Uns choram, outros fazem festa, outros fazem selfies: o duro encontrojack pokerfamílias com ossosjack pokerparentes desaparecidos na Argentina:jack poker

Crédito, EAAF

Legenda da foto, Uma família se reúne na cerimônia religiosajack pokerdespedidajack pokerum desaparecido que teve os restos identificados pela Equipe Argentinajack pokerAntropologia Forense.

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Legenda da foto, Calcula-se que 30 mil pessoas desapareceram durante a ditadura militar na Argentina

A antropologia forense é o ramo da Medicina Legal que identifica pessoas a partirjack pokerossos e tem grande importância na esfera penal. Bernardi e a Equipe Argentinajack pokerAntropologia Forense (Eaaf) se dedicam a essa atividade há 32 anos.

A Eaaf reúne um batalhãojack pokercientistas que escava terrenosjack pokerbuscajack pokerrestos dos milharesjack pokerdesaparecidos durante a ditadura militar argentina, entre 1976 e 1983 - a grande maioria mortos pelas forçasjack pokersegurança do Estado.

Identificação a partirjack pokerum único osso

Em muitos casos, um único osso é tudo o que os peritos têm para trabalhar.

"Uma vez identificamos, a partirjack pokerapenas um fêmur, uma jovem militante chilena desaparecida na Argentina", conta Patricia Bernardi.

"Recebemos um caixão para mandar o osso para o Chile, diplomatas se envolveram porque era um processo burocráticojack pokerrepatriação e nós dizíamos: 'é só um fêmur, como vamos dizer que mandaram um caixão para apenas um osso?' Mas, para a família, era como ter um corpo completo."

Crédito, EAAF

Legenda da foto, Há famílias que levam um choque ao ver o esqueleto do parente desaparecido: elas esperam receber apenas uma urna com ossos

Diante das suas mesas repletasjack pokerossos, esses legistas testemunham diferentes manifestaçõesjack pokercarinho das famílias.

Uns choram. Outros fazem festa. Outros tiram selfies. Há quem cante ou reze.

"As mães são as que mais beijam os ossos", conta Bernardi, acrescentando que as mulheres fazem questãojack pokerse arrumar e ficar bonitas na despedida do marido ou companheiro.

'Minha avó não conseguiu ver os restos da filha'

Luciano Zuppa bebe calmamente uma cerveja no imponente salãojack pokerum bar iluminado por vitrais.

Pela segunda vezjack pokermenosjack pokercinco minutos, um garçom se aproxima e pergunta se ele deseja algo mais.

Crédito, BBC Mundo

Legenda da foto, Luciano Zuppa no bar Las Violetas,jack pokerBuenos Aires, onde levou a avó depois do reencontro com os restos dos pais desaparecidos há 30 anos

"Será que peço um uísque para contar melhor minha história?", pergunta, sorrindo.

Zuppa é filhojack pokerdesaparecidos. Em novembrojack poker1976, quando tinha apenas um ano e meiojack pokeridade, homens armados invadiram a casa onde moravajack pokerLa Plata, a 50 km da capital argentina, e levaram a força Néstor Óscar Zuppa e Irene Felisa Scala, seus pais.

Ele nunca mais os viu. Pelo menos com vida.

"Em meadosjack poker2012, 36 anos depois daquele dia, alguém da Eaaf escreveu dizendo que eles acreditavam ter encontrado restos que poderiam ser da minha mãe."

O bar onde Zuppa nos encontrou se chama Las Violetas e fica no Once, bairro centraljack pokerBuenos Aires.

Durante os anos da ditadura militar argentina, era ali que as Avós da Praçajack pokerMaio se reuniam para trocar informações sobre os filhos que procuravam incansavelmente, enquanto fingiam comemorar aniversários.

Crédito, Luciano Zuppa

Legenda da foto, Luciano foi criado pela avó materna depois que os pais foram sequestrados por agentes da ditadura militar e desapareceram

No diajack pokerque foi receber os restos da mãe, Luciano estava acompanhado da pessoa que o criou desde o desaparecimento dos pais - a avó.

