Consciência Negra: 'África pode ajudar Brasil a lidar com racismo', diz embaixadora que atua há 3 décadas no continente:suporte pagbet

Crédito, Vinicius Mendes

Legenda da foto, Ainda vivemos no Brasil o impacto do tráficosuporte pagbetescravos 400 anos depois, diz Irene Vida Gala

Atual subchefe do Escritóriosuporte pagbetRepresentação do Ministério das Relações Exterioressuporte pagbetSão Paulo, ela também é autorasuporte pagbetPolítica Externa como Política Afirmativa - Projeto e Ação do Governo Lula na África 2003 - 2006 (EdUFABC, 2019).

A seguir, trechos da entrevista que ela concedeu à BBC News Brasil.

suporte pagbet BBC News Brasil - Há uma percepção comum difundida na África sobre o Brasil?

suporte pagbet Irene Vida Gala - É claro que existe uma África muito mais voltada para o Brasil: aquelasuporte pagbetcolonização portuguesa e que está virada para o Atlântico. Para esses países, o Brasil é uma referência tanto pelo contexto histórico, da época dos navios negreiros, como pelas comunidades que retornaram — os agudás, nas regiões do que hoje são o Benim e a Nigéria, e os tabons, na costasuporte pagbetGana, que hoje são conhecidos como "os brasileiros".

No entanto, eu diria que é muito difícil dizer se o Brasil é vistosuporte pagbetuma única forma: há grupos que veemsuporte pagbetuma forma mais próxima — e a divisão não é geográfica, mas setorial e temática. Se você vai para o povo, a África inteira conhece o futebol brasileiro. Essa é a grande imagem do Brasil lá. Os nomessuporte pagbetjogadores brasileiros são muito frequentes.

Entre as lideranças africanas, todo mundo que participou das guerrassuporte pagbetlibertação tem a noçãosuporte pagbetque o Brasil hesitava ao reconhecimento dasuporte pagbetnegritude. Tem um caso famososuporte pagbetum eventosuporte pagbetintelectuais africanos realizado no Senegal, no início dos anos 1970,suporte pagbetque o Brasil enviou representantes dasuporte pagbetoficialidade e não incluiu o (escritor e ativista pelos direitos da população negra) Abdias do Nascimento.

Então, ele foi incluídosuporte pagbetuma delegação africana para falar sobre o racismo daqui — e o Brasil ainda lutou para que o documento final não tivesse os aportes dele. Quem esteve naquele evento conhecia o Brasil. Eles sabiam que temos um problema racial.

Além disso, os governantes africanos recebiam missões brasileiras, a partir da décadasuporte pagbet1970, e notavam que faltava representação. Em Gana se conta, por exemplo, a históriasuporte pagbetum presidente que, quando soube que o primeiro representante do Brasil lá seria um homem negro, respondeu: "Por que não mandam os negros para a Suécia? Por que os negros têm que vir para a África?". Esse tema, porém, nunca chegou a ser discutido com o Brasil pelos governantes africanos, porque eles não queriam irritar o Brasil.

suporte pagbet BBC News Brasil - Isso mudou hoje?

suporte pagbet Gala - Hojesuporte pagbetdia,suporte pagbetque essas lideranças já se atualizaram e não estão na política, há um novo grupo que observa o Brasil como um espaçosuporte pagbetdiálogo no âmbito dos países do Sul, e que percebeu que o nosso país deu um novo verniz às relações com os países africanos.

Há uma percepção muito clarasuporte pagbeto que é o Brasil porsuporte pagbetpresença no campo internacional, além do fatosuporte pagbetque os avanços do país depois da redemocratização, sobretudo no controle da inflação, desenvolvimento agrícola e criaçãosuporte pagbetprogramas sociais, se tornaram referências para os países africanos, que se dispuseram a procurar parcerias com o Brasil, sobretudo nos governos Lula.

