A polêmica estratégia do vídeo 'racista contra o racismo' que viralizou nas redes:

Crédito, Reprodução

Legenda da foto, Vídeo gravado por jovensCampinas ultrapassou 3 milhõesvisualizações e causou revolta nas redes durante o último fimsemana

"A Flor não trabalha como diarista na minha casa. Foi uma cena que criamos para o vídeo viralizar mesmo, porque temos coisas que gostaríamosfalar para as pessoas, mas não temos voz porque não somos conhecidos na internet", afirma Junior Launther,22 anos, que é ator.

"A gente achou que o vídeo poderia repercutir, mas não imaginou que fosse tanto", diz a jovem Elisama Alves da Silva, mais conhecida como Flor,20 anos. Ela trabalha como atendentetelemarketing, já fez trabalhos como atriz e sonhase tornar cantora.

A grande maioria das pessoas criticou a dupla, após a justificativa sobre o vídeo. A maior parte dos comentários nas redes sociais dos jovens classifica a gravação como uma estratégia infeliz para divulgar um trabalho. "Já começou errado. Gordofobia e racismo não são motivosbrincadeira", diz um dos milharescomentários sobre o assunto.

Crédito, Reprodução/Arquivo pessoal

Legenda da foto, Flor e Junior revelaram que vídeo que viralizou foi uma encenação para divulgar um projeto deles

Desde que compartilharam o vídeo nas redes sociais, os jovens admitem que se perguntaram por diversas vezes se o vídeo foi uma boa estratégia. "Já nos questionamos 10 milhõesvezes se fizemos o certo. Mas acredito muito no potencial disso. Vamos lançar outros vídeos para falarmos sobre preconceito. Acredito que essas pessoas que estão criticando agora vão mudaropinião quando assistirem aos outros vídeos do projeto", afirma Junior.

Ao todo, segundo os jovens, o projeto deverá ter mais sete vídeos. O último será lançado20novembro, um videoclipe da música intitulada Me respeita. "A canção será divulgada no Dia da Consciência Negra porque aborda o racismo, alémoutros preconceitos como a homofobia e a gordofobia", diz Flor.

O vídeo com o ataque racista

Os jovens, que são amigos há seis anos, pensaram na melhor estratégia para divulgar a canção que haviam escrito contra diferentes tipospreconceitos. Eles, que moramCampinas (SP) e já fizeram cursosteatro na cidade, decidiram fazer uma sérievídeos para impulsionar o lançamento da música.

Eles contam que queriam uma formacausar impacto logo no primeiro vídeo. "O Junior é homossexual e passou por muito preconceito por isso. Pensamosabordar algo nesse sentido logoinício. Mas por eu ser preta e o racismo ter sido muito falado2020, pensamos que seria a melhor forma para começarmos a falar sobre respeito", diz Flor.

A partirentão, dizem os amigos, surgiu a ideiareproduzir uma cenaum ataque racista. Eles confessam que tiveram medo das consequências da publicação e dizem que passaram dois meses avaliando a melhor forma para a publicação.

"Avisei aos meus familiares e amigos sobre o que faríamos, para que eles estivessem cientes, porque as ofensas seriam inevitáveis após o vídeo. Não sabíamos como as pessoas iriam reagir. Explicamos a eles que seria uma forma importante para dar voz ao projeto. Nossas famílias ficaram bem preocupadas, mas decidimos seguirfrente", diz Junior.

Para a cena reproduzida no vídeo, Flor conta que se inspirouuma situação que viveu no passado, pouco após se mudar para Curitiba (PR), onde morou por alguns anos.

Crédito, Arquivo pessoal/Divulgação

Legenda da foto, Dupla afirma que fez o vídeorazão do projeto "Me respeita", criado para tratar sobre diferentes tipospreconceitos

"Eu tinha 17 anos, precisava trabalhar e comecei a fazer faxinasalgumas casas. Como eu sempre gosteicantar, fazia o meu serviço cantando baixinho. Depoisum tempo, soube, por conhecidoscomum, que os filhos da donauma das casas falavam coisas ruins sobre mim, criticavam o meu cabelo, o meu peso e o fatoeu cantar enquanto trabalhava", relembra Flor.