"Quando chegamos à Eaaf ela, então com 96 anos, não conseguiu ver os restos da minha mãe,jack pokerfilha. Ela tentou, mas teve que sair da sala. A equipe me disse para levá-la a um lugar onde ela se alegrasse um pouco. Eu a trouxe ao Las Violetas, onde ela vinha com meu avô e as amigas quando era jovem", lembra Zuppa.

'Nunca estive tão perto da minha mãe'

Mas ele sim, viu os restos. Enquanto a avó se recuperava no corredor, ele ficava diante dos ossos da mãe - um conjuntojack pokerfragmentos que procurara durante toda a vida.

"O esqueleto estavajack pokerperfeito estado, mas faltava o crânio. Primeiro, o mais difíciljack pokeraceitar era que aquilo havia sido um corpo humano e, segundo, que tinha sido o corpo da minha mãe. Mas logo consegui entender isso. Nunca estive tão perto dela nos meus 36 anos como naquele momento", afirma.

Quando Luciano começou a ajudar a equipe da Eaaf na identificação, recebeu um pedido perturbador: que levasse fotos dos seus pais sorrindo.

Crédito, Luciano Zuppa

Legenda da foto, Luciano Zuppa carrega a urna com ossos dos pais durante a homenagem realizada na universidadejack pokerLa Plata, onde eles haviam sido professores

"Talvez por isso tenha me abalado tanto o fatojack pokernão ter o crânio. É nele que está a única parte do esqueleto visíveljack pokeralguém vivo: os dentes. O resto dos ossos não vemos porque está cobertojack pokerpele e carne. Eu achava que ver os dentes, o sorriso da minha mãe, seria um gatilho para a minha memória."

Relacionamento a partir dos ossos

Zuppa começou então a se reconhecer naquele conjuntojack pokerrestos na mesajack pokermetal: notou que a mãe tinha um dos ossos do peito maior do que o normal - como ele.

"É incrível como você pode se relacionar com ajack pokermãe até pelos ossos. Tenho esse mesmo osso grande aqui", diz, apontando o peito. "Essa alteração sempre me incomodou, mas acabou sendo o que me ajudou na conexão com ela e a superar a faltajack pokerum crânio."

Pouco tempo depois, Zuppa soube que examesjack pokerDNA feitosjack pokerum outro conjuntojack pokerossos do laboratório da Eaaf haviam dado resultado positivo. Eram os restosjack pokerNéstor, seu pai.

Crédito, EITAN ABRAMOVICH

Legenda da foto, Organizações argentinasjack pokerdireitos humanos destacam a importância da devolução dos restos mortais para o resgate da verdade sobre o regime militar

Daquela vez eram poucos fragmentosjack pokerossos,jack pokerpior estado. Mas havia um crânio e dentes.

Fim da ansiedade

A ideia inicial era enterrar seus pais numa cerimônia pequena e íntima.

Mas acabou sendo um funeraljack pokerEstado, com a leiturajack pokeruma mensagem da então presidente Cristina Kirchner e dos peritos da Eaaf relatando o processojack pokeridentificação. A cerimônia foi na Universidade Nacionaljack pokerLa Plata, onde seus pais haviam sido professores.

E teve mais: "Convidei a bandajack pokerrock alternativo Estelares, que cantou ao vivo 'Ardimos', uma música muito importante para mim naquele processo".

Era a canção que Zuppa escutava nas viagens até o laboratóriojack pokeridentificação.

Crédito, JUAN MABROMATA

Legenda da foto, Cercajack poker30 mil pessoas teriam desaparecido durante a ditadura argentina, estimam entidadesjack pokerdireitos humanos

"Receber os ossos pôs fim a muita ansiedade e a perguntas que me fiz por anos", destaca Zuppa.

"Embora tenham se passado quatro anos, ainda continuo tentando processar tudo. Você pergunta como me sinto e não sei. Larguei meu emprego, viajei, comecei outro caminho, uma busca mais interior e pessoal. Deixeijack pokerprocurá-los para começar a procurar por mim mesmo."

Perguntasjack pokeruma vida

De volta à salajack pokerPatricia Bernardi, uma garrafajack pokervinho espera ser aberta - talvez presentejack pokeruma família que reencontrou seu desaparecido. Esse é um gesto que ainda surpreende a antropóloga forense numa profissãojack pokerque viu "de tudo".

