Por que este especialista diz que a 'culinária mineira é um mito':betesporte regulamento

Legenda da foto, Para sociólogo, incorporaçãobetesporte regulamentosítios por grandes fazendasbetesporte regulamentocafé no século 19 e expansão da agroindústria golpearam a culinária caipira

Combatendo a ideiabetesporte regulamentoque cada um desses Estados tenha uma culinária típica e singular, eles optam por agrupá-los num território que chamambetesporte regulamentoPaulistânia – termo usado no passado para nomear a área que os bandeirantes, partindobetesporte regulamentoSão Paulo, percorreram nos primeiros séculos da colonização. Para sustentar a tese, baseiam-se numa extensa pesquisabetesporte regulamentoreceitas tradicionaisbetesporte regulamentotodos os Estados abarcados, cujas culinárias "apresentam constantes tão notáveis que só podem ser tomadas como traçosbetesporte regulamentouma mesma história".

Legenda da foto, Avati Kyry, cerimôniabetesporte regulamento'batismo do milho' celebrada entre indígenas do povo guarani kaiowá da regiãobetesporte regulamentoDourados, no Mato Grosso do Sul

Foi essa cozinha, amparadabetesporte regulamentovariadas técnicasbetesporte regulamentoconservação e nascidabetesporte regulamentosítios onde se praticava uma agriculturabetesporte regulamentosubsistência, que sustentou as marchas para escravizar índios e ocupar as terras do Brasil central, triplicando o território reservado a Portugal pelo Tratadobetesporte regulamentoTordesilhas,betesporte regulamento1494. Os pilares dessa culinária eram o milho, o feijão e a abóbora – além das frutas do pomar ebetesporte regulamentoduas espéciesbetesporte regulamentoanimais trazidas pelos portugueses, o porco e a galinha.

Autorbetesporte regulamentovários livros sobre gastronomia e doutor pela Unicamp, Dória diz que esses modosbetesporte regulamentocomer entrambetesporte regulamentodeclínio a partir do século 19, quando os sitiantes abandonam as roças e se tornam assalariados nas fazendasbetesporte regulamentocafé. Paralelamente, o avanço da agroindústria e campanhas sanitaristas vão aniquilando a diversidade da cozinha caipira, relegada ao "solene desprezo que o Brasil devota ao seu passado indígena".

Restaram-lhe ilhas, onde, impulsionada por campanhas turísticas ou por projetos regionalistas, ela sobrevive com outros nomes – caso das ditas cozinhas mineira e goiana, segundo ele.

Já na capital paulista – onde, no século 19, quitandeiras vendiam nas ruas pinhão quente, içá torrada, cuscuzbetesporte regulamentobagre, amendoim torrado, pamonha e peixe frito –, comidas caipiras foram dando lugar a ingredientes importados, vistos como mais higiênicos e sofisticados por uma população deslumbrada pela modernidade.

Confira os principais trechos da entrevista do sociólogo à BBC News Brasil.

betesporte regulamento BBC News Brasil - Seu livro diz que a ideiabetesporte regulamentouma culinária mineira é um mito. Pode explicar?

betesporte regulamento Carlos Alberto Dória - A partir dos anos 1970, houve um esforço do governobetesporte regulamentoMinas para criar o mito da mineiridade. Vários intelectuais foram envolvidos, inclusive Carlos Drummondbetesporte regulamentoAndrade. Em contraposição, não existem referências fortes ao passado caipira entre os paulistas e, especialmente, entre os paulistanos. Até porque, quando olhamos para trás, nossos avós (em São Paulo) são italianos, espanhóis, asiáticos.

É como se Minas houvesse se apropriado da memória que se apagoubetesporte regulamentoSão Paulo. Houve uma transferência para Minas do conceitobetesporte regulamentocozinha caipira, que se fundiu e se confundiu com a mineiridade.

Houve também um outro processo. Para o turismo, é fundamental você dizer porque alguém deve ir a um Estado e não a outro, então você tem que enfatizar as diferenças nas culinárias.

Hoje, por exemplo, muita gente acredita que os pratos com pequi são restritos a Goiás. Mas isso se deve à destruição do cerrado, que antes era muito mais extenso. O (naturalista francês) Saint-Hilaire (1779-1853) encontrou pésbetesporte regulamentopequi pertobetesporte regulamentoItu (SP), o que não existe há muito tempo.

betesporte regulamento BBC News Brasil - Esse apagamento da memória culináriabetesporte regulamentoSão Paulo se deveu só à imigração?

betesporte regulamento Dória - Não, isso é algo muito fortemente ideológico. É sobretudo a rejeiçãobetesporte regulamentoum modobetesporte regulamentovida caipira, rural, que não se coaduna com a modernidade que os paulistas atribuem a si próprios, especialmente após a industrialização do país.

