Como Dr. Bumbum conseguia atuar com mentiras no currículo e sem especialização:
Segundo o Conselho FederalMedicina, não há, na legislação brasileira, nada que impeça um médico formadoatuarqualquer área da Medicina, da mais simples à mais complexa.
O que nenhum médico pode fazer é se apresentar como "especialista"alguma modalidade reconhecida da Medicina, se ele não cumprir os requisitos das sociedadescada especialidade.
Para ser cirurgião plástico, por exemplo, é preciso fazer dois anosresidênciacirurgia geral e outros trêscirurgia plástica, alémpassar por prova escrita e oral da Sociedade BrasileiraCirurgia Plástica. Para ser dermatologista, também é preciso fazer residência ou especializaçãoinstituição credenciada, e passar por prova.
O médico Denis Furtado se apresentava nas redes sociais como "médico pós-graduadodermatologia pela ISBRAE, modulação hormonal pela BARM, e medicina estética pela ASIME".
De acordo com o Ministério da Educação, das três instituições citadas, só a ISBRAE (Instituto BrasileiroEnsino) pode oferecer cursospós-graduação, por ser associada a uma faculdade. Mas a ISBRAE informou à BBC News Brasil que Furtado começou o cursodermatologia e não terminou. Portanto, ele não possui certificaçãolá.
Segundo o MEC, nem a BARM (Brasil-American Academy for Integrative and Regenerative Medicine) nem a ASIME (Associação InternacionalMedicina Estética) tem registro como instituiçõesensino superior - condição para oferecer cursopós-graduação. Ao procurar contato com a ASIME, a BBC News Brasil foi informadaque essa associação não existe mais.
A BBC News Brasil tentou ligar no telefone disponibilizado no site da BARM mas o número não funciona. A reportagem também enviou e-mail e deixou mensagem no site, perguntando se Furtado fez algum curso pela BARM e se a instituição tem alguma parceria com universidades para poder oferecer cursospós-graduação. Nesta segunda (23), recebeu a seguinte resposta por e-mail:
"A Barm é uma empresa sediada nos EUA e realizava cursosextensão e atualizaçãoEnvelhecimento e Medicina Regenerativa no Brasil e tinha como um dos temas 'modulação hormonal', porém não eraespecialização ou pós-graduação. A academia já não existe mais no Brasil desde 2014 e somente o site ficou disponível para contato e dúvidas."
Por que alguns médicos fogem da especialização?
O cirurgião plástico Sergio Bocardo, membro da Sociedade BrasileiraCirurgia Plástica, destaca que a especialização leva tempo e custos. "São quase 12 anos entre faculdade e residência para a cirurgia plástica." Portanto, alguns médicos tentam cortar caminho fazendo cursos não licenciados pelo MEC,áreas não reconhecidas da Medicina.
Furtado, por exemplo, se dizia especialista"medicina estética", que não é uma especialidade reconhecida - não há cursosresidência, nem sociedade que regule esse setor.
"No Brasil, a legislação não é categórica sobre isso. O médico, a princípio, pode fazer qualquer procedimento, mas se houver complicação pode ser considerado imperito", disse Bocardo, que é chefe do serviçocirurgia plástica do Hospital Ipanema, no RioJaneiro.
"E a fiscalização é falha. Tem muitos cursos que não são aprovados pelo MEC, nem pelas sociedadesmedicina. Alguns são cursoscurta duração ou online. E tudo o que é focadoestética atrai público. Pessoas que não têm especialização às vezes vão para essa áreabuscadinheiro."
Como fazer o 'controlequalidade' dos médicos
Como não há lei que impeça um médico sem especializaçãoatuar, os conselhosmedicina focamtentar evitar propaganda enganosa, para que os pacientes não sejam manipulados na horacontratar o profissional.
Um médico não pode, por exemplo, se anunciar como especialista nem mentir aos pacientes sobre a formação acadêmica. Além disso, não pode dar garantiasresultados. Até as famosas fotos"antes e depois" podem ser enquadradas nessas proibições, segundo o Conselho FederalMedicina.
A pena para quem infringe as chamadas "regraspublicidade médica" vaiadvertência até a cassação do registro profissional, que significa o fim da carreira, já que o profissional fica para sempre impedidoexercer a medicina.
O Conselho FederalMedicina também informou que, para atuarqualquer Estado, o médico precisa pedir registro no Conselho RegionalMedicina daquela localidade. Um dos objetivos é permitir que o paciente possa prestar queixacasocomplicações ou problemas.
