A origem do mito bíblico que foi utilizado para 'justificar' racismo:aa jogos cassino

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Em agosto, por exemplo, a primeira-dama Michelle Bolsonaro criticou Lula nas redes sociais por um vídeoaa jogos cassinoque o petista aparece sendo abençoado por mulheresaa jogos cassinoreligiões afro.

"Isso pode, né? Eu falaraa jogos cassinoDeus não pode, né", escreveu a primeira-dama,aa jogos cassinoresposta a uma publicaçãoaa jogos cassinouma vereadora da direita radical que falava que Lula "vendeu a alma" para vencer as eleições.

Bolsonaristas também têm associado a companheiraaa jogos cassinoLula, a socióloga Rosângela Lula da Silva (conhecida como Janja), às mesmas religiões.

Já Bolsonaro tem dito que as eleições são uma batalha do "bem contra o mal" — e ele seria o bem.

Nos últimos anos, fiéis da umbanda e do candomblé vêm sofrendo ataquesaa jogos cassinointolerância religiosa, como destruiçãoaa jogos cassinoterreiros, agressões físicas e xingamentos.

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Mas até chegar às eleições deste ano, essa história mítica da famíliaaa jogos cassinoNoé passa pela escravidão, racismo, embranquecimento da população, igrejas evangélicas e pela chamada Bancada da Bíblia no Congresso. E ela começa no livroaa jogos cassinoGênesis, que narra a criação do mundo.

Nudez e maldição

O Antigo Testamento conta que, depois do dilúvio, Deus procurou Noé para selar uma aliança. A destruição iria cessar e todos que saíssem da famosa arca — humanos e animais —, iriam repovoar a Terra.

Noé tinha três filhos: Jafé, Sem e Cam. Esse último também tinha um filho, Canaã, neto do patriarca.

Depois do dilúvio, Noé virou lavrador e plantou um vinhedo. Um dia, "bebendo do vinho, embriagou-se e achou-se nu dentro daaa jogos cassinotenda", narra a Bíblia.

"Cam, paiaa jogos cassinoCanaã, viu a nudezaa jogos cassinoseu pai, e contou a seus dois irmãos que estavam fora. Então tomaram Sem e Jafé uma capa, puseram-na sobre os seus ombros e, andando virados para trás, cobriram a nudezaa jogos cassinoseu pai; tiveram virados os seus rostos, e não viram a nudez."

Quando acordou, Noé ficou possesso ao descobrir que seu filho tinha vistoaa jogos cassinonudez - algo considerado inaceitável. Então, resolveu amaldiçoar Canaã, tornando seu neto um servo. "Maldito seja Canaã, servo dos servos seráaa jogos cassinoseus irmãos", disse Noé.

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Legenda da foto, Pintura retrata o mitoaa jogos cassinoCam narrado na Bíblia

Nessa povoação, Jafé teria levado à criação dos europeus, germânicos e arianos. Sem teria originado os povos semitas. Já povos da Ásia Oriental descenderiamaa jogos cassinoCam.

Mas Canaã, filhoaa jogos cassinoCam amaldiçoado pelo avô, seria o pai dos etíopes, sudaneses, ganeses e ameríndios. Ou seja, os africanos seriam descendentesaa jogos cassinoCam eaa jogos cassinoCanaã.

Para o pastor Kenner Terra, doutoraa jogos cassinoCiências da Religião, o mito é uma "etiologia", ou seja, "um texto que pretende explicar a razãoaa jogos cassinocertos nomes ou práticas".

"Essa tradição justificou, bem posteriormente, os conflitos entre o povoaa jogos cassinoIsrael e Canaã, descendenteaa jogos cassinoCam", explica.

Segundo texto do historiador Hiran Roedel, doutoraa jogos cassinoHistória pela Universidade Federal do Rioaa jogos cassinoJaneiro (UFRJ), o destino dos três filhosaa jogos cassinoNoé eaa jogos cassinoseu neto Canaã ajudam a explicar por que essa narrativa foi usada por europeus e por ramos do cristianismo como justificativa para escravizar outros povos, principalmente indígenas e africanos.

"Quando as rotas das grandes navegações se estabelecem, dão-seaa jogos cassinodireção, para efeitoaa jogos cassinocomércio, das terras que, segundo a Bíblia, haviam sido povoadas pelos descendentesaa jogos cassinoCam, os amaldiçoados. Nesse sentido, eram povos que poderiam e deveriam ser subjugados, segundo o entendimento no texto sagrado", escreve Roedel.

O historiador André Chevitarese, professor do Institutoaa jogos cassinoHistória da UFRJ, explica que o mitoaa jogos cassinoCam foi utilizado para pintar a África como "personificação do mal" por conta da "origem amaldiçoadaaa jogos cassinosua população" por conta dessa interpretação do mito bíblico.

