Tiradentes: como um herói 'sem rosto' acabou ganhando uma representação quase religiosa:sport nacional apostas

Uma escolha, sim. Afinal, não foram poucas as revoltas, motins e rebeliões ocorridas no Brasil colônia nas décadassport nacional apostasantecederam a independência. Mas enquanto boa parte desses ativistas permaneceram anônimos e mesmo os episódios são pouco abordados, a chamada Inconfidência Mineira é assunto conhecido por todos — e Tiradentes tornou-se um ícone nacional, a pontosport nacional apostasaté merecer feriado.

"Realmente tivemos várias revoltas no Brasil ao final do século 18, muitas delas influenciadas pelas ideias iluministas que estavamsport nacional apostasvoga. Vale lembrar que todas essas regiões ainda pertenciam a Portugal e não houve, no início, uma valorização desses movimentos. Tudo foi sendo construído ao longo do século 19", ressalta o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Unesp, e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré.

Missato ressalta que ao longo do Brasil Império, a históriasport nacional apostasTiradentes passou a ser recuperada pelos republicanos. E após a proclamação da República,sport nacional apostas1889, ele foi alçado a herói nacional por uma elite que desejava apagar do imaginário o exemplosport nacional apostasativistas mais recentes — para que eles não servissemsport nacional apostasinspiração para motins populares.

"Tiradentes era um personagem morto já há 100 anos. E o centenáriosport nacional apostassua morte [em1892] acabou servindo para exaltá-lo como personagem, um personagem perfeito, entre aspas, para ser herói da República", contextualiza o historiador.

É dessa época a primeira representação do alferes com os traços que o tornaram conhecido pelos brasileiros. Obra do pintor Décio Villares (1851-1931).

"A primeira pintura que promoveu a equivalência da imagem socialsport nacional apostasTiradentes com asport nacional apostasJesus Cristo datasport nacional apostas1890, produzida por Décio Villares. Ela apresenta Tiradentes como Cristo, com barbas, olhos claros e cabelos longos", comenta o historiador Isaac Marra, professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília Internacional. "Pela referência da época, inclusive, segundo a descrição dos representantes da Coroa Portuguesa, Tiradentes era magro, alto esport nacional apostasuma duvidosa feição 'inagradável'."

Marra cita o livro Autos da Devassa — A Inconfidência Mineira por Detrás da Cortina, do historiador Mário Caldonazzosport nacional apostasCastro, como fonte desse relato da época.

No livro A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil, o historiador José Murilosport nacional apostasCarvalho escreve que "para consolidar-se como governo, a República precisava eliminar as arestas, conciliar-se com o passado monarquista, incorporar distintas vertentes do republicanismo". "Tiradentes não deveria ser visto como herói republicano radical, mas sim como herói cívico-religioso, como mártir, integrador, portador da imagem do povo inteiro", diz ele.

"Como era alferes, isto é, aspirante militar, Tiradentes nunca usou barbas longas, cabelos escorridos ou bigodes vultosos, como muitos livros buscam caracterizá-lo. Em seu enforcamento ele portava cabelos aparados e barba raspada", pontua Marra "A imagem produzida e representada foi idealizada especialmente no contexto da proclamação da República Brasileira com a finalidadesport nacional apostasatender aos anseios do positivismo militar à época."

Contexto histórico

Rodrigues lembra que a então capitaniasport nacional apostasMinas Gerais teve muitas revoltas "notadamente antifiscais" ao longo do século 18. "Desde a Revoltasport nacional apostasVila Rica,sport nacional apostas1720, até a Inconfidência Mineira,sport nacional apostas1789, são variadas as tentativassport nacional apostasrevoltas ali conhecidas", aponta. "Onde circula riqueza, como a advinda da mineração, faz com que também haja motins contra as maneiras como a população paga os impostos."

A Inconfidência Mineira foi mais uma dessas revoltas. "Com a participaçãosport nacional apostasgrupos sociais variados, que contestavam as maneiras como Portugal gerenciava a administração local", afirma ele.