A jovem conta que os comentários dos filhos da ex-patroa são apenas alguns dos diversos exemplospreconceito que ela sofreu ao longo da vida. Ela considera que o vídeo que viralizou se tornou uma formailustrar situações que ela e outras pessoas negras passam ao longo da vida.

Após gravarem o vídeo, Flor e Junior criaram estratégias para que ele causasse repercussão. Por se tratarum conteúdo polêmico e que causa repulsa, os jovens não tiveram muitas dificuldades para que logo se tornasse um viral. "Postei no Facebook,alguns grupos. De repente, começou a ter muitos compartilhamentos, porque as pessoas ficaram revoltadas", diz Flor. No Tiktok, a gravação foi banida duas vezes, após muitas denúncias.

Logo, o vídeo passou a ser compartilhadodiferentes redes sociais. Em poucas horas, Flor viu o númeroseguidores no Instagram saltarquase 600 para mais100 mil. "Recebi muitas mensagenscarinho. Foi muito importante ter aquele apoio, ainda que naquele vídeo não se tratasseuma situação real", afirma.

Muitas pessoas também procuraram o perfilJunior, que foi alvodiversas ofensas. "Chegaram a me mandar mensagens falando que se me encontrassem nas ruas, me bateriam. Mas isso não me abalou, porque sabia que não era diretamente para mim, era para o personagem do vídeo. Também recebi comentáriospessoas tentando me conscientizar", diz Junior.

"Particularmente, acho que quando a pessoa está errada, temosconscientizá-la, não atacá-la", acrescenta o jovem.

O ator ganhou cerca20 mil seguidores após o vídeo viralizar. "Acredito que muitos me seguiram por curiosidade, porque eu postei que me pronunciaria sobre o assunto", comenta.

Pouco mais24 horas depois da publicação do vídeo, os amigos compartilharam o vídeo no qual relatam que se tratouuma encenação. A partirentão, Junior e Flor se tornaram alvoscríticas.

"Muitas pessoas que estavam me apoiando passaram a me criticar, porque não entenderam a nossa intenção", diz a jovem, que perdeu centenasseguidores, que havia conquistado horas antes, após revelar o objetivo do vídeo.

"Infelizmente, nem todos entenderam. Em nenhum momento fizemos o vídeo como brincadeira ou para ganhar seguidores, fizemos para dar voz ao nosso projeto contra o preconceito", justifica Junior.

"O nosso objetivo é conscientizar, por isso acreditamos que precisaríamos alcançar muitas pessoas. Não queremos que gerações futuras passem por tantos preconceitos, como o racismo e a homofobia. Se não fizermos algo agora e tentarmos conscientizar sobre esses assuntos, quem fará algo?", acrescenta Flor.

Apesar das críticas, Junior afirma que ficou aliviado por não ter ficado conhecido como racista. "Essa era a minha maior preocupação antesdivulgarmos o vídeo, porque isso (o racismo) definitivamente não faz parte da minha personalidade. Ficar conhecido assim poderia afetar minha carreira, que estou construindo. Mas as pessoas, ainda que critiquem o vídeo, entenderam que é uma encenação", comenta o ator.

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Amigos há seis anos, Flor e Junior se tornaram alvoscríticas após viralizarem nas redes sociais

Um dos riscos futuros é que a imagem dele no vídeo, que agora propaga pela internet, seja compartilhadaum contexto no qual não seja explicado que se tratavauma encenação. Junior, porém, afirma estar tranquilorelação a essa possibilidade. "Não acredito que esse vídeo vá me definir, até porque sou ator e estou disposto a assumir papéis que não têm a ver com os meus valores. De todo modo, terei todo esse projeto disponível para a pessoa assistir e saber a origem do vídeo", declara.

'Tira a credibilidadedenúnciasracismo'

Nas redes sociaisFlor e Junior há alguns comentários elogiando o projeto. "Vocês estão mostrando a realidademuitos que passam por situações iguais ou até piores. Estratégia forte, verídica e muito bem feita. Estou aplaudindo e parabenizando os dois e que muitos abracem a causa e o conteúdosi", escreveu uma jovem.

