O sedutor mito das ruínas das cidades perdidas:
"Justamente porque um lugar não existe mais, ele pode ser transformado na cidade ideal, na cidade dos sonhosalguém", escreveu AudeTocquevilleseu livro Atlas of Lost Cities: A Travel Guide to Abandoned and Forsaken Destination ("Atlas das cidades perdidas: um guiaviagem para destinos abandonados e esquecidos",tradução livre), publicado2014.
"A cidade perdida é, portanto, poesia, mundosonho e cenário para nossas paixões e meandros."
De fato, lugares perdidos e abandonados exercem uma forte atração sobre a imaginação. São uma isca para viajantes ávidos, inspirando um sensoaventura que alimenta grandes expedições e lendas.
Vemos nossas vidas refletidas nas pedras, imaginamos nossos dramas íntimos perante seus cenários românticos eruínas. E se uma mortalhadesastres paira sobre muitas cidades perdidas, até mesmo isso é amenizado com o passar do tempo.
"Por provavelmente milharesanos, as pessoas têm contado históriasaventura sobre terras dramáticas alémnossas fronteiras — histórias sobre civilizações antigas", diz Annalee Newitz, autora de Four Lost Cities: A Secret History of the Urban Age ("Quatro cidades perdidas: uma história secreta da era urbana",tradução livre).
A obra percorre continentes e milênios, apresentando quatro sítios arqueológicos como exemplos práticosvida urbana: Angkor, no Camboja; a cosmópolenativo-americanaCahokia; a cidade romanaPompeia; e a neolítica Çatalhöyük, na Turquia moderna.
Enquanto histórias sobre cidades perdidas se tornam contosviagem atraentes, Newitz argumenta que essas narrativas muitas vezes ocultam as histórias reais por trás dos lugares mais magníficos da humanidade.
Isso aconteceuAngkor, onde passei tardes ensolaradasmeio às ruínas.
Newitz explica que a cidade era habitada quando o explorador francês Henri Mouhot chegou lá1860 — na verdade, nunca havia sido totalmente abandonada —, mas o visitante não poderia imaginar que antepassados cambojanos fossem capazestamanha grandeza.
"À primeira vista, ficamos repletosuma profunda admiração, e não podemos deixarperguntar o que aconteceu com essa raça poderosa, tão civilizada, tão iluminada, responsável por essas obras gigantescas", escreveu Mouhot.
Ele especulou que Angkor havia sido construída por antigos gregos ou egípcios. Na França, explica Newitz,visita foi aclamada como uma "descoberta".
"As históriascidades perdidas se tornaram tão populares na era moderna — a partir do século 19 ou 18 — porque eram realmente uma boa maneiradisfarçar o colonialismo", explica Newitz.
"Isso permite que você justifique todos os tiposincursões coloniais. Dizer 'esta não é uma civilização que está indo bem por conta própria. E a evidência que vemos disso é que eles se afastaramum grande e misterioso passado perdido.' "
Encontrar cidades e civilizações perdidas era uma obsessão para alguns exploradores e colonizadores europeus.
Esse frenesi foi alimentado,parte, pela busca pela cidade perdida mais famosa da história: Atlântida, que apareceu pela primeira vez nos escritosPlatão.
Sua Atlântida fictícia prosperou antes que o declínio moral trouxesse o castigo divino.
Os contemporâneos do filósofo teriam reconhecido a história como uma alegoria, diz o historiador Greg Woolf, autor do livro The Life and Death of Ancient Cities: A Natural History ("A vida e a morte das cidades antigas: uma história natural",tradução livre).
"Contar um mito para ilustrar uma verdade maior era amplamente compreendido", acrescenta Woolf.
"Não acho que alguém tenha acreditado seriamente que [Atlântida] existia, mas era um mito conveniente."
No entanto, quando os textosPlatão sobre Atlântida foram distribuídostraduções modernas, encontraram um público mais crédulo.
"As pessoas estavam lendo isso exatamente ao mesmo tempo que fundavam colônias no Novo Mundo", explicou Edith Hall, especialistaclássicos,entrevista recente ao podcast History Extra, da BBC.
Interpretando mal o trabalhoPlatão, muitos leram o conto alegóricoforma literal, disse ela.
"Eles ficaram impressionados. Todo mundo disse que (Atlântida) tinha que estar na América."
