Guerra na Ucrânia: 'Líderes russos incitam genocídio', diz historiadora especialistaHolocausto:

Crédito, Anatolii Siryk / Ukrinform/Future Publishing via G

Legenda da foto, Exumaçãocorposciviscova coletivaBucha, nos arredores da capital ucraniana Kiev

O tema genocídio tem sido parte importante do trabalhoHirsch. Em 2020, ela lançou a elogiada obra Soviet Judgment at Nuremberg ("O julgamento soviéticoNuremberg",tradução livre e sem edição no Brasil). Ali, a historiadora reconta, a partirfarta documentação, como o tribunal criado para julgar os nazistas alemães por crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial, como o Holocausto, serviuparte aos interesses particulares do líder soviético Joseph Stalin.

O enorme sofrimento infligido pelos nazistas ao povo russo durante a invasão à União Soviética e o fatoque coube ao Exército Vermelho derrotar Adolf Hitler no leste, o que celaria a vitória dos Aliados na guerra, deu ao governoStalin a condição moral que ele precisava para ser parte do julgamento dos alemães.

E por isso mesmo,acordo com Hirsh, graças à condiçãoaliado dos Estados Unidos, Inglaterra e França —as atrocidades cometidas pelo Stalinismo antes ou durante a Segunda Guerra Mundial, ficaram encobertas, jamais foram investigadas ou chegaram a ser escamoteadas para a conta dos alemães.

Hirsch cita, por exemplo, o caso conhecido como MassacreKatyn, quando,1940, Stalin ordenou a mortecerca22 mil soldados poloneses, cujos corpos foram encontrados três anos mais tardeuma cova coletiva na Floresta Katyn, no oeste da Rússia. Por cinco décadas, os russos culparam os alemães nazistas pelo massacre. Apenas1990, a União Soviética reconheceu que as mortes foram ordenadas por Stálin.

Do mesmo modo, o episódio conhecido como Holodomor, na Ucrânia dos anos 1930, quando maistrês mil ucranianos teriam sido mortos por uma escassezalimento supostamente orquestrada por Stálin, e a grande fome no Cazaquistão, no mesmo período, nunca foram extensivamente investigadas por um tribunal penal internacional.

Crédito, Divulgação

Legenda da foto, A historiadora Francine Hirsch aponta que crimes contra os direitos humanos cometidos pelos Stalinismo jamais foram levados a devido julgamento

Para Hirsch, professora da Universidade Wisconsin-Madison, a história desses casos ensinam uma importante lição para o presente, na Guerra da Ucrânia.

"Acho extremamente lamentável que o Holodomor e a fome dos Cazaques não tenham sido investigados como genocídios,1991 (quando a União Soviética colapsou). E acho que essa é uma das razões pelas quais é tão importante coletar evidências do que está acontecendo agora, porque precisaremos dessas evidências para ter um reconhecimento legal do que está ocorrendo", diz Hirsch.

Leia a seguir os principais trechos da entrevistaFrancine Hirsch à BBC News Brasil.

BBC News Brasil - Recentemente, centenascorposcivis foram encontradosáreasonde as tropas russas se retiraram, na região da capital ucraniana, Kiev. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, qualificou a situação como genocídio. Esse é realmente um genocídio?

Francine Hirsch - Em primeiro lugar, o que chamamosgenocídio? Como historiadora, entendo o genocídio a partiruma perspectiva histórica. Escrevi um livro sobre o julgamentoNuremberg, e concentrei meus estudos na União Soviética e na Alemanha nazista. Quando as pessoas pensamgenocídio, elas com frequência estão pensando no pior exemplo possível, o Holocausto. E se algo não chega ao nível do Holocausto, as pessoas dizem: 'Bem, então isso aqui não é genocídio'.

Mas a definiçãogenocídio, estabelecida da ConvençãoGenocídio da ONU, inclui atos cometidos com a intençãodestruir completa ou parcialmente um grupo étnico, nacional, racial ou religioso.

Não é cedo para falargenocídio na Ucrânia. Líderes russos e a mídia estatal russa têm incitado o genocídio. No mesmo diaque aqueles corpos foram encontradosBucha, no mesmo diaque soubemos que ucranianos estavam sendo deportados e enviados a camposconcentração, um texto foi publicado no RIA Novosti, um veículo estatal russo, argumentando que a elite política ucraniana deveria ser eliminada, e que os cidadãos ucranianos deveriam experimentar todos os horrores da guerra e absorver a experiência como uma lição histórica e uma oportunidadeexpiaçãosua culpa.

