'Como assim Kãgfér não é brasileiro?': a lutapais por nomes indígenas e africanos:

Julio Cezar Inacio com os filhos Kãgfer e Kasóhn

Crédito, Foto: Arquivo pessoal

Legenda da foto, Engenheiro enfrentou resistência ao registrar filhos com nomes da tribo indígena kaingang, à qual ele pertence

"Descaracterizou um pouco, mas tudo bem", conforma-se Inácio, que teráretirar o acento no registro feito na Funai. Segundo ele, problemas assim ainda são comuns na região.

Dúvidas

Criador do Instituto Kame, organização não-governamental que trabalha com projetoshabitação para povos indígenas, Inácio é casado com uma italiana. Ela aceitou bem os nomes kaingang para as crianças, que têm também o sobrenome materno.

Inácio quer agora incluirseu registro no cartório o nome indígena pelo qual é chamadofamília, Mỹg No (pronuncia-se Man Do e significa um tipoabelha).

No RioJaneiro, o casal Cizinho Afreeka (nome adotado pelo funcionário público Moacir Carlos da Silva) e Jéssica JulianaPaula da Silva teverecorrer à Justiça para registrar a filha como Makeda (pronuncia-se Makêda) Foluke.

Segundo pesquisa feita pelos pais, Makeda vem do amárico, língua adotada na Etiópia, e era como se chamava a rainhaSabá, figura mítica mencionada na Torá, no Velho Testamento e no Alcorão. Foluke,iorubá, significa "colocada aos cuidadosDeus".

Cizinho Afreeka e Jéssica JulianaPaula da Silva com a filha Makeda Foluke

Crédito, Fotos: Lula Aparício | Divulgação

Legenda da foto, Casal só pode registrar filha como Makeda Foluke após imbróglio judicialtrês meses

O CartórioRegistro Civil das Pessoas Naturais do 2º DistritoSão JoãoMeriti entendeu que o nome Makeda suscitava dúvidas,acordo com o previsto na Lei 6.015/73 (LeiRegistros Públicos). Em seu artigo 55, a lei afirma que os oficiais do registro civil não registrarão "prenomes suscetíveisexpor ao ridículo os seus portadores". Caso os pais não aceitem a recusa, o assunto deve ser levado ao juiz competente.

"Não houve preconceito. Entendemos que o nome poderia dar margem a uma leitura errada, má queda, por exemplo. Suscitou dúvida, seguimos o que diz a lei, consultamos o juiz", afirmou à BBC Brasil Luiz Fernando Eleutério Mestriner, titular do cartório.

O Ministério Público sugeriu que fosse agregado outro prenome. A decisão judicial indeferiu o registroMakeda Foluke, permitindo que ele fosse usado desde que houvesse outro prenome.

Os pais não cederam. O advogado Hédio Silva Júnior, especializado na questão racial, recorreu ao ConselhoMagistratura do TribunalJustiça do RioJaneiro. Argumentou que o nome resultava do desejo dos pais e, embora incomum, nada traziailícito, grotesco, aberrante ou vexatório. O Conselho deu ganhocausa à família. Em 16junho, três meses depoisseu nascimento, Makeda Foluke foi registrada com o nome escolhido pelos pais.

Estudiosa do tema, Maria Celina BodinMoraes, professoradireito Civil na PUC-Rio e na Uerj, entende que não há preconceito na reação do cartório ao nome Makeda.

Ao contrário, percebe preocupaçãoseguir a lei para evitar a repetiçãocasos que, no passado, transformavam as criançasalvochacota.

"Considero importante que haja algum tipocontrole legal sobre isso, e foi essa a intenção do legislador: evitar casos absurdos e proteger a criança, que não pode ser entendida como propriedade dos pais", afirma.

Homenagem

A advogada Makeda Soares,26 anos, ainda se lembra do tempoque, na escola, os professores estranhavam e usavam seu outro prenome, Luanna. Hoje quem manda no próprio nome é ela, que só se apresenta como Makeda. "Meu pai conta que queria homenagear a mãe África. Adoro esse nome", diz a advogada, que foi procurada pela família da recém-chegada Makeda.

Shirley e Sheila Oliveira

Crédito, Foto: Lucas Silvestre | Divulgação

Legenda da foto, Irmãs usaram nome "Makeda"empresa como homenagem à RainhaSabá, personagem mítica africana

A homenagem à rainhaSabá também motivou as empresárias negras Shirley e Sheila Oliveira a batizarem como Makeda Cosméticosempresaprodutos para cabelos crespos. Sheila até incorporou Makeda a seu nome social.

"O que ficou flagrante nesse caso foi a associação do nome africano como algo distante da brasilidade, nesse país que tem a maioriasua população negra. É uma flagrante negação da nossa identidade. Também destaco a associação do nomeorigem africana à molecagem, às coisas ruins, como má queda, ou atéduplo sentido", argumenta Silva Júnior, que citouseu recurso o direito dos indígenasusarem nomessua etnia.

Militante do movimento negro, Silva Júnior também teve dificuldades para registrar o filho como Kayodê - que,iorubá, significa "aquele que traz honra e alegria". Mas conseguiu.