Luiz Gama: A desconhecida ação judicial com que advogado negro libertou 217 escravizados no século 19:casino zeppelin
O advogado,casino zeppelininíciocasino zeppelincarreira, decidiu acionar a Justiça para que a liberdade e a vontade do empresário fossem respeitadas. O processo judicial que se seguiu, conhecido nos jornais da época como "Questão Netto", é apontado por historiadores consultados pela BBC News Brasil como a maior ação coletivacasino zeppelinlibertaçãocasino zeppelinescravizados conhecida nas Américas. Por ora, não há registrocasino zeppelinprocesso que envolva mais pessoas, segundo eles.
Essa açãocasino zeppelinLuiz Gama foi encontrada recentemente pelo historiador Bruno Rodriguescasino zeppelinLima, doutorandocasino zeppelinHistória e Teoria do Direito pelo Max Planck Institute,casino zeppelinFrankfurt, na Alemanha.
A peçacasino zeppelinmaiscasino zeppelinmil páginas - toda escrita à mão - estava armazenada no Arquivo Nacional e não há registroscasino zeppelinque ela tenha sido analisadacasino zeppelinprofundidade. "Não há grandes registros desse processo na historiografia sobre Luiz Gama. Encontrei citações nas décadas seguintes ao processo e uma uma notacasino zeppelinrodapé num livro dos anos 1990", diz Lima, que há maiscasino zeppelinuma década pesquisa a vida e a obra do abolicionista.
Lima fez uma cópia do processo e a levou para a Alemanha, onde passou meses decifrando as várias caligrafias presentes no calhamaço. "Logo identifiquei a letracasino zeppelinGama, que eracasino zeppelinmais fácil leitura. Mas havia várias outras, como acasino zeppelinescrivães, promotores e juízes", explica.
A análise do processo agora fará parte da tesecasino zeppelindoutorado que o historiador vai apresentar ao final deste ano sobre a obra jurídica do abolicionista. Além desse, a tese contará com dezenascasino zeppelinoutros processos ainda desconhecidos, diz.
A 'Questão Netto'
Lima conta que o processo passou a corrercasino zeppelinSantos, litoral sulcasino zeppelinSão Paulo, por causacasino zeppelinuma pendenga judicial do comendador Ferreira Netto com um sócio da cidade. Inicialmente, Luiz Gama se apresentou ao juiz da comarca apenas como um interessado no caso.
"Ele fez uma petição ao juizcasino zeppelinmaneira bastante escorregadia, porque ele não era parte naquela briga judicial pela herança. Ele entra no processo como um cidadão que queria saber o que aconteceu com os escravizados. O juiz respondeu que eles precisavamcasino zeppelinum representante", diz.
A princípio, Gama não foi nomeado "curador" dos interesses do grupo, mas, depoiscasino zeppelinoutros cidadãos se recusarem a participar da ação, ele foi indicado pelo próprio juiz para assumir a tarefa.
O abolicionista não sabia quem estava representandocasino zeppelinfato, mas mandou emissários para descobrir os nomes, idades e há quanto tempo pertenciam ao comendador.
No total, havia 217 escravizados nas propriedades do fidalgo - gentecasino zeppelinAngola, Moçambique, Congo, entre outras nações africanas. "Gama recebe informações com nome, idade, naturalidade, históriascasino zeppelinvida. Havia famílias inteiras nas fazendas", diz Lima.
Mas como garantir que o direito à liberdade, recém-conquistado com a morte do comendador, fosse garantido? Lima acredita que a "Questão Netto" tenha sido o primeiro grande processocasino zeppelinliberdadecasino zeppelinLuiz Gama, que, na época, havia sido demitidocasino zeppelinum cargo na polícia.
Quem era Luiz Gama?
Nascidocasino zeppelin1830casino zeppelinSalvador, Luiz Gama tevecasino zeppelinlidar com a escravidão desde cedo. Sua mãe era uma mulher negra e seu pai, um fidalgocasino zeppelinorigem portuguesa.
"A vida dele foi singularcasino zeppelintodos os aspectos. Muitos historiadores acreditam que ele era filhocasino zeppelinLuiza Mahin, uma guerreira que participoucasino zeppelinvárias revoltas negras na Bahia", diz Zulu Araújo, presidente da Fundação Pedro Calmon e ex-presidente da Fundação Palmares durante o governo Lula.
"Mas não há certezacasino zeppelinque Mahin eracasino zeppelinmãe mesmo ou se foi uma história inventada por Gama. O fato é que a mãe dele desapareceu, e ele foi criado pelo pai."