O texto conclama por uma "desucranização", usa essa linguagem extrema e efetivamente descreve um planogenocídio. A mídia russa é altamente censurada, então para que esse texto tenha sido publicado, isso significa que ele conta com aprovação oficial. O mundo precisa entender o que os líderes e analistas russos estão pedindo, porque isso deve moldar nossa compreensão desta guerra.

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Um funcionário do serviço funerário senta-se ao ladocorposcivisBucha

No dia seguinte à publicação desse artigo na RIA Novosti, o ex-presidente russo Dmitry Medvedev, que agora é um dos conselheiros do círculo mais próximoPutin, declarou que a identidade ucraniana é uma grande farsa e que o objetivo (da guerra) é mudar a forma como os ucranianos percebemidentidade.

Genocídio não significa necessariamente o assassinatotodos os ucranianos. Estamos vendo uma campanha para eliminar, esmagar ou diminuir a identidade ucraniana e a nação ucraniana. Estamos vendo incitação ao genocídio, pois os militares russos estão cometendo crimes horríveis contra civis. Essa combinaçãoincitação com atrocidades precisa ser levada muito a sério.

BBC News Brasil - O líder russo, Vladimir Putin, disse muitas vezes que os ucranianos cometeram genocídio contra a população russa no Donbas, a quem ele diz querer libertar e concentra agora os esforços militares. Putin faz um uso correto do termo?

Hirsch - Putin gostausar a linguagem do direito internacional para degradá-la e lançou uma campanha massivadesinformação na Rússia. O povo russo tem recebido uma falsa mensagemque os ucranianos são nazistas e que estão cometendo genocídio.

Putin tem clamado por um TribunalNuremberg dos ucranianos, contando mentiras e manipulando a linguagem do direito internacional. O Tribunal Penal Internacional (em Haia) investigou a alegaçãoPutinque um genocídiorussos estaria ocorrendo na Ucrânia (desde 2014).

Eles concluíram (em meadosmarço) que não havia provas disso e disseram a Putin para cessar a guerra. Acho que é uma resposta bastante clara. Agora, Putin transformou a Rússiaum "estado bandido" e não tem interesseseguir as normas do direito internacional.

BBC News Brasil - Podemos falar também sobre o Holodomor? Ele é considerado um genocídio por alguns países e definido assim pelos ucranianos. Mas os críticos dizem que a fome era um problema generalizado na União Soviética nos anos 1930 — as estimativas apontam que os cazaques, por exemplo, foram proporcionalmente mais atingidos por ela, com 90%sua população morrendofome. Então, o Holodomor é mesmo um genocídio? Se sim, por quê não consideramos a situação dos cazaques como genocídio?

Hirsch - (O advogado polonês) Raphael Lemkin, quando criou o termo genocídio (em 1943), o definiuum modo amplo, que incluía a fome intencionalpessoas. A Convenção do Genocídio considera que a fome intencionalpessoas também é genocídio. O próprio Lemkin, mais tarde, se referiu a Holodomor como um casogenocídio. Desde então, vários historiadores têm chamado o terror da fome na Ucrâniagenocídio.

O problema é que os líderes e perpetradores soviéticos não foram responsabilizados pelas atrocidades cometidas na época da União Soviética. Nunca houve uma investigação completa sobre esses casos. Houve uma espécietentativajulgar o Partido Comunista1991, mas não foi um esforço real. Acho extremamente lamentável que o Holodomor e a fome dos cazaques não tenham sido investigados1991 como genocídios. E acho que essa é uma das razões pelas quais é tão importante coletar evidências do que está acontecendo agora, porque precisaremos dessas evidências para ter um reconhecimento legal do que está ocorrendo.

BBC News Brasil - Por que os líderes soviéticos não foram investigados e responsabilizados? E qual é o riscoque isso se repita agora?

Hirsch - Vamos falar sobre a Segunda Guerra Mundial. A Alemanha nazista foi derrotada e seus líderes e outros perpetradores foram levados a julgamento logo após a guerra. A União Soviética foi uma potência aliada durante a Segunda Guerra Mundial e os vencedores, é claro, não foram levados a julgamento. Os soviéticos não foram investigados por atrocidades que cometeram durante a Segunda Guerra Mundial, como o MassacreKatyn, contra os oficiais poloneses. Eles não foram investigados nem naquela época nem depois do colapso da União Soviética.