Essa percepçãosuporte pagbetque o Brasil poderia ser um parceiro só surgiu no século 21. Eu acho que hoje continua sendo um espaçosuporte pagbetoportunidades, mas não há ilusões: os empresários africanos estão olhando, as lideranças políticas também, mas há muito realismo. Eles sabem como pedir, onde pedir e, principalmente, que muitas vezes o Brasil vai dizer "não".

suporte pagbet BBC News Brasil - Por que o Brasil diz "não" muitas vezes?

suporte pagbet Gala - O Brasil ainda mantém a visãosuporte pagbetque a África é um continente sem oportunidades. A minha constatação é que o Brasil desqualifica a relação com a África como fruto do seu problema interno do racismo estrutural. Se a gente desqualifica o negro no Brasil, fazemos o mesmo com a África. É a única explicação possível.

A única coisa que distingue o Brasil dos demais países do mundo que procuram uma aproximação com a África é o fato do nosso país ter maissuporte pagbet50% da população negra (56%, segundo a PNADsuporte pagbet2019). Sem ter uma históriasuporte pagbetprojeção positiva do negro, é muito difícil olhar para a África e ver algo positivo: é preciso uma descodificaçãosuporte pagbetum processo analítico inconsciente.

suporte pagbet BBC News Brasil - Qual é a percepção que se tem na África do negro brasileiro?

suporte pagbet Gala - Não há registrosuporte pagbetque o Brasil sejasuporte pagbetnegros e brancos. É claro que, politicamente, para os movimentos sociais, eles sabem que a maior parte da população pobre daqui é negra, por exemplo, mas, na nossa interação, brasileiro é brasileiro.

A nossa distinção racial não existe para eles — até porque os africanos descobriram que eram "negros" quando os outros começaram a chamá-los assim. Porém, cabe dizer que houve várias situaçõessuporte pagbetque ganenses e angolanos comentaram comigo situaçõessuporte pagbetracismo que viveram aqui, que retornaram dizendo: "Olha, seu país é racista".

suporte pagbet BBC News Brasil - A abolição da escravatura no Brasil completou 131 anossuporte pagbetmaio. Como a escravidão africana para o nosso país é percebida e discutida hoje entre os africanos?

suporte pagbet Gala - Não tem essa discussão. A minha percepção é que, para os políticos, os estudiosos e as populações africanassuporte pagbetgeral, um tema muito mais importante é o reflexo do período colonial europeu pós-Conferênciasuporte pagbetBerlim (1884-1885, quando foi feita a partilha da África pelos países europeus).

A presença do colonizador branco e a construçãosuporte pagbetuma história que vinculou países africanos às metrópoles europeias é o que conta. O legado da escravidão, com a redução das populações, as condições que eles vieram, é um tema estudado, mas que não está na ordem do dia.

É claro que, quando você vai ler um artigo sobre o subdesenvolvimento do continente, uma das explicações está no período da escravatura, mas a história recente da colonização, no entanto, deixou marcas muito mais profundas, porque a economia africana atual ainda se vincula a isso.

Crédito, Arquivo Pessoal

Legenda da foto, Irene Vida Gala fez partesuporte pagbetdiversas missões diplomáticas no continente africano

suporte pagbet BBC News Brasil - Há um motivo para isso?

suporte pagbet Gala - A escravidão é um tema da diáspora. Nos Estados Unidos esse tema é muito forte e, no caso do Brasil, não se fez o que o Laurentino Gomes tem chamadosuporte pagbet"segunda abolição". A gente ainda vive o impacto do tráficosuporte pagbetescravo 400 anos depois.

suporte pagbet BBC News Brasil - Mas isso significa que o assunto foi resolvido lá?

suporte pagbet Gala - Não foi resolvido porque eles estão vivendo até hoje o impacto. É parte da história deles e com a qual eles vivem. Se você imaginar que houve grupos, reinos, etnias e áreas que dominaram o tráfico e facilitaram o comérciosuporte pagbetescravossuporte pagbetoutros grupos para as Américas, você vai dizer que os grupos que foram exportados como mercadoria estão até hoje tendo um tiposuporte pagbetrelação com aquele que os escravizaram — como os ashantis na Costa do Guiné. E esse tema, se existe, está muito na superfície. Ao contrário: eles têm outros desafios, enquanto nós aqui ainda não fizemos a segunda abolição.

