Publicado pelo Exército, livro que diz que yanomamis não existem inspirou políticas que levaram a crise humanitária:poker live

Hoje, o livro circulapoker livearquivos compartilhados gratuitamente pela internet e foi recomendado algumas vezes por Olavopoker liveCarvalho (1947-2022), como mostram textospoker liveseu site e seus programaspoker liveaula.

Além da influênciapoker liveCarvalho, gurupoker liveparte da direita, dois especialistas entrevistados pela BBC News Brasil apontam que a relação entre o livro e a política conduzida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL)poker liveseus quatro anospoker livegoverno (2019-2022) é maior.

"Com certeza esse livro ressoa ao longo do governo Bolsonaro. Inclusive, eu comecei a estudar esse livro a partir do discurso do Bolsonaropoker live2019 na ONU (Organização das Nações Unidas). Quando eu escutei aquela fala, eu lembrei do livro, que eu tinha lido por curiosidade. A fala tinha total correspondência com o livro”, diz o historiador João Pedro Garcez, que teve A Farsa Ianomâmi como umpoker liveseus objetospoker liveestudo no mestrado na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

"Parece que o governo Bolsonaro fez um tipopoker livegestãopoker liveacordo com o livro porque, neste, os indígenas são colocados como uma massapoker livemanobrapoker liveinteresses estrangeiros. Então, eles são vistos como inimigos do Brasil. Dentro dessa racionalidade, faz sentido deixá-los na beira da morte, porque eles não fazem parte da ideiapoker liveBrasil que está presente no pensamento militar", acrescenta o pesquisador, referindo-se à crise humanitária entre o povo yanomami.

Não se sabe se Bolsonaro leu A Farsa Ianomâmi ou não, mas o que Garcez e outro entrevistado, o geógrafo francês François-Michel Le Tourneau, afirmam é que o livro simboliza as posições do ex-presidente e aliados acerca dos indígenas e da Amazônia.

No Telegram, Bolsonaro afirmou que as acusaçõespoker livedescasopoker liveseu governo com os indígenas eram uma "farsapoker liveesquerda" e defendeu que a saúde indígena foi uma das prioridades dapoker livegestão.

A conduta do antigo governo nessa área está passando agora por intenso escrutínio, depois que o site jornalístico Sumaúma revelou fotos e dados da sofrida situação da saúdepoker livecrianças, adultos e idosos yanomami.

No finalpoker livejaneiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso pediu a aberturapoker liveuma investigação sobre "a possível participaçãopoker liveautoridades do governo Jair Bolsonaro na prática,poker livetese, dos crimespoker livegenocídio, desobediência, quebrapoker livesegredopoker livejustiça, epoker livedelitos ambientais relacionados à vida, à saúde e à segurançapoker livediversas comunidades indígenas".

Na decisão, Barroso menciona haver evidênciaspoker live"ação ou omissão" do antigo governo que agravaram a situação dos yanomami. Um exemplo trazido pelo ministro do STF foi a publicação, no Diário Oficial,poker livedata e localpoker liveuma operação sigilosa contra o garimpo ilegalpoker liveterritório yanomami, o que pode ter alertado os invasores.

Indígenas vistos como 'ameaça'

Carlos Alberto Lima Menna Barreto se apresenta, logo no iníciopoker livesua obra, como um “gaúcho naturalpoker livePorto Alegre, oriundopoker livetradicional famíliapoker livemilitares”. Foipoker live1968 que, segundo o próprio, ele “travou os primeiros contatos com a Amazônia, que a partir dessa data o seduziu”.

Em Roraima, Menna Barreto atuou como primeiro comandante do 2º Batalhão Especialpoker liveFronteira e do Comandopoker liveFronteira e, após ir para a reserva, foi secretáriopoker liveSegurança do Estado.

Nas páginas finaispoker livesua obra, o coronel propôs algumas ações. A primeira recomendação era a anulação da criação da reserva yanomami — homologadapoker live1992 —, por conta das “fraudes” que o militar disse ter apresentado no livro. Uma segunda proposta consistiapoker live“regulamentar a exploração do ouro, do diamante epoker liveoutros minérios por pessoas físicas e empresas”.

Talvez essas bandeiras lembrem posiçõespoker liveJair Bolsonaro.

Quando deputado federal, o então capitão da reserva pediu,poker live1993, a anulação da demarcação da terra indígena yanomami; quando presidente, ele declaroupoker livediversas ocasiões que não haveria mais demarcaçãopoker liveterras indígenaspoker liveseu governo.

Em fevereiropoker live2022, o então presidente comemorou que napoker livegestão no Planalto “não foi demarcada nenhuma terra indígena”.