"O continente passou a ser marcado como demoníaco, amaldiçoado por Deus e formado por pessoas mergulhadas no pecado. O uso simbólico desse mito inunda a cabeça das pessoas sem que elas se deem conta. Essa imagem é utilizada até hoje", explica.

'A redençãoaa jogos cassinoCam'

O mitoaa jogos cassinoCam também ajudou a ilustrar o projeto racistaaa jogos cassinoembranquecimento da população brasileira depois do fim da escravidãoaa jogos cassino1888, principalmente com a chegadaaa jogos cassinoimigrantes europeus que substituíram a mãoaa jogos cassinoobra escravizada.

Uma das mais famosas pinturas da época é A Redençãoaa jogos cassinoCam, do pintor espanhol Modesto Brocos, que viveu no Brasil por algumas décadas.

A tela,aa jogos cassino1895, mostra uma mulher idosa e negra erguendo as mãos e os olhos aos céus. Ao lado, há outra mulher mais jovem, provavelmente filha da idosa,aa jogos cassinopele mais clara. Ela segura um bebê branco.

À direita há um homem também branco, que seria o marido e pai da criança, olhando para o filho com certa admiração.

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Legenda da foto, Quadro A Redençãoaa jogos cassinoCam,aa jogos cassino1895, éaa jogos cassinoautoria do pintor espanhol radicado no Brasil Modesto Brocos

Em entrevista ao Nexo Jornalaa jogos cassino2018, a historiadora e antropóloga Tatiana Lotierzo, autora do livro Contornos do (In)visível: Racismo e Estética na Pintura Brasileira (1850-1840), argumenta que as personagens da pintura representam as três gerações necessárias que supostamente tornariam o Brasil um país branco.

Nessa análise, a redenção dos "descendentes"aa jogos cassinoCam eaa jogos cassinoCanaã seriaaa jogos cassinoextinção como pessoas negras.

Ou seja, o bebê da pintura, descendente da idosa negra, representaria esse embranquecimento. "O quadroaa jogos cassinoBrocos, ao apelar para a ideiaaa jogos cassinoredenção, é sem dúvida uma tela racista", disse a antropóloga.

"Uma das associações que aparecem com mais frequência na imprensa do período,aa jogos cassinotextos escritos por intelectuais renomados, como Olavo Bilac e Coelho Neto, é justamente a da morte como redenção, para as pessoas negras. São textosaa jogos cassinomuita violência, pois concebem que a extinção dessas pessoas, inclusive pela via do embranquecimento, é o caminho para a emancipação", explicou Lotierzo.

Uso político

Mais recentemente,aa jogos cassino2011, o mitoaa jogos cassinoCam foi resgatado pelo pastor evangélico Marco Feliciano (PL) para dizer que a África é "amaldiçoada". O religioso, que na época era deputado federal, foi eleito novamente para o cargo nas eleições deste ano.

"Africanos descendemaa jogos cassinoancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato. O motivo da maldição é polêmica. Não sejam irresponsáveis twitters rsss", escreveu o pastor e político.

Ele continuou: "Sobre o continente africano repousa a maldição do paganismo, ocultismo, misérias, doenças oriundasaa jogos cassinolá: ebola, aids. Fome... Etc. Não tem nadaaa jogos cassinocomentário racista. É um comentário teológico que está na Bíblia."

Feliciano apagou a mensagem após ser questionado por jornalistas.

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Legenda da foto, Pastor e deputado Marco Feliciano postou,aa jogos cassino2011, comentário ligando africanos ao mitoaa jogos cassinoCam

Na época, o pastor precisou se explicar ao Supremo Tribunal Federal (STF) após ser acusadoaa jogos cassinodiscriminação e preconceitoaa jogos cassinoraça pela Procuradoria-Geral da República (PGR) - ele também respondeu por comentários homofóbicos.

Emaa jogos cassinodefesa, afirmou que "a crença dos cristãosaa jogos cassinoos problemas e obstáculos não surgirem necessariamenteaa jogos cassinoatos do governo e ou empresários, mas do Céu, ou seja, como se a humanidade expiasse por um carma, nascido no momentoaa jogos cassinoque Noé amaldiçoou o descendenteaa jogos cassinoCam e todaaa jogos cassinodescendência, representada por Canaã, o mais moçoaa jogos cassinoseus filhos".

Para o pastor Kenner Terra, embora o mitoaa jogos cassinoCam não seja mais tão utilizado "como instrumentoaa jogos cassinolegitimação do racismo", ele tem "potência simbólica e pode servir para discursos violentos."