suporte pagbet BBC News Brasil - O escritor moçambicano Mia Couto costuma dizer que há uma "romantização" da África, e que o continente que existe na cabeça da maioria das pessoas é "idealizado". O problema, para ele, é que os africanos pegaram essa imagem para si. A senhora concorda?

suporte pagbet Gala - Ele pode estar se referindo a intelectuais, por exemplo, mas eu não vejo os africanos — gente do povo mesmo — romantizando a África, porque eles não têm tempo para fazer isso. No dia a dia da subsistência, e estamos falandosuporte pagbetpopulações rurais ou periféricas das cidades, não sei como elas podem romantizar a África. Se o romance for tirar da realidade, eles não estão fazendo isso, porque estão vivendosuporte pagbetum profundo realismo.

No Ocidente, sobretudo no Brasil, a gente romantiza a África porque as referências são ainda muito construídas sobre um imaginário da oralidade dos africanos que vieram como escravos. É natural que eles contassemsuporte pagbetsuas terras como lugares bons, da mesma forma que nós, quando estamos no exterior, falamos maravilhas do Brasil — ainda mais se há uma perspectivasuporte pagbetvoltar.

Seria muito interessante contar aos jovenssuporte pagbethoje a realidade africanasuporte pagbethoje, que é absolutamente fascinantesuporte pagbettermossuporte pagbetarte,suporte pagbetcultura,suporte pagbetdesenvolvimento,suporte pagbettecnologia... Essa é a África que temos que mostrar. Não precisamos voltar ao século 13 para falar do primeiro rei africano que foi a Meca para dizer que a África tem realeza ou então colocar o africanosuporte pagbetuma pelesuporte pagbetleão tocando tambor. Essas coisas são muito bonitas, interessantes, aconteceram mesmo, mas há realeza hojesuporte pagbetmuitas coisas lá.

suporte pagbet BBC News Brasil - Mas supondo que ele esteja falando dos intelectuais e dos movimentos sociais do Ocidente, essas pessoas estão operando essa romantizaçãosuporte pagbetuma África do passado?

suporte pagbet Gala - Totalmente! Essa romantização da África está dentrosuporte pagbettodo movimento negro. Eu diria que a grande maioria desses movimentos tenta fazer uma recuperação do passado — que é algosuporte pagbetum imenso valor. Eu apenas me contraponho a ela no sentidosuporte pagbetque podemos atualizar os mitos e os feitos.

Costumo dizer, para grande reação negativa das ciências sociais, que o Brasil começou a estudar a África por meio da antropologia. O mundo fez isso também. Dessa forma, a relação é sempre do "outro", do "desconhecido", e a gente manteve essa tradiçãosuporte pagbetestudar a África, os africanos e os negros por essa visão antropológica do distante.

Eu quero trazer a África para o contemporâneo: para a sociologia, para o desenvolvimento humano, para as ciências exatas, para a tecnologia e para os componentes da contemporaneidade. Isso é muito mais relevante, porque é essa agenda que vai permitir construir laços entre Brasil e África. Eles não querem vir para cá falar do Mansa Musa (um dos imperadores do Mali no começo do século 14), mas simsuporte pagbetassuntos contemporâneos.

suporte pagbet BBC News Brasil - Essa agenda tem potencial para modificar nossa relação com a África?

suporte pagbet Gala - Eu acho que estreitar laços com a África é absolutamente essencial, porque é essa aproximação que vai nos ajudar a fazer a segunda abolição. Quando se reconhece que a África pode ser nosso parceiro na superação do nosso problema racial, se inverte o sentido dessa relação.

