A major que protege 629 mulheres ameaçadas por homens na Bahia:
"São famílias que estãojogo. Como mulher, mãe e policial, não posso falhar. Se nosso sistema for violado, podemos perder uma vida", diz Denice.
No foco desse sistemaproteção estão mulheres como Ana*. Ela passou 18seus 45 anos com o paisuas duas filhas adolescentes. Durante o casamento, afirma, suportou o "sentimentoposse" e a "loucura" do marido.
"Eu não podia olhar para o lado. Ele puxava meu braço, batia e xingava. Era uma tortura", conta Ana. "Quando ele se aposentou, passava o diafrente ao meu trabalho, me vigiando. Parecia que ia morrer sufocada."
Acompanhada pela RMP há um ano, ela diz que reencontrou o sossego. "Eu não viviapaz. Isso é um renascimento."
Modooperação
A Ronda Maria da Penha na Bahia tem basesSalvador e nas cidadesPaulo Afonso, Serrinha, Juazeiro e FeiraSantana.
Diariamente, incluindo finaissemana e feriados, 71 policiais se revezamvisitassurpresa a mulheres que recorreram à Justiça para manter agressores à distância.
A presença policial costuma inibir a aproximação desses homens, mas nãotodos os casos. Desde a criação, a ronda já prendeu 59 agressores que ultrapassaram os limites fixados pela Justiça, alguns flagradosplena visita dos policiais.
Desala na sede da ronda,Periperi, subúrbio da capital baiana, a comandante repassa planilhas, lê relatórios e monitora o movimento das equipes.
Mesmo não participando mais das visitas residenciais, ela conhece a históriacada mulher assistida. Recebe muitas para conversas que podem se estender por horas. "Essas mulheres precisam confiar na gente. Temos que construir uma relação para que elas nos contem suas verdades."
Números da violência
De olho nas planilhas, a major sabe que precisamais estrutura: 71 policiais parece pouco diante do quadro da violência contra a mulher no Estado.
Somente no primeiro semestre2016, a CentralAtendimento à Mulher (Ligue 180) recebeu 26.674 chamadas na Bahia, com notificações que vãoofensas verbais a graves agressões físicas.
Nos registros, contabilizados pela SecretariaPolíticas para as Mulheres do governo federal, a Bahia é o quarto Estadonúmeros absolutoschamadas, atrásSão Paulo, RioJaneiro e Minas Gerais. Salvador é a quinta capital, com 5.927 chamadasjaneiro a junho.
De acordo com o TribunalJustiça da Bahia, tramitam no Estado 26.527 processosviolência doméstica e familiar contra a mulher.
Ao finalcada um deles, será determinada ou não uma medida protetiva, que, entre outras ações, podem proibir o homemse aproximar da mulher ou afastá-lo do lar.
Quando a medida é estabelecida, a própria Justiça indica casos urgentes para acompanhamento da RMP.
"Quero qualquer coisa que a SecretariaSegurança oferecer. Eu vou atrás, encho o saco, mostro os números. Quanto mais mulheres atendermos, melhor", diz major Denice.
Repercussão do trabalho
A iniciativa na Bahia não é a primeira nem a única no Brasil - a Brigada Militar gaúcha, por exemplo, organiza patrulhas semelhantes desde 2012 -, mas repercute entre acadêmicos e instituições policiais.
Em setembro, Denice foi palestrante na abertura,Brasília, do encontro anual do Fórum BrasileiroSegurança Pública (FBSP), ONG que reúne pesquisadores e profissionais do setor.
O tema do encontro foi violência contra a mulher, e a major dividiu a apresentação com Maria da Penha Fernandes, farmacêutica conhecida por batalhar pela condenação do ex-marido agressor e dar nome à lei2006 que aumentou o rigor das puniçõescasos deste tipo.
"Mesmo com limitações estruturais, a Ronda Maria da Penha da Bahia é um exemplo hoje para outras iniciativas do país. Não conheço outro trabalho policial que esteja tão próximo das pessoas e já com resultados práticos tão expressivos", afirma a socióloga Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP.
Bueno diz que há muita descontinuidadepolíticassegurança no Brasil, e por isso ações na área ainda são muito dependentesuma liderança pessoal forte para sucesso e continuidade.
"Neste caso, é preciso valorizar que é uma major, uma mulher, à frenteuma ação que vem dando certo."
Trajetória
Filhafamília pobre, Denice Santiago estudou toda a vidaescola pública. Em 1990, após terminar o ensino médio, foi incentivada pelo pai ("Para garantir emprego e salário", conta) a tentar uma vaga na primeira turma femininapraças da PM da Bahia. Entrou como sargento.
Dois anos depois, ingressou na primeira turma aberta para oficiais mulheres. Hoje é uma das duas únicas oficiais a ocupar postocomando na PM baiana - mulheres são 13% do efetivo da corporação.
A atuação com foco na mulher acompanha o caminhoDenice na Polícia Militar. Em 2006, quando integrava o setortecnologia da corporação, ela fundou o Centro Maria Felipa, até hoje o único núcleo direcionado para mulheresPMs do país.
Batizado com o nome da heroína das batalhas pela independência do Brasil na Bahia, o centro ajudou a criar a norma que determina o deslocamento imediatopoliciais gestantes para o trabalho administrativo. Antes, elas ficavam nas ruas até as vésperas do parto.
O CMF também promove cursos e seminários para policiais e oferece auxílio a mulheres da PM vítimasviolência doméstica. O centro motivou até um apelido para a major: até hoje é chamadaFelipa por muitos colegasfarda.