Crédito, Emater-RO

Legenda da foto, Pratos à basebetesporte regulamentomilhobetesporte regulamentofestabetesporte regulamentoRondônia; pilar da cozinha caipira, grão se espalhou por todas as regiões do país

betesporte regulamento BBC News Brasil - O senhor diz que a culinária caipira teve grande influência dos indígenas guaranis. Pode dar exemplos?

betesporte regulamento Dória - As etnias guaranis estão na base da cozinha caipira. E isso não é reconhecido na história. Estou falando especialmente daquilo que é a basebetesporte regulamentosua alimentação: o milho, o feijão, a abóbora, o amendoim.

Em segundo lugar, na Paulistânia, há uma presença muito clara da farinhabetesporte regulamentomilho. É algo que era feito pelos índios usando técnicas como o pilão e que, com advento do monjolo, se torna um apoio muito importante para a conquista territorial. É uma farinha já pronta para comer, diferentemente da farinhabetesporte regulamentotrigo, e ela sustenta o internamento no sertão.

Há também uma apropriação dos fogos usados pelos índios. Na cultura caipira tem o que é assado no moquém - um jirau que se põe longe do fogo -, o que é assado sobre pedras ou sobre as brasas, sob as brasas, enterrado embaixobetesporte regulamentofogueira... São técnicasbetesporte regulamentococção totalmente indígenas e que marcam muito a cultura brasileira.

betesporte regulamento BBC News Brasil - O senhor também atribui aos guaranis a invenção do churrasco no país. Como isso ocorreu?

betesporte regulamento Dória - Enquanto no Nordeste o boi tinha um valor econômico muito maior, porque era criado para fornecer tração animal e alimento para os engenhos, no Sul ele só tinha valor para a extração do couro. O churrasco surge do abandono da carne.

Os guaranis se apropriaram da carne que não tinha valor algum, que era o lixo da produção do couro. Essa é a carne que vira o churrasco.

betesporte regulamento BBC News Brasil - O senhor defende no livro que, alémbetesporte regulamentosua riqueza culinária, os guaranis também eram muito sofisticados no trato com a terra - uma ideia que se contrapõe a teses difundidas ainda hoje e que consideram a agricultura praticada por indígenas brasileiros como menos desenvolvida que abetesporte regulamentooutros povos e civilizações. Por quê?

betesporte regulamento Dória - A partir dos anos 1970, vão se avolumando estudos que mostram que esses povos (indígenas brasileiros), aos quais se atribuía uma alimentação baseada na caça e coleta, na verdade desenvolviam formas sofisticadasbetesporte regulamentointeração e manejo da floresta,betesporte regulamentomodo que esse manejo possa se considerar uma agricultura desenvolvida.

Não são povos que estavam lá atrás e que foram civilizados no contato com os brancos. Ao contrário: eles tinham uma cultura sofisticadabetesporte regulamentomanejo da floresta, e muito disso se perdeu pela colonização. Me impacta muito a questão da chamada seleção artificial inconsciente. Esses povos se apropriavambetesporte regulamentofrutas da floresta. Você chupa uma jabuticaba, a mais bonita, joga o caroço fora, outro pé nasce, e isso vai transformando a espécie.

Há claras evidênciasbetesporte regulamentoque uma fruta como o abiu, que normalmente tem entre 70 e 100 gramas, pode alcançar até 900 gramas entre grupos indígenas da Amazônia. Muitas vezes viam-se esses produtos como se fossem naturais, e não frutos do trato humano.

Crédito, Funai

Legenda da foto, Roça próxima a aldeia na Amazônia; segundo sociólogo, manejo praticado por povos nativos brasileiros equivale a agricultura sofisticada

betesporte regulamento BBC News Brasil - Sagrado para os guaranis e base da cozinha caipira, o milho é hoje uma das principais commodities agrícolas produzidas no país. Ainda assim, o espaço simbólico que a planta ocupa na dieta do brasileiro parece bem menor do que no passado - diferentemente do que ocorre no México, onde o milho também era cultivado por indígenas, mas preservou seu protagonismo na cozinha local. Por quê?

betesporte regulamento Dória - Imagine um cenáriobetesporte regulamentoque haja 3.000 espécies alimentares. Dessas, mais ou menos 30 alimentam 90% da população mundial. A busca do lucro está ligada à racionalização da produção, que está ligada à especialização. Vão predominar as espécies mais prolíficas,betesporte regulamentomanejo mais fácil, com ciclo mais curto. E isso vai eliminando a diversidade. Há um estrangulamento das formas mais espontâneas e não taylorizadasbetesporte regulamentoprodução agrícola.