Por longos anos, Bolsonaro também defendeu o garimpopoker liveterras indígenas e, na presidência, agiu nesse sentido. Veio do Executivo, por exemplo, um projetopoker liveleipoker live2020 que tentou regulamentar a mineração nessas áreas protegidas — mas a proposta acabou não avançando.

Autorpoker livelivros e pesquisas sobre os yanomami e a Amazônia, o francês François-Michel Le Tourneau identifica três grupospoker livepressão sobre o governo Bolsonaro que buscaram limitar direitos do indígenas: os ruralistas, as igrejas evangélicas e os militares.

Para Tourneau, o general Augusto Heleno, então chefe do Gabinetepoker liveSegurança Institucional (GSI) e ex-comandante militar da Amazônia, era uma figura emblemáticapoker liveuma geraçãopoker liveoficiais e generais que vê a Amazônia como um ponto vulnerável para a unidade nacional brasileira.

“O fatopoker liveter deixado a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e os índios do Brasil completamente abandonados por quatro anos era realmente isso. Para eles, se fomentava dentro da Funai um movimentopoker livedesmembramento do Brasil e se defendia que esses territórios estavam cheiospoker liveriquezas que precisavam ser exploradas”, diz o geógrafo, diretorpoker livepesquisas do Centre Nationalpoker livela Recherche Scientifique, na França.

“Os índios do Brasil não têm nenhum interessepoker liveindependência política. Há uma confusão, pois eles podem querer autonomia, mas autonomia não é independência”, explica o francês, que diz ter “aprendido a viver” com as suspeitas que desperta por ser um estrangeiro estudando a Amazônia.

Para Torneau, o livro A Farsa Ianomâmi é mais um exemplo dessa interpretaçãopoker liveum segmento dos militares sobre os indígenas da Amazônia.

“Por que o governo Bolsonaro recebeu bem esse tipopoker liveteoria, ou até mesmo propagou esse tipopoker liveteoria [do livro]? Porque o fundo ideológico e cultural deles está fundamentando sobre a ideiapoker liveque as identidades indígenaspoker livecerta forma são uma ameaça ao Brasil.”

Segundo o catálogo online do Exército, há hoje 56 exemplares do livro espalhados por bibliotecas da força pelo Brasil — 12 deles estãopoker livecolégios militares, que oferecem ensino fundamental e médio.

Reação militar à Constituiçãopoker live1988

O historiador João Pedro Garcez lembrapoker liveestudos que já demonstraram que,poker live1988, anopoker livepromulgação da Constituição, epoker live1992, anopoker liverealização da conferência Eco-92 no Riopoker liveJaneiro, aumentou a produção acadêmica militar sobre a Amazônia.

“Eu acredito que tanto esse crescimento quanto a publicação do livro A Farsa Ianomâmi têm a ver com uma reação dos militares à Constituição Federal, que defende a autodeterminação dos povos, e por consequência a demarcação das terras indígenas; e a própria Eco-92, que trouxe muito forte para o Brasil a discussão ambiental”, diz Garcez, doutorandopoker livehistória na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O historiador aponta que o autorpoker liveA Farsa Ianomâmi usou muitos artigospoker liveopinião publicadospoker livejornais para validar seus argumentos, ao mesmo tempopoker liveque se valeupoker livesua experiênciapoker liveRoraima. O livro é escritopoker liveprimeira pessoa.

“Ele reivindicava muito essa autoridade testemunhal. O livro tem uma característica autobiográfica”, explica Garcez.

Menna Barreto também traz no livro um documento datadopoker live1981 e atribuído ao Conselho Mundialpoker liveIgrejas Cristãs, que teria sede na Suíça. O texto, reproduzido inicialmente pelo jornal O Estadopoker liveS.Paulo, expõe planospoker live“infiltrar missionários e contratados, inclusive não religiosos,poker livetodas as nações indígenas”. Mas a veracidade do documento é controversa.

Em 1987, foi criada uma Comissão Parlamentar Mistapoker liveInquérito (CPMI) para apurar denúncias “formuladas pelo jornal O Estadopoker liveS.Paulo, referentes a uma conspiração internacional envolvendo restrições à soberania nacional sobre a região amazônica”, segundo documentos do Congresso.

Após investigação, o relator concluiu “que a instituição ‘Conselho Mundialpoker liveIgrejas Cristãs’, elemento-chave das denúncias, não tevepoker liveexistência confirmada […]. Ao contrário, todas as entidades consultadas negaram conhecerpoker liveexistência”.