Crédito, EAAF

Legenda da foto, Milharesjack pokerfamílias ainda esperam por pistas que levem ao paradeirojack pokerdesaparecidos durante a ditadura na Argentina

"Não importa se é na Argentina,jack pokerEl Salvador ou no Congo, você vai enfrentar uma família. Em 20 minutos a sós com aqueles restos e com aquelas pessoas, você vai responder o que elas passaram 20 anos se perguntando", explica,jack pokermeio a caixas cheiasjack pokerossos.

"E o que vai ser dito tem que ser contundente, como é o trabalho científico, mas falado com cuidado e carinho", completa.

Nesse momentojack pokerencontro íntimo, sentimentos e reações por vezes abalam a antropóloga.

Viver o luto

"Uma vez devolvemos a um rapaz um esqueleto sem crânio e ele disse: 'Se me derem o crâniojack pokeroutra pessoa, troco por todo o esqueleto do meu pai'. Ou seja, o crânio era superimportante para ele e não o tínhamos", relata, com um sorrisojack pokercompaixão.

"O que devolvemos a esses parentes é o que eles precisam para viver o luto", conclui.

Crédito, BBC Mundo

Legenda da foto, Embaixo das pistas da Rodovia 25jack pokerMaio,jack pokerBuenos Aires, um memorial lembra os desaparecidos da ditadura militar no centrojack pokertortura Club Atlético

Em plena era digital, muitos querem que o momento do reencontro seja registrado.

Selfie com caveira

"Nos últimos anos tem me impressionado a quantidadejack pokerpessoas que pede para tirar fotos. Lembro que identificamos o filhojack pokerum senhor alemão. Quando ele entrou na sala, me deu a câmera e pediu que eu tirasse uma foto. Logo que concordei, ele posou com o rosto junto do crânio", diz a antropóloga.

"Fiquei paralisada. Ele me contou que quando sequestraram seu filho, os militares levaram todas as fotos. Ele não tinha uma só foto do filho vivo. E eu pensava 'isto é um esqueleto, não é o seu filho'. Mas o parente não o vê assim e é importante entender isso".

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Legenda da foto, Peritas da EAAF trabalham para identificar várias ossadas no laboratório da equipe. A última etapa do processo é a entrega às famílias

As histórias são muitas: amigos que fizeram uma seresta, um parente malabarista que fez um showjack pokercirco, outro que levou um álbumjack pokerretratos da família e mostrou cada foto para um crânio perfurado por um tiro.

Peritos e famílias: relação delicada

Desde o começo, a marca do trabalho da Eaaf é o relacionamento com as famílias.

Esses peritos escolheram ser mais do que profissionais que fazem escavações, analisam e confirmam dados. São as pessoas que entregam as ossadas e oferecem um ombro para apaziguar emoções que afloram no laboratório.

O contato com as famílias também serviu para aprimorar a forma como a devolução é feita. Explicar, por exemplo, que os ossos vão estar montadosjack pokerum esqueleto.

"Decidimos avisar isso depois que uma família se queixou que levou um choque porque se deparou com o esqueleto do parente sobre uma mesajack pokermetal. Para nós isso era óbvio, mas a família achava que ia receber uma urna com ossos", diz.

Bernardi encerra a conversa e volta a se concentrarjack pokeroutro processojack pokerdevoluçãojack pokerossada. Um novo encontro, uma nova surpresa.

Busca incansável

O barulho dos caminhões quase sufoca a vozjack pokerJosefina Giglio. Mas ela não grita, não quer fazer isso naquele lugar.

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Legenda da foto, Josefina Giglio mostra a foto da mãe no cartaz colocado no local onde funcionava a prisão clandestina e centrojack pokertortura Club Atlético

Mãejack pokerduas crianças e filhajack pokerdesaparecidos, ela tenta achar a foto da mãe no mural colocado sobre as ruínas do centro clandestinojack pokerdetenção e tortura Club Atlético - agora localizado embaixo das pistas da Rodovia 25jack pokerMaio,jack pokerBuenos Aires.

"É essa aqui, veja", ela mostra a foto da mãe, Virginia Isabel Cazalas, entre centenasjack pokerimagens no cartazjack pokerhomenagem aos que estiveram presos ali.

Peregrinação

Giglio foi até lá porque, segundo sobreviventes, aquele é o lugar ondejack pokermãe foi vista pela última vez com vida.