Mas grande parte dos comentários são negativos. A historiadora e professora Keilla Vila Flor foi uma das pessoas que criticaram o vídeo. "Você não deve criar falsas denúncias a respeitoqualquer causa para dar visibilidade a ela. Na verdade, isso vai fazer com que as próximas denúncias sobre esse tema sejam invisibilizadas", disse,seu perfil no Instagram.

Keilla conta à BBC News Brasil que soube do caso na noite do último sábado (7/11). "Quando vi, compartilhei. Estavam pedindo para seguir a menina para fortalecer o trabalho dela, por ela ter sofrido racismo e gordofobia. Então, fomos seguir, porque normalmente quem tem visibilidade é o racista, que ganha seguidores, fama e até pode virar político", diz.

Quando soube que era uma açãomarketing, Keilla afirma ter ficado revoltada. "Muitas pessoas se sentiram enganadas com a irresponsabilidade e com a engenhosidade da ação. Eles perceberam como o racismo opera e viram como dava para tirar vantagem disso", diz.

"Fiquei pensando: e se todos os artistas negros do Brasil,uma hora pra outra, simulassem situaçõesviolência para ganhar visibilidade no trabalho? Há milharesartistas negros talentosos que não têm a visibilidade que deveriam ter", desabafa a historiadora.

Para Keilla, o principal problema do vídeo é a consequência que ele pode terfuturas denúnciasracismo. "A descredibilização dessas denúncias existe há séculos no Brasil, pois muitos preferem dizer que elas são falsas. O racismo existe! Quando criam denúncias falsas, fomentam a descredibilização das verdadeiras", diz.

"Não duvido que a moça do vídeo tenha passado por racismo ou gordofobia. A questão é que se ela passa por isso, não tem motivos para simular algo. Há maneirastrabalhar com issoum vídeo", acrescenta.

Para a urbanista e escritora Joice Berth, pesquisadora sobre questões raciais egênero, o vídeo feito por Junior e Flor foi uma péssima ideia. "Achei um absurdo. Estamosum momento do debate racial no Brasil onde tratamos dos efeitos psíquicos do racismo, o que causa à saúde mental das pessoas e sobre o grande númerosuicídio entre jovens negros, muitos deles com históricoação policial racial ou outros tiposracismo", pontua.

Ela comenta que vídeos como o da situação encenada por Junior e Flor costumam abalar a autoestimapessoas negras. "Eles não pararam para pensar se iriam despertar algum gatilho, sofrimento ou angústia que as pessoas tentam lidar. Sempre que um caso grotescoracismo acontece, jogam nas redes e tem uma repercussão maior. Isso envolve uma sériesofrimento e ansiedade na população negra, sobretudo os mais jovens, que ainda não têm jogocintura, preparo e fortalecimento da personalidade para lidar com essas questões. Por isso, muitas vezes tentamos levar palavras para levantar a autoestima desses jovens".

Mesmo que a encenação tenha sido feita por um rapaz homossexual e uma jovem negra, grupos que costumam estar expostos a sériesopressões, Joice considera que os dois não entenderam a gravidade do problema que tentaram retratar no vídeo.

"Esses jovens foram completamente infelizes. Sem contar que injúria racial é crime, previstolei. Não dá pra brincar com um crime. É como dizer: assassinei uma pessoa, mas era só para promover o meu trabalho", diz.

Ela opina que Junior e Flor deveriam ter avisado, no início do vídeo, que se tratavauma dramatização. "Assim daria para compreender. Como não houve qualquer aviso (de que era uma encenação), muitas pessoas se mobilizaram para contestar esse caso e depois se sentiram como palhaças. Os fins não justificam os meios", declara.

"As pessoas não entendem que fazer sucesso, ter fama e ser útil para a sociedade são coisas que nem sempre estão juntas. Estão buscando fama vazia. Muitas pessoas negras, como a Karol Conka e o Emicida, conseguiram visibilidade na mídia com um caminho digno, sem ofender ninguém", declara.

Apesar das críticas, Joice afirma que Junior e Flor não devem ser alvosofensas. "Não vou demonizar essas coisas. São jovens e isso foi uma grande molecagem. Não entenderam o real problema. Precisamconscientização", opina.

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