'Não temos para onde ir': as famíliasocupaçãoSP que temem o despejo no auge da pandemia:

Ruachão batido e casas improvisadas com madeira

Crédito, André Neves Sampaio

Legenda da foto, Terreno baldio da prefeituraSão Paulo começou a ser ocupado por pessoas que, no início da pandemiacovid-19, perderam seus empregos e foram despejadas

Mas,julho do ano passado, a Prefeitura, que é a dona do terreno, pediu na Justiça a reintegraçãoposse da área.

"Hoje tenho um abrigo, será que vou ter a semana que vem? Hoje, tenho comida pra alimentar minha família, será que vou ter no próximo mês?", diz Valdirene. "Se eu tiver que sair daqui, não tenho qualquer outra perspectiva."

Valdirene sentada na cama

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Valdirene mudou-se para a ocupaçãomaio2020: 'A primeira noite passamosclaro porque chovia muito e entrava água dentrocasa. Agora já está bonitinha'

Justiça pode julgar pedidoremoção a qualquer momento

Hoje, vivem no local 840 famílias, segundo a última contagem feita pela associaçãomoradores. A maioria é chefiada por mulheres.

O terreno pertence à SP Urbanismo, empresa da PrefeituraSão Paulo. A área e seus arredores foram incorporados a um projeto municipal que pretende construir empreendimentos residenciais e não residenciaisparceria com empresas privadas.

A Prefeitura diz que os terrenos serão destinados à construção1.580 unidades habitacionais, das quais 71% serão destinadas a famíliasbaixa renda, além"infraestrutura pública, equipamentos públicos, empreendimentos não residenciais privados (visando gerar emprego e renda na região) e prestaçãoserviços".

O Ministério PúblicoSão Paulo enviou na época para a Prefeitura um documento no qual defendeu que as remoções e outras medidas administrativas e judiciais poderiam colocar nas ruas milharespessoas vulneráveis, contrariando as determinaçõesautoridadessaúde no combate à pandemia.

"Não se trata aquilegitimar ocupaçõesáreas públicas, massalvaguardar vidastemposepidemia letallarga escala", disse o órgão na época.

Foi também o que recomendou o especialista da Organização das Nações Unidasdireitos para moradia, Balakrishnan Rajagopal.

"A atual crisesaúde exige medidasemergência, incluindo uma moratória imediatatodos os despejos e remoções", afirmou ele.

Em agosto, a Prefeitura pediu o adiamento da reintegraçãoposse da área, devido à gravidade da pandemiacovid-19.

Mas, há um mês, o poder público pediunovo à Justiça a remoção dos moradores. O caso pode ser julgado a qualquer momento pela juíza Celina Kiyomi Toyoshima, da 4ª Vara da Fazenda Pública, no pior momento da pandemia no país.

O que diz a Prefeitura

A advogada Fabiana Alves Rodrigues, do Centro Gaspar GarciaDireitos Humanos, representa os moradores da ocupação e diz que várias açõesreintegraçãoposse foram suspensas2020.

Mas depois elas foram cumpridas, quando a cidadeSão Paulo saiu da fase vermelha do planocombate à pandemia, a etapa que prevê as medidas mais rígidas, para quando o surto está crítico.

A cidade voltou para a fase vermelha no iníciomarço, junto com todo o Estado. "Isso talvez faça com que as reintegrações sejam suspensas, assim como a recente decisão do Conselho NacionalJustiça, que recomendou evitar despejosvulneráveis durante a pandemia", diz Rodrigues.

"Mas já existe decisão do TribunalJustiçaSão Paulo para o cumprimentoliminarreintegraçãoposse durante a pandemia, então acho difícil a juíza ir contra essa decisão."

A PrefeituraSão Paulo disse à BBC News Brasil que não fará a reintegraçãoposse do Jardim Julieta enquanto durar a situação emergencial causada pela pandemia, período estabelecido por decreto municipal e sem prazo para ser extinto.

Em nota, afirmou que os moradores do Jardim Julieta foram orientados sobre a desocupação pacífica da área e que há famílias"situaçãoextrema vulnerabilidade" aguardando a construção das unidades habitacionais.

"A ocupação não gera prioridadeatendimento habitacionaldetrimentooutras famílias que aguardam moradia", disse a Prefeitura.

Debora Ungaretti, pesquisadora do ObservatórioRemoções, projeto mantido por pesquisadores para monitorar remoçõesdiferentes regiões metropolitanas do país, avalia que as unidades habitacionais que serão construídas não atendem a população removida.

"São para várias faixasrenda, inclusiverenda alta", afirma Ungaretti. Muitos imóveis terão que ser adquiridos por meioempréstimos bancários com requisitos que impedem o acesso da maioria da população que mora ali, diz a pesquisadora.

