A major que protege 629 mulheres ameaçadas por homens na Bahia:

Legenda do vídeo, Denice Santiago comanda a Ronda Maria da Penha, unidade da Polícia Militar baiana que acompanha mulheres vítimasviolência doméstica (Foto: Lorena Vinturini)

"São famílias que estãojogo. Como mulher, mãe e policial, não posso falhar. Se nosso sistema for violado, podemos perder uma vida", diz Denice.

No foco desse sistemaproteção estão mulheres como Ana*. Ela passou 18seus 45 anos com o paisuas duas filhas adolescentes. Durante o casamento, afirma, suportou o "sentimentoposse" e a "loucura" do marido.

Visita da Ronda Maria da PenhaSalvador

Crédito, Victor Uchôa

Legenda da foto, Policiais fazem visitas surpresa a mulheres que recorreram à Justiça para manter agressores à distância

"Eu não podia olhar para o lado. Ele puxava meu braço, batia e xingava. Era uma tortura", conta Ana. "Quando ele se aposentou, passava o diafrente ao meu trabalho, me vigiando. Parecia que ia morrer sufocada."

Acompanhada pela RMP há um ano, ela diz que reencontrou o sossego. "Eu não viviapaz. Isso é um renascimento."

Modooperação

A Ronda Maria da Penha na Bahia tem basesSalvador e nas cidadesPaulo Afonso, Serrinha, Juazeiro e FeiraSantana.

Diariamente, incluindo finaissemana e feriados, 71 policiais se revezamvisitassurpresa a mulheres que recorreram à Justiça para manter agressores à distância.

A presença policial costuma inibir a aproximação desses homens, mas nãotodos os casos. Desde a criação, a ronda já prendeu 59 agressores que ultrapassaram os limites fixados pela Justiça, alguns flagradosplena visita dos policiais.

Ronda Maria da Penha

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Unidade promove visitas a mulheres que recorreram à Justiça para manter agressores à distância; 59 deles foram presos desde 2015

Desala na sede da ronda,Periperi, subúrbio da capital baiana, a comandante repassa planilhas, lê relatórios e monitora o movimento das equipes.

Mesmo não participando mais das visitas residenciais, ela conhece a históriacada mulher assistida. Recebe muitas para conversas que podem se estender por horas. "Essas mulheres precisam confiar na gente. Temos que construir uma relação para que elas nos contem suas verdades."

Números da violência

De olho nas planilhas, a major sabe que precisamais estrutura: 71 policiais parece pouco diante do quadro da violência contra a mulher no Estado.

Somente no primeiro semestre2016, a CentralAtendimento à Mulher (Ligue 180) recebeu 26.674 chamadas na Bahia, com notificações que vãoofensas verbais a graves agressões físicas.

Denice Santiago

Crédito, Lorena Vinturini

Legenda da foto, Bahia é quarto Estado no rankingdenúnciasviolência contra mulher; major diz batalhar por mais recursos para atendimento

Nos registros, contabilizados pela SecretariaPolíticas para as Mulheres do governo federal, a Bahia é o quarto Estadonúmeros absolutoschamadas, atrásSão Paulo, RioJaneiro e Minas Gerais. Salvador é a quinta capital, com 5.927 chamadasjaneiro a junho.

De acordo com o TribunalJustiça da Bahia, tramitam no Estado 26.527 processosviolência doméstica e familiar contra a mulher.

Ao finalcada um deles, será determinada ou não uma medida protetiva, que, entre outras ações, podem proibir o homemse aproximar da mulher ou afastá-lo do lar.

Quando a medida é estabelecida, a própria Justiça indica casos urgentes para acompanhamento da RMP.

"Quero qualquer coisa que a SecretariaSegurança oferecer. Eu vou atrás, encho o saco, mostro os números. Quanto mais mulheres atendermos, melhor", diz major Denice.

Denice Santiago

Crédito, Lorena Vinturini

Legenda da foto, Denice ingressou nas primeiras turmas femininaspraças eoficiais da PM da Bahia; hoje é uma das duas mulherespostoscomando na corporação

Repercussão do trabalho

A iniciativa na Bahia não é a primeira nem a única no Brasil - a Brigada Militar gaúcha, por exemplo, organiza patrulhas semelhantes desde 2012 -, mas repercute entre acadêmicos e instituições policiais.

Em setembro, Denice foi palestrante na abertura,Brasília, do encontro anual do Fórum BrasileiroSegurança Pública (FBSP), ONG que reúne pesquisadores e profissionais do setor.

O tema do encontro foi violência contra a mulher, e a major dividiu a apresentação com Maria da Penha Fernandes, farmacêutica conhecida por batalhar pela condenação do ex-marido agressor e dar nome à lei2006 que aumentou o rigor das puniçõescasos deste tipo.