Aos 10 anos, Gama foi vendido pelo próprio pai a um contrabandista do Riocasino zeppelinJaneiro, que logo o repassou a um fazendeiro paulista. O dinheiro da venda serviria para o pai saldar uma dívidacasino zeppelinjogo. Na adolescência, ele foi escravizado, mas, com 18 anos, conseguiu provascasino zeppelinsua liberdade e fugiu do cativeiro.
Aprendeu a ler e escrever, foi poeta e trabalhou como jornalista, tipógrafo e escrivãocasino zeppelinpolícia, onde passou a lidar diariamente com a legislação. Autodidata, o jovem tentou cursar Direito na tradicional Faculdade do Largo São Francisco, mas foi rejeitado pela elite que comandava a instituição. Ele só ganharia o título oficialcasino zeppelinadvogado, dado pela OAB,casino zeppelin2015, quandocasino zeppelinmorte completou 133 anos.
"Gama era uma pessoa 'improvável' para a época, porque era negro e pobre. Ele aprende o Direito na prática, trabalhando na polícia e frequentando a biblioteca particularcasino zeppelinFurtadocasino zeppelinMendonça, chefe da polícia e amigo que o protegia", explica Tâmis Parron, professorcasino zeppelinHistória do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Commun (Núcleocasino zeppelinEstudoscasino zeppelinHistória Comparada Mundial).
"A grande sacada dele foi perceber a centralidade do Direito na luta abolicionista e como estratégia para destruir a escravidão. O ativismo jurídico tinha sido muito importante para o abolicionismo na Inglaterra e nos Estados Unidos. Ele o trouxe para o Brasil. Gama percebeu que a própria legislação podia ser usada contra os senhores", diz Parron.
Estima-se que o advogado tenha conseguido libertar centenascasino zeppelinescravizados com ações na Justiça - há centenascasino zeppelinprocessoscasino zeppelinliberdade com seu nome no arquivo do Tribunalcasino zeppelinJustiçacasino zeppelinSão Paulo, materialcasino zeppelinboa parte desconhecido da historiografia. Muitas vezes, ele trabalhavacasino zeppelingraça.
Mas como ele conseguia libertar tantas pessoas?
Primeiro, é preciso voltar um pouco no tempo. Em 7casino zeppelinnovembrocasino zeppelin1831, pressionado pela Inglaterra, o Império brasileiro assinou uma lei que proibia o tráficocasino zeppelinafricanos ao Brasil. Ou seja, a partir daquele momento, qualquer africano trazido ao país deveria ser libertado imediatamente.
Mas isso não aconteceu na prática. Embora embarcações inglesas patrulhassem a costa brasileiracasino zeppelinbuscacasino zeppelinnavios negreiros, o contrabando era bastante comum no país - essa discrepância entre o que estava na lei e a vida real fez com que a norma ganhasse o apelidocasino zeppelin"lei para inglês ver".
Estima-se que maiscasino zeppelin700 mil africanos foram trazidos ilegalmente para o Brasil entre 1831 e 13casino zeppelinmaiocasino zeppelin1888, quando a escravidão foi finalmente abolida pela Lei Áurea. Em todo o períodocasino zeppelinescravidão, foram cerca cinco milhõescasino zeppelinpessoas.
Luiz Gama passou a atuarcasino zeppelincasoscasino zeppelinpessoas contrabandeadas ao país depois dessa legislação. "Ele reunia provas para demonstrar que, se a pessoa tinha nascido na África e foi trazida ao Brasil depoiscasino zeppelin1831, ela fatalmente foi traficada ecasino zeppelincondiçãocasino zeppelinescravizada era ilegal. Esse foi um dos argumentos que ele utilizou para conseguir libertar centenascasino zeppelinpessoas", conta Bruno Lima.
Segundo Tâmis Parron, o tráfico negreiro ocorria com o consentimento e a participação do Império, que dependia da economia escravista. "Para existir e atuar, o crime organizado precisa da participação ou da anuênciacasino zeppelinalguma esfera da burocracia estatal", diz.
"O que Gama fez com seu ativismo foi escancarar que o Estado e o escravismo brasileiros, alémcasino zeppelinroubarem os direitos naturais e inalienáveis do homem, eram literalmente ladrões e criminosos, pois burlavam a lei que eles próprios criaram", completa Parron.
Liberdade, vidas perdidas
Luiz Gama apresentou uma tese jurídica bastante simples, porém inédita, para tentar ganhar a ação contra a família e os sócios do comendador Ferreira Netto, que queriam manter a propriedadecasino zeppelinseus 217 cativos.
"Ele teve a sacadacasino zeppelinusar a voz do senhorcasino zeppelinescravos como argumento jurídico contra ele próprio. O testamento havia sido publicadocasino zeppelinvida na imprensa. Então, a estratégia dele foi a seguinte: se o próprio comendador escreveu que gostaria que os escravizados fossem libertados, por que eles ainda não estavam livres?", conta Bruno Lima.