"A PPP leva esse carimbo da habitação,interesse público, para viabilizar outros projetos que não têm interesse público, como a concessãoáreas públicas para a concessionária definir qual o uso mais lucrativo. O edital é amplo, então, pode ser a construçãoum shopping, por exemplo", argumenta.

Remoções na pandemia

Construção com tapumesmadeira e placa anunciando feijoada a R$10

Crédito, André Neves Sampaio

Legenda da foto, Venda montada pelos moradores na ocupação Jardim Julieta

Um levantamento da campanha Despejo Zero aponta que ao menos 9.155 famílias foram removidas durante a pandemia no Brasil e mais64.546 estão sob essa ameaça.

Os números são referentes apenas a remoções coletivas, como comunidades e ocupações, e não inclui casos individuaisdespejo, como por falta do pagamentoaluguel, por exemplo.

O Estado com maior númeroremoções foi o Amazonas, com 3.004 famílias. Isso porquemarço2020 houve a desocupação do Monte Horebe, ocupação onde viviam 2.260 famílias na Zona NorteManaus. Em segundo lugar vem São Paulo, com 2.852 famílias.

A engenheira Talita Gonsales, uma das participantes da Despejo Zero, destaca que apenas RioJaneiro e Paraná conseguiram aprovar leis estaduais que suspendem as reintegrações.

Aindaacordo com o levantamento, ao menos 31 comunidades tiveram as remoções suspensas, mas elas podem ser retomadas a qualquer momento.

Andreia Aparecida Castilho da Silva,46 anos, hoje vive no Jardim Julieta com as quatro filhas e o neto. Ela diz que não consegue cogitar a possibilidadetersair dali.

"Não temos pra onde ir", diz Andreia. Ela conta que estavadepressão quando foi viver na ocupação. Cabeleireira há 25 anos, ficou sem trabalho na pandemia porque os salões fecharam. Pouco antes, o marido morreuum infarto.

Andreia diz que gastou o que não tinha para enviar o corpo ao Piauí, onde a família do marido vive. "Eu não tinha um real. Estava no desesperonão saber se teria comida para dar pras minhas filhas no dia seguinte."

Ela moravafavor na casafamiliares e decidiu ir para a ocupação. Nos primeiros dias, Andreia diz que ficou sem comer e tomar banho.

"Só bebia café e água. Perdi 15 kg5 dias. Dormia num colchão com um cobertor ao relento enquanto construía a casa. Foi uma dificuldade conseguir madeira: se saísse pra pegar, outra pessoa já estava no terreno."

Depoisnove meses, construiu um banheiro. Até então, fazia as necessidades num balde e tomava banhocanequinha. "O que mais senti falta por meses foiter um chuveiro, lavar a cabeça, sentir a água correndo", conta.

Hoje, ela sobrevive com os R$ 130 que ganha do Bolsa Família e com salgadinhos e refrigerantes que vende.

Convive também com o temor da pandemia. "Minha família só tem a mim, a fortalezatodos sou eu. Eu não posso ficar doente, senão tudo desmorona."

Andreia sorriselfie

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Andreia sobrevive do Bolsa Família e da vendasalgadinhos e refrigerantes numa barraca montada por ela

Incêndios, péssimas condições sanitárias e medopegar covid

Conforme mais gente foi chegando e o Jardim Julieta cresceu, começou a faltar espaço para tanta gente. A solução foi passar a acomodar nos terrenos50 m² duas famíliasvezuma como antes.

A ocupação do Jardim Julieta já teve dois incêndios: um por causauma vela e que atingiu três barracos, e outro por um curto circuitouma fiação e que destruiu duas casas com tudo que havia dentro.

"Foi tão triste, justo na véspera do Natal. Só não foi pior porque os barracos ao redor eramalvenaria e seguraram o fogo", conta Valdirene, que faz parte da associaçãomoradores.

"Foi um desespero total. Ligamos pros bombeiros, mas eles não vinham. E não temos água forte o suficiente para apagar o fogo. Começamos a pegar areia do pessoal que estava construindo casa."

Valdirene diz que outra dificuldade é a infestaçãoanimais peçonhentos, como aranhas e escorpiões. Ela conta ao menos seis pessoas até agora que foram hospitalizadas por causapicadasescorpião.

Apesar das condições sanitárias precárias, Valdirene diz não ter notíciacontaminados pela covid-19 na ocupação. Os moradores receberam 50 testes do postosaúde mais próximooutubro. Todos deram negativo.

Ela diz sentir muito medose infectar. Valdirene e o marido são diabéticos e têm pressão alta, dois fatoresrisco para a covid-19. A isso se soma à incerteza quanto ao futuro.

"Temos centenascrianças aqui, fora os idosos, transplantados e deficientes físicos. Se fizerem a reintegraçãoposse, o que farão com essas quase 2 mil pessoas?"

Línea

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