"Na época,sport nacional apostas1789, a capitaniasport nacional apostasMinas tinha uma dívida, desde 1771, com a arrecadação dos quintos do ourosport nacional apostas582 arrobassport nacional apostasouro ou o equivalente a 8.730 quilossport nacional apostasouro", explica o historiador. "E o pagamento desses atrasos recairia sob toda a população da capitania, caso se decretasse seu pagamento compulsório, a derrama. Em vista disto e caso a derrama fosse decretada pelo governador, a participação popular seria intensa e isso mobilizava nas autoridades um temorsport nacional apostasrevolta que envolvia a capitania como um todo, independente do estrato social que a pessoa tinha. Todos seriam cobrados."

"Por talvez congregar a participação dos moradoressport nacional apostasMinas e seus planos congregarem interesses diversos, mas atrelados às situações econômicas, a Inconfidência ganhou notoriedade, alémsport nacional apostascontar com a participaçãosport nacional apostasimportantes homens daquela sociedade, como militares, intelectuais, juristas, letrados, religiosos, etc", contextualiza o professor.

"Isto tudo fez com que a Inconfidência se destacasse frente aos demais movimentos rebeldes ocorridossport nacional apostassolo mineiro. Em outras partes do Brasil também havia movimentossport nacional apostascontestação, que também foram variados. Independentementesport nacional apostasquais sejam eles, todos os movimentos rebeldes do século XVIII e princípios do século XIX foram reprimidos e durante o Império foram feitos perpétuos silênciossport nacional apostassuas histórias e personagens."

Rodrigues lembra que "rememorá-los" seria uma afronta "ao poder dominante" — era a mesma casa dinástica que reinava no Brasil, afinal. No próprio Código Criminalsport nacional apostas1830, o Artigo 87 previa penas graves — variandosport nacional apostasprisão por pelo menos cinco anos a prisão perpétua — a quem questionasse o imperador. Como Dom Pedro I era descendente da mesma família monárquica contra a qual Tiradentes havia atentado, não era condizente essa memória.

"Somente a partir da segunda metade do século 19 é que a Inconfidência e mesmo o alferes Tiradentes passam a aparecersport nacional apostaseventos públicos, sendo citados como exemplossport nacional apostasliberdade e contestação à ordem monárquica reinante", conta. "Com a República buscou-se construir heróis, nada como eleger o alferes Tiradentes."

"O fatosport nacional apostasTiradentes ser elencado no memorial nacional como o herói nacional se dá por inúmeras razões", elenca Marra. "A priori, o fatosport nacional apostaster transitado por diversas ocupações, empregos e trabalhos, entre os quais destacam-se minerador 'freelancer', comerciante, alferes da Cavalariasport nacional apostasDragões Reaissport nacional apostasMinas e, o labor que o legou a maior fama nacional, dentista prático, o Tiradentes."

"A segunda razão que busca explicar essa exponencial presença, simbólica e nacional, é a referênciasport nacional apostasassociações imagéticas da imagem pessoal e privadasport nacional apostasJoaquim Xavier com a imagemsport nacional apostasCristo elaborada pelo Renascimento italiano, isto é: loiro,sport nacional apostasolhos claros, cabelos longos incompatíveis com a ocupaçãosport nacional apostasalferes e destacada compleição física", comenta Marra.

"Esse popularismosport nacional apostasXavier teria sido possível a partir das múltiplas ocupações por ele desempenhadas e pelasport nacional apostaslegítima capacidadesport nacional apostascooptar e exercer um certo fascíniosport nacional apostasseus discursos, especialmente com os mais próximos", acrescenta ele.

E como o historiador Carvalho pontua no seu livro, era um momentosport nacional apostasque a Repúblicasport nacional apostasformação careciasport nacional apostasum herói nacional que pudesse exercer uma amálgama simbólicosport nacional apostastorno dos ideaissport nacional apostastransformação política.