Menna Barreto recorreu também a relatospoker liveviajantes europeuspoker liveséculos passados para sustentar o argumentopoker liveque a identificação yanomami não era citada. Assim, o coronel defendeu um dos principais argumentospoker liveseu livro: opoker liveque os yanomami não existem e foram inventados por interesses alheios.

“Ele ignora toda a produção antropológica contemporânea a ele. Essa produção mostra que os yanomâmi são um supergrupo e que tem divisões dentro desse supergrupo”, afirma Garcez.

A antropóloga e indigenista Hanna Limulja explica que os indígenas que compõem o grande território yanomami podem até se referir com outras palavras a seus subgrupos, mas que a consideração deles como yanomami pelos especialistas não é nada arbitrária.

“Por que esse povo é considerando yanomami? Porque eles compartilham um território, práticas culturais, uma língua. O yanomami é uma língua isolada, é um tronco, e dentro disso você pode ter variações. Por exemplo, o latim é um tronco, e aí você tem variações como o português e o espanhol, que são próximos”, aponta Limulja.

“O fatopoker livea gente catagorizar os yanomami ou não não quer dizer que a gente invente um povo. O povo está lá. A gente o define da maneira que a gente consegue, com nossos estudos, dentro das nossas categorias.”

Exército afirma que livro não é usado pedagogicamente

François-Michel Le Tourneau explica que boa parte do conteúdopoker liveA Farsa Ianomâmi é uma “cópia”poker liveteorias conspiratórias abastecidas nos anos 1990 pelo americano Lyndon LaRouche.

“Para mim, o mais importante nesse livro não é só o autor, mas quem publicou. Ele foi publicado pela Biblioteca do Exército, e isso dá um peso para o livro”, aponta o geógrafo.

A reportagem enviou perguntas ao Exército brasileiro, que foram parcialmente respondidas. Em nota, o Exército informou que, apesarpoker liveexemplarespoker liveA Farsa Ianomâmi estarempoker livecolégios militares, “a obra não consta da listapoker livelivros paradidáticos constantes das Normaspoker livePlanejamento e Gestão Escolar (NPGE) do Sistema Colégio Militar do Brasil”.

Por isso, não está “autorizada nenhuma atividade pedagógica com o livro nos Colégios Militares”.

A BBC News Brasil também tentou entrevistar líderes yanomami mas,poker livemeio à crise humanitária no território, não pôde ser atendida por faltapoker livedisponibilidade.

Também foi oferecida uma oportunidadepoker liveposicionamento à fotógrafa Claudia Andujar, por meio do contato com uma galeriapoker livearte que a representa. Não houve retorno. Em 2010, porém, foi publicada uma entrevistapoker liveque a artista aborda o livro A Farsa Ianomâmi.

Segundo ela, o livro foi construídopoker liveum períodopoker liveque ela participou dos esforços para a demarcação da terra yanomami.

“Olha, naquela época, fui muito perseguida pelos militares que estavam na presidência e nas diretorias da Funai. Apesarpoker livetudo isso, e graças a bons contatos políticospoker liveBrasília, conseguimos a demarcação das terras. Maspoker liveRoraima continuei odiada. Esse cara que escreveu sobre mim erapoker livelá. Saíram tantas notícias negativas contra nosso trabalho que você nem imagina. Saiu publicamente que eu era uma espiã americana, depois que era uma espiã belga, coisas simplesmente absurdas. Eu não tenho nada haver com a Bélgica”, disse Andujar,poker liveentrevista a uma revista acadêmica.

Circulação deveria ser restrita?

Apesarpoker livecriticarem o conteúdo do livro epoker livedisseminação pelo Exército, os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil opinam que não deveria haver algum tipopoker liverestrição à circulaçãopoker liveA Farsa Ianomâmi.

“Até pensando no caso do meu estudo, eu acho que ele é uma obra sintomáticapoker liveum pensamento militar acerca dessas das questões indígena e ambiental. Eu entendo que ele reproduz e talvez até dissemine algumas ideias que são bem problemáticas, mas não acredito que a censura ou a tentativapoker livetirar elepoker livecirculação seja o meio mais efetivopoker livecombater ele”, diz Garcez.

“E algo muito presente no livro e na circulação dele é a colocaçãopoker liveque há uma grande conspiração para deixar tudo aquilo escondido. Então, retirando-opoker livecirculação, talvez acabe validando mais esse ponto.”

François-Michel Le Tourneau concorda.

“Acho que, se você começar a andar do lado da censura, é um caminho sem volta. Acredito que é mais interessante se produzir um outro livro que demonstre os equívocos com argumentos mais sólidos”, sugere o pesquisador francês.