Pesquisa revela que América foi 'descoberta' milharesanos antes do que se pensava:

Crédito, Ciprian Ardelean/Reuters

Legenda da foto, Um dos artefatos pré-históricos encontrados na caverna Chiquihuite, na região centro-norte do México

De acordo com a arqueóloga Jennifer Watling, do MuseuArqueologia e Etnologia da UniversidadeSão Paulo (MAE-USP), uma das autoras do artigo, o sítio estudado é mais uma peça importante no quebra-cabeça da ocupação das Américas.

"As descobertas apoiam o cenário, até agora demonstradoalguns poucos sítios, que existiam pessoas no continente durante o Último Máximo Glacial (antes do fim da IdadeGelo), cerca 25.000 anos atrás", diz.

"Porém, o estudo do México vai mais longe ainda por mostrar evidências arqueológicosdepósitos datados a 33.000 anosidade, o que constitui — junto com os trabalhos no Piauí, no nordeste do Brasil — as evidências mais antigas da ocupação das Américas."

A referênciaJennifer ao Piauí está relacionada ao trabalho da arqueóloga brasileira Niède Guidon, que desde 1978 realiza escavaçõesvários sítios arqueológicos da Serra da Capivara, no municípioSão Raimundo Nonato, no sul do Estado.

A partir desse trabalho, ela defende a hipóteseque os primeiros seres humanos a pôr os pés no continente chegaram naquela região, vindos diretamente da África, entre 150 mil e 110 mil anos atrás.

Crédito, FUNDHAM

Legenda da foto, Parque Nacional da Serra da Capivara tem mais30 mil pinturas rupestres

Segundo Niède, naquele período o mar estava 120 metros abaixo do nível atual e, portanto, havia um grande númeroilhas entre as costas euro-africana e sul-americana.

Com isso, povos da África teriam migrado para as América, "saltando"ilhailha pelo meio do Oceano Atlântico. O problema é que jamais foram encontrados ossos fossilizados desses pioneiros, o que colocaxeque a teoria.

Não é caso das descobertas do sítio da Caverna Chiquihuite. Jennifer revela que os materiais encontradas nas escavações foram sujeitos a muitas análises diferentes.

"Os artefatos líticos [de pedra] foram analisados tecnologicamente, mas também por análise petrográfica, que comparou acomposição mineralógica com a da geologia da caverna", diz. "Essas análises foram fundamentais para identificar uma origem não-local para essas rochas, que foram levadas para a caverna e trabalhadas por seres humanos."

Além disso, restosfauna também foram recuperados e identificados por especialistas, e material vegetal queimado (carvão) quantificado.

"AnálisesDNA feitas nos sedimentos conseguiram identificar uma gama muito grandeanimais e plantas na escavação", diz Jennifer.

"Enquanto restosplantas microscópicos (pólen e fitólitos) também foram analisados, por mim e a equipe do InstitutoGeociências (IGC), da USP, para fornecer uma ideia da vegetação local durante as ocupações da caverna. Podemos acrescentar as datações também, que foram feitasvários materiais (carvão, osso, sedimento) e os resultados analisados para produzir uma cronologia muito forte para o sítio."

Para o geólogo e arqueólogo André Strauss, também do MAE-USP, a novidade do trabalho do qualcolega Jennifer participou "é a clareza dos artefatos, praticamenteinegável origem humana".

"Nesse sentido, contrasta com a Serra da Capivara, que apesarser estudada faz décadas ainda não convence a maioria dos especialistas", diz.

"Acho que esse estudo vai fazer com que essa ocupação mais antiga ganhe ampla aceitação."

Crédito, FUNDHAM

Legenda da foto, Cravado no sertão piauiense, Parque Nacional da Serra da Capivara tem 130 mil hectares

O próprio Strauss fez parteum grupo internacional que propôsprópria teoria para a ocupação das Américas.

Em novembro2018, a equipe publicou um artigo propondo que todos os indígenas das Américas descendemuma única população que chegou ao Novo Mundo vinda do leste asiático, pelo estreitoBering, há cerca20 mil anos.

Mais tarde, há 16 mil anos, essa população pioneira se dispersou rapidamente por todo o continente americano, tendo alcançado até mesmo o sul do Chile há cerca14 mil anos. Para ele, o trabalho da equipeJennifer confirma essa hipótese, que existe desde a década1970,uma ocupação muito antiga nas Américas.

"Mas ela não muda o fatoque as populações nativas da América tem um ancestral comum há não mais do que 20 mil anos", garante.

"Isso segue correto, mas o novo sítio confirma que devem ter existido uma outra população anterior a essa. Tudo indica que, se existiu um povo tão antigo, ele desapareceu completamente. Agora ficam as perguntas fundamentais: quem eram essas pessoas e quando chegaram?"

É o que arqueólogos e geneticistas e outros especialistas vêm tentando responder há anos — pelo menos desde o século 19. Além dessas três propostas — do grupoJennifer, doStrauss eNiède — há outras teorias.

A mais antiga, e que permaneceu aceita por mais tempo, é a conhecidainglês como Clovis-first (Clóvis-primeiro), nomeum sítio arqueológico descoberto1939, no Estados Unidos, no qual foram encontradas pontasflechas feitaspedra datadas11,4 mil anos.

Crédito, Nature/Reprodução

Legenda da foto, Artefatos encontrados no sítio da Caverna Chiquihuite

De acordo com ela, os primeiros humanos teriam chegado ao continente há não mais que 12 mil anos. Hoje essa teoria está descreditada, por causa descobertas arqueológicas, como o sítio Monte Verde, no Chile, onde foram encontrados artefatos e outros vestígios deixados por seres humanos com mais12.500 anos - anteriores, portanto, à cultura Clóvis.

Jennifer diz que ainda existe muito debate sobre como e quando aconteceu o povoamento inicial nas Américas.

"Mas agora quase tudo mundo aceita que já havia ocupações difundidas (incluindo na América do Sul) ao redor14.000 anos atrás", afirma. "O maior problema é que,torno17.000 anos atrás, havia mantosgelo no continente norte-americano, que teriam impedido as migrações pelo continente. Além disso, mais20.000 anos atrás, o corredor beringiano — a 'ponte' que ligava a América com a Ásia, pelo qual essas pessoas teriam chegado - também estava debaixo do gelo."

Por isso, diz ela, o debate muda para se as pessoas teriam conseguido chegar navegando pela costa pacífica,barcos, o que vários estudiosos consideram improvável. "O que é interessante sobre as datascerca30.000 anos na CavernaChiquihuite (que batem com dataçõesPiauí) é que nessa época mais recuada ainda, na verdade havia menos gelo - tanto no corredor beringiano quanto no continente norte-americano - fazendo qualquer migração (inclusive por terra) mais fácil do que teria sido 10.000 anos depois", diz. "Este estudo então coloca essa possibilidadepauta novamente."

Pra Strauss, as novas descoberta podem levantar uma hipótese mais ousada. "Será que os humanos que viveram na região da Caverna Chiquihuite poderiam representar formas pré-sapiens da humanidade na América?", indaga.

"Uma espécieNeanderthal ou Denisovano do Novo Mundo? Tão improvável quanto fascinante. Infelizmente, até que a gente consiga algum vestígio bioquímico dessas populações essa pergunta permaneceaberto. No artigo da Nature, eles tentarem muito achar DNA no sedimento que compunha o sitio, mas sem sucesso." Por isso, são perguntas ainda sem respostas.

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