Crédito, Jaap Arriens/NurPhoto via Getty Images

Legenda da foto, Monumentomemória aos cerca22 mil soldados poloneses mortos pelos russos no que ficou conhecido como MassacreKatyn. Rússia negou por maiscinco décadas responsabilidade sobre as mortes

Os soviéticos não foram responsabilizados por nenhuma das atrocidades que aconteceram na época do Stalinismo, não houve acertocontasHolodomor. Não houve uma explicação completa para as atrocidadesStalin durante a época do Grande Terror. Não houve investigação sobre as deportaçõesgrupos étnicos inteiros que os soviéticos realizaram nas décadas1930 e 1940. Não houve investigações e julgamentoscrimeshumanidade soviéticos contra a própria população soviética.

E então eu acho que neste momento, enquanto estamos assistindo o que está acontecendo na Ucrânia, e os horrores dos crimesguerra russos, é essencial que haja um esforço para coletar evidências, coletar depoimentostestemunhas, para que tenhamos um registro histórico do que aconteceu para que possamos mais tarde levar os responsáveis ​​à justiça.

BBC News Brasil - Além do próprio Holocausto, a descriçãoum evento como genocídio é sempre controversa? Por que tudo parece ser tão discutível?

Hirsch - Acho que parte do motivo pelo qual o termo genocídio é tão carregado e significativo é porque se reconhecemos que um genocídio está ocorrendo, somos obrigados a agir. Somos moralmente obrigados a agir uma vez que reconhecemos que um país está tentando acabar com outra nação ou povo, que o mundo não pode simplesmente assistir a isso acontecer.

BBC News Brasil - Por algum tempo, o presidente americano Joe Biden se abstevechamar a situação na Ucrâniagenocídio, o que ele fez na semana passada. Por que você acha que o presidente americano mudoutom? O que muda na posição dos EUArelação à guerra?

Hirsch - Não sei por que ele escolheu usar o termo agora — talvez ele tenha sido convencido pela clara evidênciaincitação ao genocídio junto com a evidênciacrimes terríveis contra civis. O uso do termo é importante porque dá clareza à situação.

Não se pode esperar que Zelensky negocie com um regime que está incitando o genocídio do povo ucraniano. Acho que isso sinaliza um forte apoio a Zelensky e envia uma forte mensagemque Putin é um criminosoguerra. Teremos que esperar e ver o que isso significatermosapoio dos EUA e até onde os EUA e os outros países do mundo estão dispostos a ir para conter Putin.

BBC News Brasil - É mais fácil para a comunidade internacional chamar algogenocídio quando os países envolvidos na questão não têm armas nucleares?

Hirsch - Esta é uma pergunta chave. Todas as instituiçõesdireito internacional que foram criadas após a Segunda Guerra Mundial, a convenção do genocídio, a convenção dos direitos humanos, os princípiosNuremberg, foram criadas com o objetivo"Nunca mais". O mundo se uniu para apoiar a Ucrânia, mas parece que não é suficiente.

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Putin tem,discursos, rebaixado a existência da Ucrânia como uma nação independente

A situação com Putin é complicada, e talvez o mesmo valha para a China também (com a situação da minoria muçulmana Uigur). Quando estamos lidando com Estados que possuem armas nucleares, isso muda o cálculo. Existem sanções, os países estão enviando armas. Há todo tipoenvolvimento. Há muita preocupação internacional e é bom que haja tanta preocupação internacional, atenção, cooperação e ação. E é bom que as evidências estejam sendo coletadas e que se falejulgamentos futuros.

Mas se as atrocidades continuarem, se os líderes russos estiverem incitando o genocídio, se os militares russos continuarem a cometer crimesguerra e crimes contra a humanidade, algo mais pode ser feito? Se todos podemos concordar mais ou menos que esta é uma guerra ilegal e que os militares russos estão mirando civis, se todos os sinais apontam para genocídio, então quais são os próximos passos? Como é a intervenção? Tem que ser intervenção militar? Essas são questões sobre as quais todos os líderes mundiais devem pensar.

BBC News Brasil - Como vê o uso político cada vez mais frequente do termo genocídio e o quanto isso prejudica a força do próprio conceito?

Hirsch - Acho que precisamos reconhecer o fatoque, nos anos que se seguiram à Guerra Fria, o termo genocídio às vezes foi usadobuscauma agenda política, foi usadoforma insincera. Isso é verdade para grande parte da linguagem do direito internacional.

O termo "crimes contra a humanidade" também tem sido usado para fins políticos. Isso não significa que devemos nos livrar desses termos. Precisamos fazer perguntascada caso. O que está acontecendo se encaixa na definição? Quando fazemos isso, temos que ser claros sobre a definição que estamos usando. É perigoso ampliar o termo genocídio para abranger todos os crimesguerra. Mas também é perigoso restringi-lomodo que abranja apenas algo na escala do Holocausto.

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