Quando esses colonizadores europeus encontraram civilizações nativas, escreve Newitz, eles lutaram por conexões com um passado misterioso, muitas vezes ignorando convenientemente povos contemporâneos bastante reais.
Foi o que aconteceuCahokia, uma antiga metrópole localizada perto da atual cidade americanaSt Louis.
Os imponentes montesterra presentes ali rivalizavam com as pirâmides egípciasaltura, e no augeCahokia1050 d.C., a cidade era maior do que Paris. Os recém-chegados europeus tiveram dificuldadeaceitar isso.
"Viajantes e aventureiros contavam a si mesmos todos os tiposhistórias malucas, como se os antigos egípcios tivessem vindo aqui para construir", diz Newitz.
Foi um mito que serviu para justificar o rouboterras indígenas amplamente descritas como "vazias". Enquanto isso, assim comoAngkor, os descendentes dos construtoresCahokia foram desprezados como sendo incapazesrealizar tais projetos.
Contoscidades perdidas também podem esconder outras verdades, escreve Newitz, como a maneira como os povos antigos se reinventavam quando deixavam um lugar para trás.
O desastre e o colapso são muitas vezes apresentados como o fim da história, masPompeia e Çatalhöyük, Newitz enxerga o vislumbreum novo começomeio à agitação social.
Depois que a erupção vulcânica transformou Pompeiaum cemitério,79 d.C., os pompeianos traumatizados começaram imediatamente a reconstruir suas vidas nas proximidadesNápoles e Cumas.
Citando o trabalho do especialistaclássicos Steven Tuck, Newitz relata que muitos refugiados conhecidos pelos historiadores tinham nomes que os marcavam como liberti, escravos libertos.
Enquanto as convenções romanas para nomes costumavam ser conservadoras, mantendo os mesmos nomes geração após geração, Tuck observou um padrão interessante entre as famíliasrefugiadosPompeia.
Deixando para trás seus antigos nomes liberti, alguns optaram por chamar seus filhos pelos nomes dos lugares onde chegavam, como a movimentada cidade portuáriaPuteoli.
Lá, algumas famílias recém-chegadas deram aos filhos o nomePuteolanus.
É como se mudarum camporefugiados para Londres e chamar seu filho"Londrino", Tuck me explicou por e-mail.
"A realocação deu a eles essa oportunidade e eles a aproveitaram."
E nas próprias cidadesdeclínio, Newitz apresenta uma comunidade vívida, e não povos antigos presos ao capricho da história.
É o que ela vê nas ruínasÇatalhöyük, um assentamento neolítico que prosperou há 9 mil anos na planícieKonya, no centro da atual Turquia.
As casas ali eram construídas uma ao lado da outra como as célulasum favomel, diz ela no livro.
Nas noites quentes, os moradores se reuniam nos telhados, fazendo refeições e artesanato juntos. Mas, apesartoda efervescência criativa da vida na cidade, nem tudo eram flores.
Com o tempo, ficou mais difícil permanecerÇatalhöyük: o clima se tornou menos favorável e as tensões sociais aumentaram.
Embora muitas histórias sobre cidades perdidas pareçam confusas e míticas, Newitz retrata o abandonolugares como Çatalhöyük como resultadoum processo bem fundamentado.
Com o tempo, o povoÇatalhöyük simplesmente optou por voltar para áreas mais rurais, um processo familiar para qualquer moradorcidade grande hoje que melancolicamente passa os olhos pelos anúnciosimóveis que evocam a vida no campo.
"Vamos procurar um lugar melhor e tentarnovo, tentar uma nova experiência, tentar construirforma diferente, tentar vivermaneira diferente", afirma Newitz, sugerindo conversas que podem ter ocorrido nos lares neolíticos.
As famílias partiram uma a uma, até que finalmente Çatalhöyük ficou vazia.
Mas quando os habitantes foram embora, cada um levou consigo o que considerava mais importante. Assim, suas artes, ideias e cultura material se irradiaram pela planícieKonya à medida que famílias construíam uma nova vida longe do denso povoado.
Embora Cahokia e muitas outras cidades possam estar abandonadas,certa forma, elas não estão perdidasmaneira alguma para nós.
"Ainda temos todas essas memórias culturaisonde estivemos", diz Newitz.
"É a continuaçãotodo o caminho."
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel .
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