Ou seja, o advogado argumentou que, quando Ferreira Netto morreu, os cativos ficaram livres imediatamente, pois o testamento assim o pregava. Para Gama, o papel da Justiça no caso não seria conceder a liberdade aos escravizados, mas devolvê-la a eles.
"Ele paracasino zeppelinusar a palavra 'escravo' no processo, chama-oscasino zeppelinlibertandos. Na época, havia o crimecasino zeppelinreduçãocasino zeppelinuma pessoa livre à condiçãocasino zeppelinescravizado. Isso não era permitido pela lei. Então, Gama inverte o jogo, mostrando ao juiz que a família do comendador estava cometendo um crime ao escravizar pessoas que já eram declaradas livres. É um argumento meticuloso e muito bem pensado", explica Lima.
Os herdeiros da herança, temendo perder um bem tão valioso, contrataram um advogado renomado para representá-los no tribunal: José Bonifácio, poeta romântico, professorcasino zeppelinDireito no Largo São Francisco, conhecido como "o Moço".
Segundo o historiador, a ideia da família era ter como defensor um advogado que não fosse identificado com a escravidão. Bonifácio era um político liberal e abolicionista. De fato, anos depois do caso, ele participaria como senador da campanha pelo fim do regime. No processo do comendador, porém, defendeu os escravocratas.
Curiosamente, o argumento jurídicocasino zeppelinBonifácio, que contestou o trecho do testamento que libertava os cativos, começavacasino zeppelinmaneira um pouco culpada: "Sem opor-me à liberdade, mas…".
Para Lima, ao longo do processo, Bonifácio "jogoucasino zeppelinimagemcasino zeppelinabolicionista no lixo". "Se ele começou escrevendo que não se opunha à liberdade, no restante da ação agiu como um escravocrata confesso, defendendocasino zeppelinmaneira ensandecida a família do comendador", aponta o historiador.
No auge do processo, quando a causa ganhou repercussãocasino zeppelinjornais da corte, Luiz Gama contou estar sofrendo ameaçascasino zeppelinmorte. Mencionou o fatocasino zeppelindois textos escritoscasino zeppelinuma mesma semanacasino zeppelinsetembrocasino zeppelin1870, quando houve uma audiência importante do caso:
Ao jornal Correio Paulistano, revelou uma trama da chefia da polícia para matá-lo. Jácasino zeppelinuma carta ao filho, que tinha apenas 11 anos na época, escreveu o seguinte: "Lembra-tecasino zeppelinescrevi essas linhascasino zeppelinmomento supremo, sob ameaçacasino zeppelinassassinato."
Porém, apesar da pressão da elite escravocrata, o juizcasino zeppelinSantos deu ganhocasino zeppelincausa ao argumentocasino zeppelinGama,casino zeppelintese libertando os 217 cativos. Mas Bonifácio apelou a outras instâncias no interiorcasino zeppelinSão Paulo, numa chicana jurídica que prolongou o processo e adiou a libertação das vítimas.
Em 1872, o julgamento do mérito finalmente chegou ao Supremo Tribunalcasino zeppelinJustiça, a última instância, no Riocasino zeppelinJaneiro. No tribunal, Gama foi representado por um amigo, o advogado Saldanha Marinho, pois a corte não aceitavacasino zeppelinatuação foracasino zeppelinSão Paulo. O abolicionista escreveu a sustentação final, apresentada por Marinho, e acompanhou o julgamento no palácio da Justiça.
Os ministros concordaram com a tesecasino zeppelinGama, mas a vitória não foi completa. Eles determinaram um prazocasino zeppelin12 anos para a libertação dos 217 escravizados a partir da feitura do testamento,casino zeppelin1866. Ou seja, os cativos tiveram que prestar serviços forçados para os herdeiros do comendador até 1878, quando finalmente foram libertados.
"Essa liberdade condicional foi uma derrota para Gama, mas a vitória dele no mérito da causa, uma alforria coletiva, foi uma coisa escandalosa para a época. Isso nunca tinha acontecido no Brasil. São raríssimas as libertações coletivas no sistema escravocrata das Américas, o que dirácasino zeppelinuma alforriacasino zeppelin217 pessoas", explica Lima.
A vitória históricacasino zeppelinGama na maior corte do país não foi noticiada com destaque na imprensa paulista, bastante ligada a fazendeiros escravocratas. Temia-se que a repercussão da história pudesse gerar novos processos. "Saiu apenas uma pequena notacasino zeppelinum jornal, e ela só informava o final da causa", diz o historiador.
