástico do indivíduo pelo governo.
Uma das razões pelas quais os chineses conseguiram bloquear e controlar a propagação da covid foi justamente o poder draconiano que o Partido Comunista tem sobre a vida cotidiana. A China tem um sistemavigilância que invade a liberdade individualmaneiras que nós, nos países ocidentais, consideraríamos intoleráveis. Portanto, não creio que existam muitos países que estejam realmente ansiosos para aderir a um sistemagovernopartido único e vigilância total.
A maioria das pessoas no mundo, tendo a possibilidadeescolher, preferiria aceitar a democracia com toda abagunça, complexidade e decepções do que seguir a China rumo a um novo tipototalitarismo. Por isso, minha esperança é que a democracia prevaleça.
BBC News Brasil - Naopinião, onde a América Latina e o Brasil se encaixam nesse mundo dividido entre Oriente e Ocidente?
Ferguson - Hojedia são as perguntas fáceis que as pessoas parecem achar mais difíceis. É claro que a América Latina faz parte do Ocidente. Assim como a América do Norte, o continente foi colonizado por europeus e suas instituições foram essencialmente importadas da Europa Ocidental. Apesar das instituiçõesPortugal e Espanha serem diferentes daquelas da Inglaterra ou França, o pontoorigem é muito semelhante.
As Américas como um todo são,muitos aspectos, a parte mais dinâmica do que chamamosmundo Ocidental. E estou relativamente otimista sobre o que pode ser alcançado na América Latina nas próximas décadas desde que as pessoas não se esqueçam das lições da História e não apostem mais uma vezexperimentos socialistas que sempre fracassam economicamente. Como economiamercado, a América Latina tem muito a seu favor.
Contanto que se invista na educação e se proporcione às pessoas que nascem na pobreza a chancesair dela, o futuroum país como o Brasil deve ser muito brilhante. Considerando minhas chancesuma vida pacífica e próspera, eu certamente preferiria nascer hoje no Brasil do que no Leste Europeu.
BBC News Brasil - Segundo o Banco Mundial, a pandemia ampliou a desigualdaderenda mundial. O senhor disse no passado que a crise financeira2008 ajudou a abrir os olhos das pessoas para o tema. O que será preciso agora para que a redução da desigualdade volte a ser importante para a população e para os governos?
Ferguson - Acho que é justo dizer que a desigualdade subiu na hierarquiarelevância com a pandemia. Em alguns países, houve uma mudançadireção à esquerda na política. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos2020 - a covid-19 foi a razão pela qual Donald Trump não foi reeleito. E isso provavelmente vai acontecer no Brasil também.
Portanto, talvez a principal consequência da pandemia tenha sido deslocar a política um pouco mais para a esquerda e, dessa forma, aumenta-se a probabilidadepolíticas fiscais mais redistributivas.
BBC News Brasil - O senhor afirmou no passado que muitos dos erros que levaram ao agravamento da pandemia não podem ser inteiramente atribuídos a presidentes ou primeiros-ministros. Mas é difícil para o público não culpar aqueles que estão no topo da cadeiacomando por eventos como a pandemia. Naopinião, como a atual crisesaúde pode afetar as eleições?
Ferguson - Em 2020, quando a pandemia se espalhou pelo mundo, foi muito tentador culpar o presidente [americano] Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro, o primeiro-ministro [britânico] Boris Johnson ou Narendra Modi da Índia pelas altas taxasmortalidade nos paísesque governavam. E muita gente fez isso. Esses líderes cometeram todo o tipoerro, e não quero subestimar isso - às vezes parecia que havia uma competição para ver qual deles poderia ser o mais estúpidorelação à saúde pública.
Mas se analisarmos com cuidado, vemos que houve mortalidade altamuitos países que não tinham líderes populistas no poder. A realidade é que o fracassovários países ocidentais, do Hemisfério Norte e Sul, teve maior relação com as falhas cometidas por aqueles [que ocupam cargos] na burocracia da saúde pública do que com decisões tomadas pelos presidentes.
Como tudo isso vai influenciar no Brasil é difícilprever. Neste momento, meus amigos brasileiros parecem esperar a voltaLula à Presidência e a derrotaBolsonaro, mas não sou especialistapolítica brasileira. Direi apenas que, nos Estados Unidos, certamente foi a covid-19 que garantiu que Donald Trump não cumprisse um segundo mandato. Ele teria sido reeleito se não fosse a pandemia.
BBC News Brasil - Depoisler seu livro mais recente sobre desastres globais (Catástrofe, da Editora Planeta), algumas pessoas o chamarampessimista. No momento atual, considerando tudo o que vivemos nos últimos anos e as previsões para o futuro, o senhor se sente pessimista?
Ferguson - Não creio que 'Catástrofe' seja um livro pessimista, pois inclusive ressalto que a possibilidade do mundo acabar é muito pequena. Os desastres que temos que enfrentar - e teremos que enfrentar novos desastres no futuro - não vão matar grandes proporções da humanidade ou acabar com nossa existência na Terra.
Mas posso pensaralgumas razões para preocupação no momento, entre elas o perigo da guerra na Ucrânia se transformarum confronto maior e, potencialmente,uma guerra nuclear. Posso pensar aindaum cenárionova pandemia, com uma doença ainda pior e mais mortal. Mas a mensagem do livro é que se estivermos cientes dos riscos, poderemos desenvolver tecnologia e conhecimento científico para lidar com eles.
O verdadeiro inimigo do sucesso é o fatalismo. Posso estar ciente dos riscos que enfrentamos, mas não sou fatalista. Sempre podemos agir para reduzir nossa vulnerabilidade e melhorar as chancesuma vida longa, próspera e feliz.
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