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Coronavírus: 'Somos treinados a nos acostumar com a morte, mas não nos acostumamos', diz enfermeira brasileira na Itália:
'Sentimentodever'
Desde o fimfevereiro, o hospital onde trabalha, Policlínico San Donato, na periferia da cidade, passou a atender exclusivamente pacientescovid-19.
"Normalmente, o pronto-socorro é cada dia um lugar diferente. Agora, vemos sempre as mesmas coisas", diz ela, por Skype,uma sala do hospital, à BBC News Brasil. "Nós enfermeiros somos treinados a nos acostumar com a morte, mas não nos acostumamos. Quando você perde um paciente a cada três, quatro dias, é uma coisa. Quando você perde todos os dias… É muito difícil."
"Estamos vivendo uma guerra", repete algumas vezes, contando sobre seu trabalho árduo no hospital e a tristezaver pacientes morrendo sozinhos, sem contato com a família. Mas deixa claro: não se vê como especial pelo trabalho que vem fazendo.
"Não somos heróis. Estamos fazendo o nosso trabalho do dia a dia, com medo, como todas as outras pessoas, mas com o sentimentodever para a sociedade", diz.
No fimsemana, o apresentador Luciano Huck publicou emcontaInstagram um vídeoMorais. Paramentada com seu uniformeenfermeira, ela fazia um alerta: "Quem vai para a terapia intensiva tem muitas chancesnão morrer, só que não tem lugar para todo mundo (...) Podem acreditar que é pior do que vocês estão imaginando".
O vídeo viralizou, e só na contaHuck teve mais4 milhõesvisualizações. Mas não era para ter sido divulgado — ela havia mandado só para uma pessoa mandar no grupoWhatsApp da família.
"Quando acordei, tinha milhõesvisualizações, eu não entendi nada", diz. "Nunca aconteceu uma coisa dessas comigo, me assustou muito. Agora estou tentando pensar que minha família é todo o Brasil", brinca, dizendo-se orgulhosaser uma brasileira ali, na linhafrentecombate.
"Venhouma realidade muito humilde. Sou resiliente desde criança, acostumada com o sofrimento. Ter crescido no Brasil me fez mais forte", afirma.
Seu objetivo com o vídeo era convencer os idosos dafamília a se protegerem e não saíremcasa, mas ela teme que tenha causado pânico na população. Então, agora, a primeira coisa que diz é: "Não entrempânico. Mas tomem cuidados".
Cuidados para evitar a disseminação do vírus incluem o distanciamento social (mantendo dois metrosdistância entre as pessoas) e a higiene (lavando as mãos com frequência).
Morais deletou seu perfil das redes, mas diante da grande quantidademensagens que recebeuprofissionaissaúde do Brasil pedindo conselhos, decidiu criar uma nova conta para falar sobre o assunto (@claudia.demorais.off, no Instagram).
De Goianópolis à Itália
Há 20 anos, Morais trancou a faculdadematemática e deixou Goianópolis, pequena cidade11 mil habitantes, para viajar pela Europa com uma amiga. O plano era ficar viajando por dois anos, mas gostou da Itália, conheceu o homem (também brasileiro) que se tornaria seu marido e acabou ficando por lá.
Alguns anos depois, realizou o sonhoestudar enfermagem na UniversidadePavia, na Lombardia. "Sempre gosteitomar conta das pessoas,ter contato com elas. É algo meu,dentro,sempre."
E nunca imaginou que passaria pela situação pela qual passa agora, é claro, embora tenha recebido treinamento para lidar com o ebola há alguns anos.
Suas filhas,14 e 16 anos, também foram envolvidas na batalha. A mais velha mudou-se para a casauma vizinha para liberar um quarto. Ali, Morais fica isolada da família, dormindo no cômodo separado e fazendo refeições sozinha. Além disso, todos os dias ela passa para ver a filha mais velhauma "distância necessária". "Ela fica no jardim e eu fico na rua."
Na cidade onde mora, a 30kmMilão, Morais diz conhecer várias pessoas que perderam a vida por causa do novo coronavírus. "Todos os dias eu vejo um nome novouma pessoa que eu conheço. Eu perdi as contas. Vou contar depois que tudo isso passar."
'Gripezinha?'
Quando publicou o vídeoMorais emconta, Luciano Huck, considerado um dos possíveis candidatos à Presidência2022, mandou um recado: "Para quem acha que é só mais uma gripezinha… Para quem acha que é exagero… Obrigado por compartilhar, Cláudia".
O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, já disse que, por seu "históricoatleta", caso fosse contaminado pelo coronavírus, nada sentiria ou "seria acometidouma 'gripezinha' ou 'resfriadinho'".
A enfermeira diz não querer entrarquestões políticas. "Não sou eu a pessoa indicada para dizer o que é certo ou errado. Cada país tem suas prioridades e profissionais competentes para avaliar as decisões", afirma. Mas defende o distanciamento social como formacombater a disseminação do vírus.