Ao final do prazo,casino zeppelin1878, um jornal paulista noticiou uma grande festacasino zeppelincomemoração pela libertação dos cativos do comendador Ferreira Netto. No entanto, das 217 pessoas representadas por Gama, apenas 130 ainda estavam vivas para gozar a liberdade finalmente conquistada, segundo a publicação.
"No fim das contas, Gama não se sentiu vitorioso, talvez por isso ele pouco tenha falado dela depois. Mesmo tendo ganho o mérito, 80 vidas foram perdidas", diz Lima.
Maior ação coletiva
A "Questão Netto" foi a maior causacasino zeppelinlibertação defendida por Luiz Gama. Segundo Bruno Lima, ela chegou a ser citada brevemente por historiadores nas décadas seguintes, mas caiu no esquecimento.
A segunda maior açãocasino zeppelinGama, por exemplo, tinha 18 pessoas, e correucasino zeppelinPindamonhangaba, interiorcasino zeppelinSão Paulo. Portanto, dado que o advogado foi o maior ativista do abolicionismo jurídico do país, o caso dos 217 cativos pode ser o maior processo do tipo na história do Brasil.
O historiador Tâmis Parron, da UFF, vai mais longe: o catatau encontrado e analisado por Bruno Lima pode ser a maior ação coletivacasino zeppelinlibertaçãocasino zeppelinescravizados conhecida nas Américas até hoje.
"Nos Estados Unidos e no restante da América, os processoscasino zeppelinalforria eram bem distintos. Nos EUA, por exemplo, a alforria não dependia apenas da vontade do senhor, como no Brasil, mas sim da autorizaçãocasino zeppelinvárias instâncias da burocracia estatal. Era difícil ter ações coletivas. Nunca li nada na historiografia do abolicionismo sobre um processo que envolvesse tantas pessoas", diz.
Para Lima, a descoberta abre brechas importantes nas pesquisas sobre o abolicionismo brasileiro e sobre a trajetóriacasino zeppelinumcasino zeppelinseus maiores expoentes. Em seu doutorado, ele analisa principalmente os argumentos jurídicos das partes, mas outros aspectos da ação ainda podem ser pesquisados.
"Há muito a se estudar ainda sobre esse processo: quem eram esses escravizados? O que aconteceu com eles depois? Outro ponto é que ele joga luz sobre a figuracasino zeppelinJosé Bonifácio, visto historicamente como um grande abolicionista, mas que na ação defendeu escravocratascasino zeppelinmaneira bastante enfática", aponta o historiador.
Apagamento
Existem algumas biografias sobre Luiz Gama, mascasino zeppelinobra completa ecasino zeppelinatuação como advogado ainda não sãocasino zeppelintodo conhecidas. Há diversas razões para explicar os motivos desse esquecimento.
"Primeiro, existe um problema estrutural da pesquisa acadêmica no Brasil que é o subfinanciamento. É uma vergonha que a obracasino zeppelinLuiz Gama não esteja toda publicada. Se ele fosse americano, dada acasino zeppelinimportância histórica, tudo o que ele escreveu já estaria na vigésima edição. Qualquer assunto da história do Brasil ainda é um terreno a se desbravar", diz Tâmis Parron.
Para ele, outro problema afeta os estudos sobre o abolicionismo. "Com o racismo estrutural e o negacionismocasino zeppelinrelação à escravidão e às desigualdades sociorraciais, não é difícil entender por que esse grande abolicionista da história mundial não temcasino zeppelinobra estudada no país", completa.
Já Zulu Araújo, ex-presidente da Fundação Palmares e doutorandocasino zeppelinRelações Internacionais pela Universidade Federal da Bahia, acredita que a elite brasileira tentou "branquear" a história ao associar o fim da escravidão apenas à Princesa Isabel, que assinou a Lei Áureacasino zeppelin1888, e não ao trabalho incessante dos abolicionistas.
"Tentou-se apagar a escravidão da história do país com a assinaturacasino zeppelinuma senhora da elite. Esse tipocasino zeppelinnarrativa apaga a participação popular no processo abolicionista e as lideranças que tinham origem popular, como Luiz Gama", diz. "Ele era um negro que viveu todas as instâncias da escravidão: nasceu livre, foi vendido pelo próprio pai, tornou-se escravo e depois se libertou para defender outros escravizados."
Segundo Zulu, o movimento negro, depois dos anos 1970, escolheu Zumbi dos Palmares como seu maior símbolo na luta contra o racismo. "Para se contrapor à Princesa Isabel, escolheu-se uma figura guerreira como referência. Foi uma escolha histórica. Acredito que hoje, com o maior acesso da população negra às universidades, outras pessoas importantes voltarão a ser estudadas. Acredito que uma das saídas para o movimento é resgatar outros símbolos da nossa história, como Luiz Gama", diz.
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