Já a pesquisadora Tayná Louise De Maria, doutorandaaa jogos cassinoHistória Comparada pela UFRJ, acredita que o mito se faz presenteaa jogos cassinomaneira simbólica até na representação do mal dentro das igrejas eaa jogos cassinopublicações.

"Em muitas igrejas eaa jogos cassinorevistas evangélicas, o mal é sempre representado pelas cores escuras", disseaa jogos cassinoentrevista recente à BBC News Brasil.

Segundo ela, que estuda intolerância religiosa no Brasil, a imagemaa jogos cassinouma" África amaldiçoada" ainda ressoa no imaginárioaa jogos cassinoquem combate as religiõesaa jogos cassinomatriz africana como uma vertente do mal.

Por causa disso, diz, a intolerância afeta os fiéis "do momentoaa jogos cassinoque a pessoa coloca suas roupas religiosas até quando anda na rua."

Intolerância religiosa

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Legenda da foto, Adeptos do candomblé têm sofrido ataquesaa jogos cassinointolerância religiosa nos últimos anos

Assim como outras manifestações culturais da população negra, as religiões afro-brasileiras historicamente enfrentam perseguições e até criminalização.

Embora a Constituiçãoaa jogos cassino1891, a primeira da República, garantisse a liberdadeaa jogos cassinoculto, o Código Penalaa jogos cassino1890 estabelecia como crime, por exemplo, "praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usaraa jogos cassinotalismãs e cartomancias para despertar sentimentosaa jogos cassinoódio ou amor, inculcar curaaa jogos cassinomoléstias curáveis e incuráveis."

No Rio Janeiro, durante muito tempo o museu da Polícia Civil armazenava centenasaa jogos cassinoobjetos relacionados ao candomblé e à umbanda, artefatos que eram confiscados no início do século passadoaa jogos cassinobatidas policiaisaa jogos cassinoterreiros. Recentemente, uma campanhaaa jogos cassinoreligiosos conseguiu recuperar esse acervo.

Nos últimos anos, casosaa jogos cassinointolerância contra religiosos vêm se avolumando.

Segundo o Relatório Sobre Intolerância Religiosa no Brasil, produzido pelo Centroaa jogos cassinoArticulaçãoaa jogos cassinoPopulações Marginalizadas (Ceap) e pelo Observatório das Liberdades Religiosa (OLR), apenas no Estado do Rioaa jogos cassinoJaneiro foram registrados 47 casosaa jogos cassinointolerância contra religiõesaa jogos cassinomatriz africana no ano passado.

Em 56% dos casos, aponta o relatório, o violador era "cristão evangélico".

Há desde invasão e depredaçãoaa jogos cassinotemplos e terreiros a ameaças, mensagens preconceituosasaa jogos cassinoredes sociais, xingamentos a fiéis e até agressões.

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Em um deles, narra o documento, uma sacerdotisa do candomblé e seus dois filhos, trajadosaa jogos cassinobranco, foram agredidos por um motoristaaa jogos cassinoaplicativo. Ele os expulsou do automóvel e arremessou seus objetos para fora, chamando os passageirosaa jogos cassino"satanás".

Para Denisson D'Angiles, sacerdote do Instituto Centro Espiritualistaaa jogos cassinoUmbanda Estrela Guia, religiosos dessas vertentes são vistos como "obreiros do demônio".

"Há uma tentativaaa jogos cassinonos associar a uma espécieaa jogos cassinopecado capital, como se fôssemos inimigos a serem combatidos. Todos os dias somos xingados e questionados porque usamos nossa indumentária branca, todos os dias preciso me explicar para as pessoas", diz.

Já o babalaô Ivanir dos Santos, professor da pós-graduaçãoaa jogos cassinoHistória Comparada da UFRJ, acredita que o discurso preconceituosoaa jogos cassinoautoridades e políticos influencia diretamente no cotidiano dos religiosos que precisam enfrentar a intolerância.

"Em um país racista, o discurso está se transformandoaa jogos cassinoações práticas contra terreiros e religiosos. Ao invésaa jogos cassinofalaremaa jogos cassinoquestões sociais, da fome, do desemprego, estão utilizando as religiões com objetivos políticos e econômicos", diz.

O babalaô, que mora no morro da Mangueira, no Rioaa jogos cassinoJaneiro, diz que a convivência com os evangélicos na região tem sido respeitosa, embora o diálogo "não seja muito fácil".

"Na verdade, quando a gente pensaaa jogos cassinoviolência, os evangélicos são os que mais sofrem perdas. Muitos evangélicos, inclusive crianças evangélicas, são mortosaa jogos cassinosituaçõesaa jogos cassinoviolência. A bala perdida não sabe se você toca atabaque ou lê a Bíblia, mas sabe que você é preto e pobre", diz.