Não é uma gripe como outras, diz ela, "pelo númerocontágios, alta virulência, por contagiar pessoas que estão com a saúde boa e pela pneumonia mais grave que provoca". "Há pacientes que chegam no pronto-socorro com uma saturaçãooxigênio70% s 80% tendo tido oxigênio na ambulância. É uma insuficiência respiratória grave."
O enfermeiro Filippo Bigioni, coordenador do pronto-socorro do Hospital Policlínico San Donato, onde Cláudia trabalha, concorda. A covid-19 não é apenas uma gripe. "Nunca vimos algo assim, nem com a Sars2003", diz ele à BBC New Brasil. "Vemos pneumonias devastadoras. São coisas novas que nem os pneumólogos tinham visto", afirma.
O hospital foi completamente transformado por causa da doença. Oferece ao menos 200 leitos para pacientescovid-19. Na UTI, são 28 leitos, com previsãoaberturamais 12.
Bigioni conta que salascirurgia foram transformadasUTI e que equipes médicas foram unificadas — cirurgiões e médicos com outras especialidades, por exemplo, agora atendem pacientescovid-19.
Ele trabalhou na transformação do hospital, elaborando novas formasfluxotrabalho e instruindo as equipes. "Abrimos um departamento por dia, e cada dia instruímos os médicos e enfermeirosum andar", diz Bigioni, que também está vivendo isolado da família,uma outra casa. Desde o começomarço, conta ele, o hospital atinge lotação máxima todos os dias.
Morrem sozinhos
Os relatosmédicos na Itália que mais têm impressionado quem não vive na pele o que acontece no país são os que falam sobre a "escolhaSofia"médicos ali, que teriam que escolher entre um ou outro paciente para salvar por não ter leitos ou equipamentos suficientes. Além disso, assustam também os relatos sobre como pacientes têm morrido sozinhos, sem poder se despedirfamiliares.
Morais comenta as duas situações.
Primeiro, esclarece que o critério para admitir alguém na UTI não é apenas a idade, e que isso é um procedimento normalhospitais. Médicos criam um algoritmo para fazer essa escolhaque cruzam as patologias crônicas dos pacientes,capacidade respiratória, idade, graucriticidade daquele momento, entre outros.
Quando há mais disponibilidadeleitos na UTI, esse algoritmo "se alarga", ou seja, há mais margem para pacientes irem para a terapia intensiva. Agora, no entanto, "estamos estreitos" — mais critérios são utilizados, e a idade é um deles. No entanto, assegura que todos os pacientes estão recebendo assistência, do início ao fim.
Depois, conta que,fato, muitos pacientes morrem sozinhos. É política do hospital não admitir qualquer outra pessoa que não o paciente para não disseminar o vírus. Acompanhantes estão proibidos.
Pacientes que estãocondiçõesusar o celular ficamcontato com seus familiares, mas os que não estão dependem dos profissionaissaúde para fazê-lo, e nem sempre é possível fazer isso para todos ou o tempo todo.
"Sentimos compaixão pelos pacientes que estão isolados. Muitas vezes não podemos estar com eles, e eles ficam sozinhos dentroum quarto sem os familiares", lamenta Morais.
"Muitos deles não conseguem se despedir ao telefone, e mandam recados por nós. Mensagens como: 'Avisa minha mulher que eu amo ela' e expressãogratidão pela vidageral." Ela conta ainda não ter conseguido dar o recado para esses familiares.
"Eu tenho um carinho especial pelos idosos. Na fase terminal, gostodar uma atenção especial, lavar, perfumar, acolher a família, no limite do possível consigo fazer isso. E agora, nesse período, não podemos."
Impotência e fé
Esse "inimigo invisível" faz com que ela se sinta impotente.
"A empatia às vezes é um negócio difícil. Se você se colocar no lugar do paciente, você pode entrarcrise", diz ela, que atribui partesua resiliência até agora à fé.
"Se não fosse a minha fé, eu já teria caído. Já teria ido para além da ajuda psicológica."
De acordo com ela, há colegas que estãocrise, choram durante os plantões e pedem para ficar afastados do pronto-socorro durante meia hora para respirar um pouco. O hospital abriu um ambulatório psicológico aos profissionaissaúde.
Mas não é exatamente o momentoagora que preocupa a enfermeira, mas o "pós-guerra". "Agora a adrenalina está alta, depois vamos ver as consequênciastodos nós."
Para seguir com seu trabalho todos os dias, Morais conta que saicasa e deixa "a Cláudia da família". Entra no trabalho e veste a "Cláudia do combate". E, quando tira o materialproteção todos os dias, deixa o que passou no hospital ali.
"Demorou um tempo para desenvolver essa técnica. Mas tem dias que a gente não consegue, voltamos para casa tristes. Somos humanos", diz, desejando que no Brasil a situação não seja tão grave como na Itália.
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