A históriaAndré-Charles Armeilla, um dos maiores fotógrafos do Rio do início do século 20 que foi enterrado como indigente:

Crédito, Editora Capivara

Legenda da foto, Avenida Beira Mar e Bairro da Glória: fotógrafo francês retratou o Rio no início do século 20

A obsessãoPedro Corrêa do Lago por manuscritos só não é maior do que seu fascínio por fotografias. "São paixões paralelas", diz.

Há sete, oito anos, ele arrematou, por um valor que não se recorda mais, um lote40 fotos do RioJaneiro dos primeiros anos do século 20. Ao buscar o álbum no leiloeiro, chegou à conclusãoque, pessoalmente, as fotografias eram ainda mais bonitas do que pela internet. "Levei um susto com a qualidade técnica das fotos. Eram realmente impressionantes", recorda.

Nem todas, porém, estavam assinadas. As que estavam, conta, traziam a assinatura"C. Armeilla".

Crédito, Editoria Capivara

Legenda da foto, Arcos da Lapa: Armeilla ganhava a vida vendendo fotos para revistas da época, como Kósmos e Careta

Logo, ele - que, alémcolecionador, é escritor, editor e historiador - saiu à procuradados biográficos do fotógrafo misterioso. Nada encontrou.

Algum tempo depois, conversando com um amigo, outro grande colecionador, rasgou elogios ao talento do tal "Armeilla". Para espantoPedro, Ruy Souza e Silva não só conhecia o trabalho do tal "fotógrafo misterioso", como tinha,seu acervo, algumas fotografias dele.

"Esse cara merece uma pesquisa mais apurada", pensou.

De pesquisapesquisa, Pedro conseguiu localizar mais algumas dezenasimagens: umas, da coleção da CasaRui Barbosa, e outras, do acervoGeorge Ermakoff. "Juntas, as quatro coleções totalizaram 180 imagens. Número mais que suficiente para justificar um livro", explica.

A ideia original era publicar um volume com a reprodução das imagens, sem referência biográfica do autor. Foi quando o pesquisador Agenor Araújo Filho, que trabalha com CorrêaLago há mais30 anos, se ofereceu para investigar a vida do fotógrafo.

Crédito, Editora Capivara

Legenda da foto, Bairros do Leme eCopacaba: Muitos dos registrosArmeilla viraram cartões-postais - um deles estampou a cédula10 mil réis,1918

De cartões-postais a cédulasdinheiro

Durante um ano e meio, Araújo Filho vasculhou a bibliotecaCorrêaLagobuscapistas.

Depoismergulhar no rico acervolivrosreferência, coleçõesrevistas e catálogosleilões, alémfarta iconografia, descobriu, entre outros achados, que o misterioso fotógrafo se chamava André-Charles Armeilla, tinha nascido na França e, anteschegar ao Rio, por volta do ano1903, trabalhara, durante cercadez anos,Montevidéu. Curiosamente, no Uruguai, o fotógrafo assinava seus negativos como "A. Armeilla".

Descobriu, ainda, que Armeilla ganhava a vida vendendo fotos, a maior parte delas sem assinatura, para a imprensa da época. Teve fotos publicadas nas revistas Kósmos,outubro1908, e Careta,novembro1911. Enquanto, na Kósmos, não teve o nome creditado, na Careta, foi creditado como 'Armaeilla' (sic).

Em 1912, pelo menos cincosuas fotos, do Theatro Municipal, da Biblioteca Nacional e do Jardim Botânico, entre outras, estamparam o livro alemão Brasilien, Ein Land Der Zukunft (Brasil, Um País do Futuro). E, mais uma vez, Armeilla não recebeu os créditos por seu trabalho.

Crédito, Editora Capivara

Legenda da foto, Pedro Corrêa do Lago é o dono da maior coleção particularmanuscritos do mundo.