Denice Santiagoapresentaçãoencontro sobre segurança

Crédito, Danilo Ramos/Divulgação

Legenda da foto, Major Denicepalestra no encontro do Fórum BrasileiroSegurança Pública; experiência vem chamando a atençãopesquisadores e profissionais do setor

"Mesmo com limitações estruturais, a Ronda Maria da Penha da Bahia é um exemplo hoje para outras iniciativas do país. Não conheço outro trabalho policial que esteja tão próximo das pessoas e já com resultados práticos tão expressivos", afirma a socióloga Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP.

Bueno diz que há muita descontinuidadepolíticassegurança no Brasil, e por isso ações na área ainda são muito dependentesuma liderança pessoal forte para sucesso e continuidade.

"Neste caso, é preciso valorizar que é uma major, uma mulher, à frenteuma ação que vem dando certo."

Trajetória

Filhafamília pobre, Denice Santiago estudou toda a vidaescola pública. Em 1990, após terminar o ensino médio, foi incentivada pelo pai ("Para garantir emprego e salário", conta) a tentar uma vaga na primeira turma femininapraças da PM da Bahia. Entrou como sargento.

Dois anos depois, ingressou na primeira turma aberta para oficiais mulheres. Hoje é uma das duas únicas oficiais a ocupar postocomando na PM baiana - mulheres são 13% do efetivo da corporação.

Denice Santiago com Maria da Penha e com filho

Crédito, Divulgação/Arquivo pessoal

Legenda da foto, Denice Santiago com Maria da Penha (na cadeira)eventoBrasília; com filho adolescente, conversas sobre situação da mulher

A atuação com foco na mulher acompanha o caminhoDenice na Polícia Militar. Em 2006, quando integrava o setortecnologia da corporação, ela fundou o Centro Maria Felipa, até hoje o único núcleo direcionado para mulheresPMs do país.

Batizado com o nome da heroína das batalhas pela independência do Brasil na Bahia, o centro ajudou a criar a norma que determina o deslocamento imediatopoliciais gestantes para o trabalho administrativo. Antes, elas ficavam nas ruas até as vésperas do parto.

O CMF também promove cursos e seminários para policiais e oferece auxílio a mulheres da PM vítimasviolência doméstica. O centro motivou até um apelido para a major: até hoje é chamadaFelipa por muitos colegasfarda.

Teoria e prática

Para atuar sob o comando da major Denice na Ronda Maria da Penha, policiais se alistam voluntariamente. Após seleção pelo perfil, passam por uma formação específica, um dos diferenciais do programa na Bahia.

No curso, elaborado pela SecretariaPolíticas para Mulheres do Estado, discutem temas como gênero e patriarcado. E todos entramcontato com os outros órgãos da redeatendimento: Polícia Civil, TribunalJustiça, Ministério Público, Defensoria Pública.

Curso na Ronda Maria da Penha

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Major Denicecurso para policiais que atuam na Ronda Maria da Penha; formação é vista como um dos diferenciais da iniciativa

Após a inserção na operação, policiais, homens e mulheres, participamencontros mensais com atividades lúdicas eautocuidado. O objetivo é abrir espaço para que possam se expressar artisticamente e aliviar a carga emocional das históriascrises familiares que acompanham.

GraduadaPsicologia, a própria comandante passa por acompanhamento psicoterapêutico.

"Preciso recorrer ao analista para não levar tudo isso pra casa, mas é impossível", comenta, lembrando o dia do telefonema no domingofolga. (Naquela ocasião, a major acionou policiaisplantão, mas o agressor desistiuaparecer quando a mulher disse que já havia ligado para a ronda.)

Outro ponto forte da iniciativa é a interlocução entre os órgãos da redeatendimento. Representantes do comitê gestor da RMP conversam via WhatsApp para acelerar procedimentos que envolvam a proteçãomulheres assistidas.

Por iniciativa própria, Denice também encabeça uma ação chamada "MulheresCoragem" - recebe mulheres assistidas na sede da unidade para palestras, oficinasarte e teatro,açõessocialização e empoderamento.

Detalhesobjetos no escritório da major Denice Santiago

Crédito, Lorena Vinturini

Legenda da foto, Mulher Maravilhadestaque na mesa da major e prêmiosreconhecimento: atuação com foco na mulher marca trajetóriaPM

Para policiais homens e o público masculino externo, organiza as palestras do "PapoHomem". "A ideia é fazer com que os homens se percebam no ciclo da violência, porque este (agressão contra a mulher) é um crime cultural", afirma.