Furtado tinha registro para atuar como médicoBrasília e Goiás, mas não no RioJaneiro, onde o procedimentoLilian Calixto foi feito. O cirurgião Sérgio Bocardo recomenda que, ao fazer preenchimentos ou procedimentos estéticos mais invasivos, o paciente cheque se o médico fez residênciadermatologia ou cirurgia plástica, ou verificar se fez cursosinstituições reconhecidas pelo MEC.
"Muitas vezes esses médicos tem formaçãofinalsemana, não tem formaçãoanatomia. E todo procedimento, por mais simples que seja, oferece riscos." Ele diz que já recebeu dezenaspacientes com deformidades causadas por procedimentos mal feitos.
"É comum observar deformidade e até necrosenariz e lábil. Tem preenchimento na área dos olhos que se não for feito direito pode levar à cegueira", alerta.
Riscos do preenchimentoglúteo com PMMA
No casoLilian Calixto, a suspeita éque ela tenha tido uma embolia pulmonar por conta do uso excessivoPMMA (polimetilmetacrilato), no procedimentopreenchimentoglúteo. A substância, composta por microesferasum material parecido com plástico, é aprovada pela Agência NacionalVigilância Sanitária (Anvisa), mas é indicada somente para usopequenas quantidades.
Segundo a Sociedade BrasileiraCirurgia Plástica, o PMMA não deve ser usadoáreas extensas do corpo, como glúteos.
"Era uma substância pensada para usarpequenas quantidades, normalmente na face. Mas começaram a aplicar no bumbum. Para ter efeito, injetam no músculo, e o músculo tem vasos sanguíneos mais calibroso. Se injetar dentro do vaso, a substância pode ir para a corrente sanguínea e você pode ter AVC ou embolia pulmonar", explicou o médico Sergio Bocardo.
Alémaparentemente ter usado uma substância considerada inadequada para o procedimento, Furtado fez a bioplastiaLilian Calixto no apartamento dele, na Barra da Tijuca. A paciente teria passado mal algumas horas depois e foi levada ao hospital Barra D'Or pelo próprio Furtado, no sábado à noite. No domingo, ela morreu.
Em vídeo postado no seu perfilInstagram, que tem mais650 mil seguidores, Denis Furtado diz ter feito mais9 mil bioplastias - intervenções à baseinjeções para remodelar o corpo.
Bocardo afirma que,tese, preenchimentos mais simples, como Botox facial, deveriam ser feitos por dermatologistas. Preenchimentoglúteo só deveria ser feito por cirurgião plástico, por ser mais delicado e envolver uma área maior do corpo.
Ele também diz que a injeção no glúteo só deveria ser feitaambiente hospitalar. "Todo procedimento tem risco, qualquer que seja. Portanto, tem que ser feito num local adequado. No caso do glúteo, por causa do volume do preenchimento, tem ser feito num hospital, no centro-cirúrgico", afirmou o integrante da Sociedade BrasileiraCirurgia Plástica.
"Injustiça", diz Dr. Bumbumvídeo
Num vídeo postado nas redes sociais antesser preso, Denis Furtado se diz alvo"injustiça". "É um mistério a causa da morte, mas é uma injustiça o que estão falandomim. É uma injustiça falarem que eu não sou médico, eu tenho CRM ativo. É uma injustiça dizerem que é um procedimento que não é habilitado", afirmou.
Furtado afirmou também que Lilian Calixto estava "muito bem" depois da bioplastia.
"Aconteceu uma fatalidade, mas uma fatalidade que acontece com qualquer médico. Uma paciente após procedimentoglúteo, que eu já realizei 9 mil, ela saiu do consultório muito bem. Umas seis horas após eu a levei para o hospital e ela chegou ao óbito."
Segundo o médico, a paciente estava lúcida ao chegar ao Hospital Barra D'Or. "Ela terminou o procedimento por volta19h20. Ela desceu escada, conversou, riu, conversou com todo mundo e se sentindo muito bem. Passou oito, nove horas, dez horas, onze horas. Às 23h30 ela sentiu-se mal, sentiu uma quedapressão", detalhou.
"Eu falei, vamos ao hospital. Chegando lá, ela estava andando e lúcida. E depois ela veio a falecer horas após, dentro do hospital. Eu quero saber o que é isso".
O médico ainda afirma que fugiu da polícia porque se assustou ao ser abordado por "homens armados". "A minha demora nesse pronunciamento, quatro dias depois, é porque sofri um atentado com perseguiçãocarros, fuzil e tiros. Não sabia se era bandido ou represália da família da vítima. Mas estou sendo culpadoum crime que eu não cometi."