"Como os ideais republicanos haviam se manifestado, inclusive, no ideário dos conjurados [da Inconfidência Mineira], ergueu-se um pendão representativosport nacional apostasinteresses para a justificativasport nacional apostasum ícone nacional para a República brasileira, tal como fora Napoleão Bonaparte para a República Girondina francesa: uma figura meio humana e, após asport nacional apostasmorte, pesadamente mítica associada aos ideais positivistas e militares dentro das ambições políticassport nacional apostasuma República que se fez a partir das armas, livrando a nação dos ditames imperativossport nacional apostasuma Dinastia herdeira do colonizador", analisa Marra.

Ao mesmo tempo, exaltar Tiradentes significava anular, como pontua o historiador, "com certa intencionalidade, a proposição do nomesport nacional apostasZumbi dos Palmares para a edificaçãosport nacional apostasum mito fundador e simbolicamente viável". Ele virou o mártir da independência, mesmo que esse reconhecimento tenha sido dado já após a República.

Mas apesar dessa narrativa, e do próprio títulosport nacional apostasherói da independência, não há nenhuma evidência históricasport nacional apostasque os ativistas mineiros do episódio buscassem a emancipação política do Brasil frente a Portugal. A luta parecia ser muito mais por autonomia frente à metrópole do que pela construçãosport nacional apostasum novo país.

"Tiradentes é considerado herói nacional e também lhe atribuído o epítetosport nacional apostasprotomártir, ou seja, ele é considerado o maior dentre todos os mártires do nosso processosport nacional apostasindependência. Infelizmente, não há evidências concretassport nacional apostasque os inconfidentes desejavam a independência do Brasil", afirma o historiador Rodrigues.

"Suas falas no processo aberto para julgar seus envolvimentos na Inconfidência Mineira revelam que, antessport nacional apostaspensar no Brasil, eles desejam o rompimento dos laços que uniam a capitaniasport nacional apostasMinas Gerais do Império português, e que, após o sucesso do movimento sedicioso, outras capitanias poderiam aderir aos mineiros, quase desejassem, como as capitanias do Riosport nacional apostasJaneiro, da Bahia ousport nacional apostasSão Paulo."

"Mas, concretamente, eles desejavam ver as Minas Gerais separadassport nacional apostasPortugal e há falassport nacional apostasinteresses nesse sentido,sport nacional apostasque as Minas Gerais já não aguentavam mais a opressão econômica sentidasport nacional apostasPortugal. O movimento tinha como chamariz a decretação do pagamento dos impostossport nacional apostasatraso — a derrama, a ser executada compulsoriamente sobre cada habitante da região", conclui o historiador.

Missiato acrescenta que associar a Inconfidência Mineira a luta pela Independência "não é algo necessariamente controverso, mas sim multifacetado". "Há nesses grupos personagens com interesses pela Independênciasport nacional apostasMinas Gerais, mas enquanto movimento, a luta principal era pela autonomia da província, da região, e não necessariamente independência política", explica ele.

O bode expiatório

O episódio da Inconfidência Mineira acabou com os ativistas todos presos. O fazendeiro, proprietáriosport nacional apostasminassport nacional apostasouro e coronel Joaquim Silvério os Reis (1756-1819) foi o delator que colaborou para que os rebeldes fossem encontrados e detidos.

Reis teria informado ao vice-rei no dia 9sport nacional apostasmaiosport nacional apostas1789 sobre o paradeirosport nacional apostasTiradentes, que estava foragido desde março daquele ano. No dia seguinte, a casa onde ele estava foi cercada e invadida por soldados. Sem ter como fugir, Tiradentes acabou se entregando.

Todos os inconfidentes ficaram presos por quase três anos até a finalização do processo. As condenações, pelo crimesport nacional apostaslesa-majestade, ou sej a, traição ao rei", dividiam-se entre pena capital e degredo. Mas graças a uma ordemsport nacional apostasclemência da rainhasport nacional apostasPortugal, todas as sentençassport nacional apostasmorte foram convertidas a degredo. Exceto asport nacional apostasTiradentes.