A caminhouma visita da ronda, o soldado Ivan da Silva reconhece que buscou uma vaga na unidade especial apenas para trabalhar no horário administrativo e ter tempo para estudar à noite. "Hoje minha cabeça é outra. Fui aprendendo com as histórias. A realidade das mulheres é muito mais difícil do que se imagina."

Ao seu lado, outro soldado, Arivaldo Souza, afirmou que entendeu que a violência não se manifesta somenteagressões físicas. "Comecei a ver o peso da violência psicológica. Uma mulher me disse uma vez que preferia levar um tapa a ouvir as coisas que o ex-marido dizia."

Minutos depois, os dois PMs, ao lado da soldado Jocinanda Oliveira, chegam à casaLúcia*,28 anos. Após três anosum relacionamento violento, ela se afastou do ex-namorado depoisser agredida com o filho recém-nascido do casal no colo.

"Ele chegou a me ameaçarmorte. Sempre tive muito medo, mas com as visitas dos policiais a gente sente que pode contar com alguém. Eu converso com amigos e falo com orgulho que a ronda veio aquicasa", afirma.

Ronda Maria da Penha

Crédito, Victor Uchôa

Legenda da foto, 'Com as visitas dos policiais a gente sente que pode contar com alguém', diz mulher atendida por unidade

Acompanhada pela unidade há cercaum ano, ela costumava saircasa apenas para ir ao trabalho.

"Eu fui à praia outro dia. Nem acredito. E só fui porque me senti confiante. Foi ela quem me incentivou", conta Lúcia, lançando um olharcumplicidade para a soldado Oliveira. Ela segura o filho e chora.

Cotidiano

No comando da operação, major Denice se diz orgulhosa por histórias como aLúcia, mas afirma que não pode baixar a guarda para romper o ciclo do que chama"violência cultural".

No papelmãeum adolescente15 anos, procura dialogar com o filho sobre temas que encara no trabalho, apostando que ele levará as informações adiante.

"Eu insisto mesmo. Às vezes ele brinca quando me pede sugestãotemaredação, dizendo que violência contra a mulher não vale. Mas ele é bem consciente e eu sei que conversa muito com os amigos."

MesatrabalhoDenice Santiago

Crédito, Lorena Vinturini

Legenda da foto, Mesatrabalho da major baiana; proteção do candomblé, lembrança da maternidade e Mulher Maravilha

Ao falar da vida familiar, Denice deixa escapar que, até fevereiro2015, "sentia que era eterna". Foi quando,um examerotina, descobriu um tumor no estômago - após uma cirurgia que extraiu todo o órgão, atravessou mesestratamento quimioterápico.

Agora, adapta-se dia a dia. Come menos, evita alimentos pesados, prioriza a comidacasa e, para fugireventuais toxinas, cortou frutos do mar. "Só não abro mãopão. Adoro sanduíche, mas estou comendo metade da metade", diz a major1,73 metro, entre risos.

Para o bem da digestão, também precisa mastigar tudo lentamente. Diz não ver problema, pois assim consegue mais tempo para pensar na vida e bolar "mais umas maluquices" para a ação da ronda - uma dessas ideias é fazer uma hortafrente à sede da unidade e convidar as mulheres para cuidar do espaço.

Denice Santiago

Crédito, Lorena Vinturini

Legenda da foto, Oficial teve câncer no estômago e teve que extrair órgão: 'Me fortaleci para ajudar essas mulheres a serem felizes'

"Com o câncer, uma amiga disse que não deveria perguntar por que as coisas acontecem e sim para quê. Depois que superei essa doença, me fortaleci para tocar o trabalho, ajudar essas mulheres a serem felizes. Minha mãe sempre disse que nossa missão é ser feliz."

Para o futuro, a major abre portas no ambiente acadêmico. Hoje cursa mestrado na Universidade Federal da Bahiaque estuda a relação entre a questão racial e o enquadramentosuspeitos por policiais militares.

E vislumbra a felicidadealgum cantinho pertoSalvador, onde possa fazer uma horta própria e viver tranquila ao lado da família, assistindo a seus filmes preferidos: os épicos e os da franquia Marvel, com seus heróis onipotentes e falíveis.

Criadafamília com raízes no candomblé (religiãomatriz africana), Denice Santiago se apresenta como uma mulherIansã. É a deusa dos raios e trovões na mitologia iorubá, guerreira que batalha pelo seu povo e carrega a força do feminino.

Iansã pode ter mil facetas, mas a fragilidade nunca será uma delas.

*Para preservar a identidade das mulheres vítimasviolência, os nomes foram trocados.

Denice Santiago

Crédito, Lorena Vinturini

Legenda da foto, 'Nossa missão é ser feliz', afirma major baiana

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