O milho é uma das espécies mais expressivas na alimentação global hoje. Mas essa produção é também a basebetesporte regulamentoboa parte da indústriabetesporte regulamentoalimentos. A industrialização do milho é o que substitui o milhobetesporte regulamentosuas formas primitivas.

Há também uma substituição do milho por outros produtos, como a mandioca e o arroz, ao passo quebetesporte regulamentopaíses como o México ou o Peru, o milho resiste mais. Isso tem muito a ver com a identidade, com o orgulho nacional, e no Brasil não é assim, porque o milho não teve essa importância nacional que tem nesses países.

betesporte regulamento BBC News Brasil - Em que medida a influência portuguesa na culinária brasileira se deve ao que os portugueses absorverambetesporte regulamentooutros povos nas Grandes Navegações?

betesporte regulamento Dória - O que os portugueses fazem é conectar o mundo. Muito mais do que ter uma culinária expressiva, que se impõe e se torna hegemônica, eles conectam todos. Tanto trazem frutas para cá como levam para lá milho, mandioca, amendoim.

A culinária portuguesa nos primeiros tempos, assim como as africanas e as indígenas, sãobetesporte regulamentopotaria,betesporte regulamentocoisas cozidasbetesporte regulamentopote. As técnicas eram muito próximas, embora houvesse uma grande diferençabetesporte regulamentoingredientes. Mas os portugueses vão trabalhando e diminuindo essa diferença.

Crédito, Embrapa

Legenda da foto, Industrialização do plantiobetesporte regulamentomilho o substituiubetesporte regulamentosuas formas primitivas, diz Dória

betesporte regulamento BBC News Brasil - Como a mudança no regimebetesporte regulamentotrabalho no campo, quando os sitiantes que viviambetesporte regulamentosubsistência passam a trabalhar nas fazendas como assalariados, impacta a comida na Paulistânia?

betesporte regulamento Dória - A leibetesporte regulamentoterrasbetesporte regulamento1850 permite aos grandes proprietários registrar terras devolutas, e os pequenos proprietários não tinham recursos para isso. Há uma grande desapropriação dos sitiantes, que ficam como moradoresbetesporte regulamentofavor dos grandes proprietários. Quando há a expansão do café, há a proletarização dessa gente. O café avança sobre as terras dos sítios, e esses caipiras vão passando a morar nas fazendas.

Houve aí a destruição da unidadebetesporte regulamentoprodução caipira, o sítio - que é uma pequena propriedade onde está empenhada a mãobetesporte regulamentoobra familiar, que gravitabetesporte regulamentotorno do milho e seus derivados, e dos animais que se alimentam do milho - principalmente porcos e galinhas. Também se perdem os frutos do pomar e os temperos da hora, que são basicamente vegetais europeus com funções medicinais.

betesporte regulamento BBC News Brasil - Quando as hortas deixarambetesporte regulamentoser vistas como farmácias e que impacto isso teve no consumobetesporte regulamentohortaliças pelos brasileiros?

betesporte regulamento Dória - Há duas vertentesbetesporte regulamentoaportesbetesporte regulamentovegetais à cozinha brasileira. O que havia na horta caipira era uma reminiscência da medicina galênica,betesporte regulamentoque vegetais são pensados a partirbetesporte regulamentopropriedades curativas e capacidadesbetesporte regulamentoequilibrar humores do corpo. Coentro, salsinha, erva doce, funcho - todos eles foram trazidos com esse sentido, e acho que isso ainda perdura,betesporte regulamentocerta forma.

O consumobetesporte regulamentohortaliças como conhecemos é algo mais recente, influênciabetesporte regulamentoitalianos e espanhóis, depois reforçada pela presençabetesporte regulamentojaponeses.

É curioso como isso influencia as identidades. Há no Brasil uma região do coentro e uma da salsinha, e elas não se interpenetram. No nortebetesporte regulamentoPortugal, há o uso da salsinha exclusivamente, e no sul, do coentro. Entãobetesporte regulamentoalguma maneira há aqui um espelhamento dessa especialização dos colonizadores.