No iníciojack poker1978, quando Giglio tinha oito anos,jack pokermãe foi levada da casa onde a família vivia clandestinamente,jack pokerBuenos Aires. Um ano antes, seu pai desaparecera da mesma forma.

Desde então, ela procura os dois, sem sucesso.

Giglio é uma entre muitos filhosjack pokerdesaparecidos que ainda não conseguiram receber os restosjack pokerparentes.

Ela faz peregrinações às ruínas do Club Atlético, onde a terra está aberta por uma escavação arqueológica que busca o centrojack pokertortura enterrado na construção da estrada.

"Há duas fases neste processo: primeiro você fica parado no tempo esperando que eles voltem, depois você começa a procurar", diz.

"Você está sempre procurando. Existia uma propaganda na TV e o ator era igualzinho ao meu pai, que tinha estudado teatro. Então eu pensava: 'Bateram na cabeça dele e ele se esqueceu que é esse ator'. Até escrevi para a emissora. Claro que ninguém nunca me respondeu."

Ela afirma que a "buscajack pokerverdade" começou quando ingressou na universidade.

'Democratizar a dor'

Também foi o despertarjack pokeruma missão coletiva: o movimento Hijos y Hijas por la Identidad, la Justicia contra el Olvido y el Silencio (Filhos e Filhas pela Identificação, Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio, quejack pokerespanhol tem a sigla Hijos, ou Filhos). É uma espéciejack pokerversão filial das Mães e Avós da Praçajack pokerMaio, criadajack poker1994, quando muitos filhosjack pokerdesaparecidos completaram a maioridade.

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Legenda da foto, A prisão clandestina e centrojack pokertortura Club Atlético funcionava a poucos metros da sede do popular timejack pokerfutebol argentino Boca Juniors

Com o movimento Hijos, ela chorou, protestou nas ruas e conseguiu "democratizar a dor".

Giglio estudou a fundo a história dos paisjack pokerbuscajack pokerpistasjack pokerfotos e cartas. Algo que lhe permitisse entender quem eles eram, pelo que lutaram e qual o sentido dajack pokermorte.

Enquanto continua esperando, ela viu companheirosjack pokermilitância receberem os restos dos pais na Eaaf.

"Uma das minhas fantasias é tirar um cochilo junto aos ossos deles", conta, às gargalhadas, com os olhos brilhando atrás das lentes grossas dos óculos.

"Queria um amuleto, tinha uma vontade imensajack pokerfazer um colar com eles", continua.

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Legenda da foto, "A terra contém como um útero quente os ossos que esperam", diz um quadro na parede do laboratório da Eaaf

No dia seguinte ao sequestro da mãe, no verãojack poker1978, ela foi autorizada a entrar no apartamento para buscar alguns pertences. A única coisa que pegou foi um colarjack pokercerâmica da mãe, comprado quando foram juntas a uma feirajack pokerartesanato.

"Pensavajack pokerdevolvê-lo quando ela voltasse."

'Filhajack pokerum buraco negro'

Durante todos esses anos, ela fez mil conjecturas mas, apesar do esforço, algumas contas não consegue fazer. Por exemplo, a Eaaf achou ossosjack pokerapenas 600 pessoas e continua encontrando mais.

Mas ainda está muito distante dos 30 mil desaparecidos estimados pelas organizaçõesjack pokerdireitos humanos ou 10 mil calculados por fontes mais conservadoras.

Muitos, sabe-se agora, foram jogados no Rio da Prata ou no mar, nos chamados voos da morte.

"Por muito tempo, tive a sensaçãojack pokerque era filhajack pokerum buraco negro e agora acho que os ossos me dariam um sentimentojack pokercontinuidade: eu sou esses ossos, vou ser esses ossos. Recuperaria essa continuidade interrompida. A gente acha que uma tíbia e um perônio são desnecessários, até perceber que esses ossos podem ser uma fontejack pokeralívio ejack pokerencerramento", desabafa.

Uma filajack pokercaminhões barulhentos interrompe nossa conversa.

Antesjack pokerpartir, Josefina Giglio olha para o buraco das escavações e diz que sempre procura algum objeto, um fragmento da herança que o destino lhe deve.

Só para ter algo enquanto os ossos dos seus pais não chegam.