O que aconteceu com os fuscas comprados por Maluf com dinheiro público para presentear os jogadores da Copa70:
Na entrega dos Fuscas, no Parque Ibirapuera, jogadores comemoraram o presente: "É o primeiro carro da minha vida", disse Jairzinho, o "Furacão da Copa". O lateral-esquerdo Everaldo afirmou que já tinha um automóvel e que daria o novo para a esposa. A mesma coisa prometeu Zagallo, o técnico, que possuía um Opala.
Na cerimôniaentrega, quase todos disseram que "presente não se vende", segundo a reportagem da Folha relatou. A exceção foi o atacante Paulo Cézar Caju, que não "tinha problemas com isso": disse que venderia o automóvel para comprar um apartamento. Vendeu mesmo? Por telefone, Caju disse à BBC Brasil que não gostariavoltar ao assunto.
Vários jogadores acabaram se desfazendo do FuscaMaluf logo depoisreceberem o agrado - e o paradeiro dos automóveis se perdeu quase cinco décadas depois. Piazza, por exemplo, vendeu o fusquinha para investirum postogasolina.
O zagueiro reserva Baldochi conta que achava o Fusca pequeno - ele tem 1,89 metroaltura. "Vendi logo depois. Eu queria um carro maior", disse. Hoje com 71 anos, ele viveBatatais, interiorSão Paulo, onde administra uma lojamóveis com a família.
O meio-campo Clodoaldo conta que o Fusca não lhe despertou tanta atenção: "Nem cheguei a usar. Vendi logoseguida", afirmou à BBC Brasil. Ele fez um pedido à reportagem: "Se você encontrá-lo, me liga? Acho que hoje deve estar no ferro-velho".
De onde Maluf tirou o dinheiro para os Fuscas?
Paulo Maluf virou prefeitoSão Paulo pela primeira vezabril1969, indicado pelo marechal Artur da Costa e Silva, mandatário da ditadura militar que regia o país.
Em 3julho1970, dias depois da final da Copa - o Brasil venceu a Itália por 4 a 1 -, dez dos 17 vereadoresSão Paulo aprovaram uma lei pedida pelo prefeito que determinava a liberaçãoCR$ 315.000,00 para a compra dos carros.
Os jogadores sempre disseram que não sabiamonde tinha vindo o dinheiro.
"Recebemos como um presente, como uma homenagem, na euforiaum título tão importante. Eu tinha 23 anos", lembra Tostão, atacante e um dos principais jogadores do time, hoje comentarista e escritor. Tostão usou o veículo por vários anos e depois o vendeu, conta. "Só depois soubemos que o dinheiro era da prefeitura e que havia um processo", conta à BBC Brasil, por telefone.
Em seu livro Tempos vividos, sonhados e perdidos: Um olhar sobre o futebol, ele escreveu que só depoisamadurecer refletiu sobre o presente dado por Maluf. "Com o tempo, amadureci, entendi e aprendi que dinheiro público não pode ser distribuído para quem quer que seja".
O processo dos Fuscas foi movido pelo advogado Virgílio Egydio Lopes Enei. Ele acusava Malufter lesado o erário, pois a cidadeSão Paulo não teve nenhum benefício com os Fuscas, pelo contrário.
Em 1974, o político foi condenado a devolver o dinheiro dos carros aos cofres municipais. Mas, comooutros processosque foi acusado e até condenado, Maluf se beneficiourecursos e embargos infringentes que prolongaram os casos por décadas - no caso dos Fuscas, foram 36 anos.
Lopes Enei era um advogado que costumava incomodar a ditadura militar: entrou com mais300 pedidoshabeas corpus para libertar presos políticos, conforme seu depoimento ao Memorial da ResistênciaSão Paulo.
Seu filho, José Virgílio, conta que o pai processou Maluf como uma formaprotesto contra a ditadura. "Eu nem era nascido no início do processo, mas demorou tanto que, décadas depois, me formei advogado, e ainda trabalhei no caso, no início dos anos 2000", diz ele.
Depoisidas e vindas, Maluf saiu-se finalmente vencedormarço2006, quando o STF considerou que a lei que autorizou o então prefeito a doar os veículos era constitucional. Por isso, o político não precisava devolver o dinheiro.
Procurada, a assessoriaPaulo Maluf não comentou o caso.
Abre alas que o fusquinha vai passar
Um dos FuscasMaluf foi usadoforma inusitada e ajudou a salvar o desfile da União da Ilha do Governador, escolasamba vice-campeã do Carnaval carioca1977.
Naquele ano, o zagueiro Brito - titular da seleção70 - ainda tinha o veículo. Em depoimento à Globo, ele contou que a escola havia desistidoempurrar o carro abre-alas depoisalguns defeitos.
Vizinho do barracão da escola, Brito decidiu acudir a escolacoração. "Quando eu vi o abre-alas no barracão, eu falei: 'Não, isso não vai ficar aqui não. Vai pra avenida!'".
O fusquinhaMaluf caiu como uma luva: Brito amarrou o veículo no abre-alas e puxou o carro alegórico até a concentração do desfile - na época, na avenida Presidente Vargas.
Brito usou o carro por 11 anos e depois o vendeu.
'Muita estima' pelo Fusca
Um dos 25 Fuscas sobreviveu ao tempo - ao menospartes.
O exemplar dado ao lateral-direito Zé Maria saiu do Ibirapuera dirigido pelo pai do então jogador. "Na época, eu nem sabia dirigir direito", lembra ele.
Dois meses depois, o irmão do lateral capotou o veículo na rodovia Anhanguera, próximo da cidadeJundiaí. "O fusquinha ficou quase destruído, mas consegui retirar algumas peças e coloqueioutro Fusca,1966", lembra Zé Maria.
O transplante deu certo e o que restou do FuscaMaluf vive na garagemZé Maria, no litoral paulista. "Ainda dirijo, tenho muita estima por ele. Foi um presente", diz o ex-jogador, por telefone.
Ele só reclamauma coisa do presenteMaluf: "Ele era verde, né? E eu sou corintiano".