Teoria e prática
Para atuar sob o comando da major Denice na Ronda Maria da Penha, policiais se alistam voluntariamente. Após seleção pelo perfil, passam por uma formação específica, um dos diferenciais do programa na Bahia.
No curso, elaborado pela SecretariaPolíticas para Mulheres do Estado, discutem temas como gênero e patriarcado. E todos entramcontato com os outros órgãos da redeatendimento: Polícia Civil, TribunalJustiça, Ministério Público, Defensoria Pública.
Após a inserção na operação, policiais, homens e mulheres, participamencontros mensais com atividades lúdicas eautocuidado. O objetivo é abrir espaço para que possam se expressar artisticamente e aliviar a carga emocional das históriascrises familiares que acompanham.
GraduadaPsicologia, a própria comandante passa por acompanhamento psicoterapêutico.
"Preciso recorrer ao analista para não levar tudo isso pra casa, mas é impossível", comenta, lembrando o dia do telefonema no domingofolga. (Naquela ocasião, a major acionou policiaisplantão, mas o agressor desistiuaparecer quando a mulher disse que já havia ligado para a ronda.)
Outro ponto forte da iniciativa é a interlocução entre os órgãos da redeatendimento. Representantes do comitê gestor da RMP conversam via WhatsApp para acelerar procedimentos que envolvam a proteçãomulheres assistidas.
Por iniciativa própria, Denice também encabeça uma ação chamada "MulheresCoragem" - recebe mulheres assistidas na sede da unidade para palestras, oficinasarte e teatro,açõessocialização e empoderamento.
Para policiais homens e o público masculino externo, organiza as palestras do "PapoHomem". "A ideia é fazer com que os homens se percebam no ciclo da violência, porque este (agressão contra a mulher) é um crime cultural", afirma.
A caminhouma visita da ronda, o soldado Ivan da Silva reconhece que buscou uma vaga na unidade especial apenas para trabalhar no horário administrativo e ter tempo para estudar à noite. "Hoje minha cabeça é outra. Fui aprendendo com as histórias. A realidade das mulheres é muito mais difícil do que se imagina."
Ao seu lado, outro soldado, Arivaldo Souza, afirmou que entendeu que a violência não se manifesta somenteagressões físicas. "Comecei a ver o peso da violência psicológica. Uma mulher me disse uma vez que preferia levar um tapa a ouvir as coisas que o ex-marido dizia."
Minutos depois, os dois PMs, ao lado da soldado Jocinanda Oliveira, chegam à casaLúcia*,28 anos. Após três anosum relacionamento violento, ela se afastou do ex-namorado depoisser agredida com o filho recém-nascido do casal no colo.
"Ele chegou a me ameaçarmorte. Sempre tive muito medo, mas com as visitas dos policiais a gente sente que pode contar com alguém. Eu converso com amigos e falo com orgulho que a ronda veio aquicasa", afirma.
Acompanhada pela unidade há cercaum ano, ela costumava saircasa apenas para ir ao trabalho.
"Eu fui à praia outro dia. Nem acredito. E só fui porque me senti confiante. Foi ela quem me incentivou", conta Lúcia, lançando um olharcumplicidade para a soldado Oliveira. Ela segura o filho e chora.
Cotidiano
No comando da operação, major Denice se diz orgulhosa por histórias como aLúcia, mas afirma que não pode baixar a guarda para romper o ciclo do que chama"violência cultural".
No papelmãeum adolescente15 anos, procura dialogar com o filho sobre temas que encara no trabalho, apostando que ele levará as informações adiante.
"Eu insisto mesmo. Às vezes ele brinca quando me pede sugestãotemaredação, dizendo que violência contra a mulher não vale. Mas ele é bem consciente e eu sei que conversa muito com os amigos."
Ao falar da vida familiar, Denice deixa escapar que, até fevereiro2015, "sentia que era eterna". Foi quando,um examerotina, descobriu um tumor no estômago - após uma cirurgia que extraiu todo o órgão, atravessou mesestratamento quimioterápico.
Agora, adapta-se dia a dia. Come menos, evita alimentos pesados, prioriza a comidacasa e, para fugireventuais toxinas, cortou frutos do mar. "Só não abro mãopão. Adoro sanduíche, mas estou comendo metade da metade", diz a major1,73 metro, entre risos.
Para o bem da digestão, também precisa mastigar tudo lentamente. Diz não ver problema, pois assim consegue mais tempo para pensar na vida e bolar "mais umas maluquices" para a ação da ronda - uma dessas ideias é fazer uma hortafrente à sede da unidade e convidar as mulheres para cuidar do espaço.
"Com o câncer, uma amiga disse que não deveria perguntar por que as coisas acontecem e sim para quê. Depois que superei essa doença, me fortaleci para tocar o trabalho, ajudar essas mulheres a serem felizes. Minha mãe sempre disse que nossa missão é ser feliz."
Para o futuro, a major abre portas no ambiente acadêmico. Hoje cursa mestrado na Universidade Federal da Bahiaque estuda a relação entre a questão racial e o enquadramentosuspeitos por policiais militares.
E vislumbra a felicidadealgum cantinho pertoSalvador, onde possa fazer uma horta própria e viver tranquila ao lado da família, assistindo a seus filmes preferidos: os épicos e os da franquia Marvel, com seus heróis onipotentes e falíveis.
Criadafamília com raízes no candomblé (religiãomatriz africana), Denice Santiago se apresenta como uma mulherIansã. É a deusa dos raios e trovões na mitologia iorubá, guerreira que batalha pelo seu povo e carrega a força do feminino.
Iansã pode ter mil facetas, mas a fragilidade nunca será uma delas.
*Para preservar a identidade das mulheres vítimasviolência, os nomes foram trocados.
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