Normalmente a gente pergunta: "O que podemos fazer pela África?". E eu não quero isso, mas quero pensar o que a África pode fazer pelo Brasil. O interesse nacional contemporâneo brasileiro,suporte pagbetnegros esuporte pagbetnão negros, é a luta contra o racismo, que poderá ser fortemente potencializada se a gente ampliar nossas relações com os africanos.

suporte pagbet BBC News Brasil - Invertendo a pergunta inicial então: como a senhora observa a percepção comum do Brasil sobre a África?

suporte pagbet Gala - É uma percepção reducionista, porque a gente olha para lá como se fosse a terra dos negros, e os negros são vistos como desqualificados. Esse é o senso comum. Tive muitas experiências com interlocutores que não se dão a chancesuporte pagbetconhecer,suporte pagbetfato, o que é a África. É frustrante. No geral, temos uma imagem muito preconceituosa, mas é mais do que isso: é ignorância — que é o pior dos preconceitos. A maioria absoluta dos brasileiros não faz nenhum esforçosuporte pagbetalterar isso, e nossas lideranças políticas apenas refletem isso.

suporte pagbet BBC News Brasil - No Brasil há quem critique a referência à África como uma unidade, enquanto outros respondem que os Estados nacionais africanos atuais são herança europeia. Na opinião da senhora, como deveríamos olhar para a África?

suporte pagbet Gala - Em primeiro lugar, uma pessoasuporte pagbetalgum país africano que chega ao Brasil fica profundamente irritada quando o tratam apenas como "africano". Eles dizem: "Poxa, a África é tão grande, tem tantos lugares...". Quando você fala "África", você está demonstrandosuporte pagbetgrande ignorância sobre a diversidade do continente. Porém, por outro lado, se você sabe que a África é diversa, me parece desnecessário ficar citando todas as vezes os 54 países africanos.

Quando você fala da Europa, se refere a uma Europa, aos europeus, à questão europeia. A mesma coisa com a América Latina. Uma coisa é referenciar a África por desconhecer que ela é diversa, outra é fazer isso porque ela tem,suporte pagbetfato, uma organicidade: ela é também uma história comum, uma referênciasuporte pagbetinserção nas relações internacionais, um modelo econômico similar, um esforçosuporte pagbetdesenvolvimento muito parecido...

As similitudes nos processossuporte pagbetdesenvolvimento contemporâneos são tantas que não precisamos ficar dizendo. É claro que a Somália não é igual a Botsuana, assim como Cabo Verde não tem muito a ver com as Seychelles — embora ambas sejam ilhas. Há espaço para a diferença e para reconhecer o componentesuporte pagbetintegração continental muito forte.

suporte pagbet BBC News Brasil - Muitos autores do continente defendiam um pan-africanismo, e o africanista brasileiro Alberto Costa e Silva, porsuporte pagbetvez, falou que seria possível unir o continentesuporte pagbettrês ou quatro países. Como a senhora enxerga essas divisões hoje?

suporte pagbet Gala - No período das independências africanas do século 20, havia duas vocações: uma defendida pelo (ex-primeiro ministro e presidentesuporte pagbetGana) Kawame N'Krumasuporte pagbetcriar uma integração continental, e a Constituiçãosuporte pagbetGana até hoje diz que "todo africano é ganês" e, portanto, pode solicitar o passaporte ganês. O N'Kruma entendia que a África era um continente cujas fronteiras coloniais eram irreais, estavam fora das tradições e das histórias dos povos africanos e deveriam ser abolidas.

Por outro lado, havia a teoria concorrente — que venceu — do (primeiro presidente da história do Quênia) Jomo Kenyatta, que defendia que se mantivessem as fronteiras coloniais para que se fizesse uma África com os múltiplos Estados independentes, e nesse contexto se criou a organização da unidade africana, com o compromissossuporte pagbettornar todos os países independentes, mas com uma cláusula da intangibilidade das fronteiras.

Quando eu digo que há uma África, estou me baseando no N'Kruma, mas por outro lado acabou-sesuporte pagbetaprovar lá (maiosuporte pagbet2018) a maior zonasuporte pagbetintegração econômica do mundo, com 50 países. É absolutamente legítimo reconhecer, então, que a África vive esse dilema:suporte pagbethistória com os vários reinos, povos e línguas,suporte pagbetque cada língua é uma história, e as fronteiras herdadas do colonizador que não podem ser mexidas, sob penasuporte pagbetcriar-se uma grande confusão.

Crédito, Getty Images

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