"Isso ocorreu porque ele tinha uma patente militar mais baixa. Sua condenação acabou servindo como formasport nacional apostasexemplo a não ser seguido", diz Missiato.

"Tiradentes foi o único a assumir o crimesport nacional apostasse rebelar contra o poder português na capitaniasport nacional apostasMinas Gerais, enquanto todos os demais participantes da Inconfidência Mineira negaram envolvimento na pretendida revolta, alémsport nacional apostasatribuir a ele a maior parcelasport nacional apostasculpa pelos infortúnios que passavam e por falar demais sobre ideiassport nacional apostasrompimento dos laços coloniais", acrescenta o historiador Rodrigues.

"A lei era implacável. Quem assume participaçãosport nacional apostasatossport nacional apostasrebelião, comete traição. E traição contra o governo metropolitano — o rei ou qualquer autoridade governamental que representa a Coroa portuguesa — é condenada com a morte. Por isso, Tiradentes foi condenado, porque ele foi o único a assumir,sport nacional apostasseu quarto depoimento, a responsabilidade pela morte do governador da capitaniasport nacional apostasMinas Gerais."

"Ele foi tipificado como o bode expiatório da Inconfidência Mineira. Entre audiências e interrogatórios, Tiradentes foi o único que confessou a conspiração, assumindo assim toda a responsabilidade", afirma Marra.

"Em um ato muito comum à época, o castigo exemplar, decorrente da mentalidade escravista, Tiradentes foi enforcado publicamente, no Riosport nacional apostasJaneiro, no Largo da Lampadosa, atual Praça Tiradentes. Seu corpo foi esquartejado, asport nacional apostascabeça expostasport nacional apostaspraça públicasport nacional apostasVila Rica e seus membros espalhados estrategicamentesport nacional apostaspostes e pontossport nacional apostasreferência no caminho entre Minas Gerais e os portos do Riosport nacional apostasJaneiro."

Em uma cena que também permite paralelos com a Paixãosport nacional apostasCristo, Tiradentes foi obrigado a percorrer as ruas do centro do Riosport nacional apostasuma procissão. O governo fezsport nacional apostastudo para que o episódio tivesse uma alta carga simbólica, enaltecendo o poder e a força da coroa portuguesa. Foram 18 horas apenas para a leitura da sentença. O cortejo contou com participaçãosport nacional apostastoda a tropa local e da fanfarra.

Tiradentes foi executado na forca e teve seu corpo esquartejado. Conta-se que a certidãosport nacional apostascumprimento da sentença foi lavrada com seu próprio sangue.

O herói oficializado

Se o reconhecimentosport nacional apostasTiradentes como herói se deu quase 100 anos apóssport nacional apostasmorte, a oficialização é consolidação dessa imagem é obra da ditadura militar. "Por voltasport nacional apostas1870, o movimento republicano identificou-o como mártir cívico-religioso e postulou a identificação da datasport nacional apostassua morte como feriado nacional: o Diasport nacional apostasTiradentes", aponta Marra.

"Sua imagem social e heróica foi também explorada pelos governos do regime militar [entre 1964 e 1985], mesmo que os movimentos políticos à esquerda tentassem reconduzir Tiradentes como rebelde, insurreto e insubordinado."

Considerado Patrono Cívico do Brasil, Tiradentes é rememorado com um feriado nacional. Em 21sport nacional apostasabril, exatamente a datasport nacional apostassua morte. Essa honraria é garantida por leisport nacional apostas1965, sancionada pelo presidente Humberto Castello Branco (1897-1967), o primeiro da ditadura militar brasileira.

Em 21sport nacional apostasabrilsport nacional apostas1992, 200 anos apóssport nacional apostasmorte, o nomesport nacional apostasTiradentes foi inscrito no Livro dos Heróis da Pátria.

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