"É possível especular que, emúltima décadavida, Armeilla talvez estivesse mais preocupadosobreviver dignamente do seu ofício quedivulgar seu nome para consolidar uma nova reputação aos quase 60 anosidade", escreveu Araújo Filho no livro.

Se algumassuas imagens foram parar nas páginaspublicações ilustradas, outras viraram cartões-postais. Um dos principais editores foi o tipógrafo e comerciante Antônio Caetano da Costa Ribeiro, que identificavaprodução como "A. Ribeiro". Uma das fotosArmeilla, que retrata a recém-inaugurada Avenida Beira Mar, alémcartão-postal, enfeitou também a cédula10 mil réis, que circulou1918 a 1950.

"Cada descoberta me levava a uma nova descoberta. Por vezes, me senti como um arqueólogo", brinca Araújo Filho.

Sua descoberta mais inusitada, porém, ainda estava por vir. Agenor descobriu que, no dia 15maio1913, Armeilla fora encontrado morto na rua Bento Lisboa, no Catete, por um policial, e sepultado como indigente no cemitérioSão Francisco Xavier. Segundo o atestadoóbito, A. Charles Armeilla,60 anos "presumíveis", morreumoléstia não determinada. "Aos poucos, fomos montando o quebra-cabeça", relata CorrêaLago.

Crédito, Editora Capivara

Legenda da foto, Antigo Jardim Botânico: Armeilla ganhava a vida vendendo fotos para revistas da época, como Kósmos e Careta

Flagrantesum Rio que não existe mais

Do esforço conjunto entre Pedro CorrêaLago e Agenor Araújo Filho nasceu Armeilla - Um Mestre Esquecido da Paisagem Carioca (Capivara, 2020).

Das 180 imagens do livro, a que mais intriga o pesquisador é a que mostra, do altoSanta Teresa, um homemcostas (seria o Armeilla?) observando a baíaGuanabara.

"Pela posição dos braços, o misterioso personagem,terno preto e chapéu coco, parece usar um binóculos", especula. O que ele estaria procurando: algo perdido no oceano ou alguémmeio à multidão? "É um clássico instantâneo", define.

"Depois que você a vê uma única vez, fica para sempre na memória."

Crédito, Editora Capivara

Legenda da foto, Bairros do Leme eCopacabana: fotógrafo foi enterrado como indigente no cemitério do Caju

A maior parte dos registros do livro é do RioJaneiro: do PãoAçúcar ao Jardim Botânico, do Morro do Corcovado (ainda sem o Cristo Redentor, inaugurado1931) à Floresta da Tijuca, da Avenida Central (atual Rio Branco) aos Arcos da Lapa.

Pelas lentesArmeilla passaram também paisagens que nem existem mais, como o Morro Santo Antônio, destruído na década1950 para dar lugar à atual Avenida Chile, ou o Palácio Monroe, ex-sede da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, demolido1976.

Há fotos tambémoutras cidades, como Niterói e Petrópolis, além da IlhaPaquetá.

Para CorrêaLago, as imagens mais impressionantes da coleção são as que eternizam "as vistas do mar" e "o céu nublado".

"Muitos fotógrafos faziam um trabalho burocrático. Armeilla, ao contrário, procurava temas pouco explorados e ângulos bastante originais. Dá para ver que dominava a técnica. Era quase um pintor", elogia.

Emopinião, a obraArmeilla só caiu no esquecimento por que, ao contráriooutros fotógrafos, como Marc Ferrez (1843-1923) ou Augusto Malta (1864-1957), não deixou descendentes. "São as famílias que, na maioria das vezes, promovem a obraseus antepassados", explica. No casoFerrez, o mais prolífico e importante fotógrafo brasileiro do século 19, o maior divulgadorsua obra, coincidência ou não, foi o próprio neto, o pesquisador Gilberto Ferrez (1908-2000).

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Legenda da foto, EnseadaBotafogo e Morro do Corcovado: Além do RioJaneiro, o livro traz registros fotográficosNiterói, Paquetá e Petrópolis

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