Crédito, Prefeiturabetesporte regulamentoBelo Horizonte

Legenda da foto, Construçãobetesporte regulamento'mineiridade' - o que incluibetesporte regulamentovertente culinária - foi patrocinada pelo governobetesporte regulamentoMinas e contou com participaçãobetesporte regulamentointelectuais

betesporte regulamento BBC News Brasil - Por que o senhor diz que os africanos não tiveram tanta influência na culinária caipira?

betesporte regulamento Dória - O modobetesporte regulamentoproduzir essa agricuturabetesporte regulamentosubsistência prescinde da mãobetesporte regulamentoobra escrava. Havia escravos na Paulistânia ligados a algumas atividades, como a cultura do arroz, masbetesporte regulamentopequeno número. Outra coisa é a grande concentração do escravo nas minas.

Mas, quando termina a mineração, esses grupos se dispersam e se acaipiram. O modobetesporte regulamentosubsistência absorve os negros. Eles não ficam concentrados comobetesporte regulamentoSalvador, onde ganham certa hegemonia cultural.

betesporte regulamento BBC News Brasil - Quais os traços essenciais que diferenciam a culinária caipirabetesporte regulamentooutras grandes tradições gastronômicas brasileiras?

betesporte regulamento Dória - No grosso da Paulistânia, faz-se uma culináriabetesporte regulamentoconservação. Há conservas à basebetesporte regulamentoaçúcar, por desidratação, à basebetesporte regulamentoálcool, como os licores, e as conservasbetesporte regulamentocarne na banha, na gordura. Essa grande área privilegia a comidabetesporte regulamentoconserva, ao passo que na Amazônia há uma culinária mais imediata, ligada aos rios, à floresta, embora lá também exista a conserva, que é a farinhabetesporte regulamentomandioca, desidratada.

No Nordeste, há o uso privilegiado da manteiga na conservação e o uso da carne seca, uma técnicabetesporte regulamentodesidratar do povo quéchua (oriundo dos Andes), diferente das europeias. Nos Alpes, a carne é desidratada no vento, ao sol. Aqui tem presença do sal, e isso ocupa toda a América Espanhola. O charque, que é uma palavra quéchua, vem daí.

Crédito, FAO

Legenda da foto, Variedadesbetesporte regulamentomilho no Peru, onde o grão está associado à identidade nacional

betesporte regulamento BBC News Brasil - Como as campanhas sanitaristas afetaram a culinária caipira?

betesporte regulamento Dória - Com a divulgação da genética do (biólogo austríaco Gregor) Mendel, no começo do século 20, os intelectuais se dão contabetesporte regulamentoque os ditos "problemas da raça" no Brasil, especialmente o dos negros, não eram genéticos, mas alimentares. Chegaram à conclusãobetesporte regulamentoque tínhamos uma população doente e mal alimentada que desenvolvia vícios como o alcoolismo, e era isso que tínhamosbetesporte regulamentocombater se quiséssemos o desenvolvimento.

A partirbetesporte regulamentoentão, há a apropriação do problema dietético pelo Estado. Cito no livro um sistemabetesporte regulamentonormas que impediabetesporte regulamentoSão Paulo a vendabetesporte regulamentomilho verde, porque faria mal. Depois tem o problema sanitário com a banhabetesporte regulamentoporco. Houve uma febre suína nos anos 1930, e isso termina por eliminar a gordurabetesporte regulamentoporco da dieta e por substituí-la por óleos vegetais.

No período mais recente, há a criação da Anvisa (Agência Nacionalbetesporte regulamentoVigilância Sanitária), que é a fiscal da qualidade do que se produz. E ela traz uma sériebetesporte regulamentopreconceitos, influenciada pelo higienismo americano, como, por exemplo, contra o leite cru.

Há um combate muito grande a um tipobetesporte regulamentoprodução alimentar considerado anti-higiênico oubetesporte regulamentorisco. Isso vai transformando a alimentação por dentro. Hoje, por pressãobetesporte regulamentoambientalistas ebetesporte regulamentopessoas ligadas à ideiabetesporte regulamentosustentabilidade alimentar ebetesporte regulamentocomida tradicional, há uma recuperaçãobetesporte regulamentoalgumas formas passadas e proscritas por órgãosbetesporte regulamentovigilância sanitária. Já se pode, por exemplo, reencontrar o queijo canastra, que ficou proscrito por muito tempo.

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