Da neve ao deserto, brasileiro viaja pelo mundobicicletabambu:

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Ricardo Martins, na Tanzânia, ao ladobicicletabambu usada para fazer jornada por diversos países

De volta ao país, ele tentou retomar uma vida "normal" e começou a cursar sociologia. Porém, não se encaixava mais nos padrões tradicionaisuma empresa ou vida, como ele mesmo define.

Como sempre curtiu experiências diferentes, pensou que poderia voltar às viagens ao ladooutra "magrela", só que dessa vez ela seria feitabambu.

Ele descobriu o meiotransporte depoisver um homem andando na rua e teve a curiosidadeperguntar como a bicicleta funcionava.

"Ele construía esses tiposbicicleta e ainda as fazia sob medida. Dá para deixar o bambu mais claro, mais escuro e do jeito que você quer. Medeperna e tudo. Encaixa como uma aliança".

Ao ficar pronta, ela foi batizada como Dulcineia.

Em 2016, depoisreceber a bike, seguiu para mais uma viagemum ano e meio pelo continente africano, começando na Cidade do Cabo, África do Sul, e terminandoAlexandria, no Egito.

Ao todo, somando as duas jornadas, ele já pedalou mais50 mil quilômetros. "Ela se mostrou resistente e sempre a leveiextremos muito fortes. Ela absorve o impacto", diz.

Início da jornada pelas Américas

Mesmo exigindo muito esforço ao pedalar, o carioca já tinha familiaridade com ciclismo, pois se locomoviabicicleta diariamente ao trabalho.

Quando decidiu deixar o Brasil, Ricardo nunca havia saídobicicleta da cidade do RioJaneiro.

Como já tinha conquistadoprimeira metavida, que era proporcionar mais conforto à família, ele decidiu viajarbike pelo continente, justamente por ser algo desafiador.

Sua bicicleta funciona quase como uma casa, onde ele armazena barraca, fogareiro e sacodormir.

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Ricardo Martins durante passagem pela cidade do Cairo, no Egito

Ao decidir ir para América do Sul, ele saiu do bairro da Penha, na zona norte do RioJaneiro, seguiu até o Mato Grosso do Sul e chegou à Bolívia.

Parasurpresa, ao chegar no país vizinho, ele foi roubado. "Naquela época eu não colocava dinheiro no banco e não era fácil como hoje. Perdi quase tudo e fiquei com sete dólares", relembra.

Como tinha que se virar e recuperar o dinheiro para seguir com a viagem, ele começou a prestar consultoriamarketing e outros serviços para o Ministério do TurismoLa Paz. A partir daí, se estruturou financeiramente.

Ainda na Bolívia, o viajante se contaminou com salmonella (infecção por bactéria) duas vezes e também foi diagnosticado com febre tifoide. "Não podia tomar remédio nenhum por causa da hepatite no sangue e fígado. Fiquei no soro por duas semanas. Quase morri", diz.

Durante os quatros anosque esteve na América do Sul, Ricardo teve muitos imprevistos. Enquanto estava na Argentina, se apaixonou por uma mulher e quis ficar mais no país. No entanto, acabou quebrando o joelho lutando taekwondo. Para se recuperar, precisou fazer três cirurgias. Mesmo diante dessas adversidades, ele conta que se a viagem não tivesse sido dessa forma, não teria muito encanto.

Na estrada, ele conta que passou a acreditar mais na raça humana e que é possível encontrar pessoas sem interesse. "A hospitalidade sempre existe", conta.

E mesmo sendo no mesmo continente, o sociólogo afirma que há muitas diferenças entre os países. "Quando você mudacontinente, tudo muda. A Bolívia foi o lugar mais diferente que eu tive oportunidadeconhecer. Tem uma identidade nacional muito forte. Tem montanha, povos andinos, cidades incríveis e uma história latinoamericana fantástica."

Áfricauma bicicletabambu

A escolha pela África como destino seguinte ocorreu devido à curiosidade motivada pelo pouco conhecimento sobre o continente , segundo Ricardo. "Eu pensei qual continente eu era mais ignorante", diz.

Ele começou pela África do Sul e os planos eram cruzar desde o extremo sul ao norte do continente, chegando ao Egito. Mas como imprevistos sempre ocorrem, ele foi roubado nos primeiros 20 quilômetros da viagem.

Quando precisou parar para arrumar o pneusua bicicletafrente a uma das favelas mais perigosas do país, levou um susto: um homem armado veio emdireção e o assaltou. "Ele levou dinheiro, meu kindle e meu computador", relembra.

Por causa disso, teve que mudar os planosviagem e como ainda faltavam 15 mil quilômetros no roteiro, pensou como poderia reaver o dinheiro.

Ele escolheu trabalharum barZanzibar, na Tanzânia, por alguns meses. "Zanzibar parece (as ilhas) Maldivas. A África tem uma quantidadesurpresas na minha vida", diz. Na ilha, Ricardo também teve alguns problemas, que hoje ele relembra dando risada e com entusiasmo.

Uma vez enquanto dormia numa casapalha se viu no meioum incêndio. Os moradores limpavam o quintal usando fogo, uma fagulha atingiucasa e rapidamente começou a queimar tudo.

"Eu estava deitado na rede lendo e comecei a sair correndo. Eu só consegui salvar minha bicicleta, mas perdi os meus equipamentosviagem, roupa, sacodormir. A casa toda pegou fogo", conta.

Devido ao incidente, precisou abrir uma "vaquinha" no site apoia.se e seguir produzindo conteúdosviagem.

A iniciativa deu certo e a comunidade foi crescendo e o ajudando durante todo o roteiro. Ele criava vídeos e posts para as redes sociais somente com o celular e um teclado bluetooth.

Mesmo tendo alguns problemas durante a viagem, o sociólogo conta que a jornada teve mais pontos positivos do que negativos.

Ricardo afirma que pôde verperto a realidade do país africano e desmistificar alguns estereótipos.

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Legenda da foto, Brasileiro Ricardo Martinspassagem pela Etiópia durante jornadabicicletabambu

Em Moçambique, por exemplo, se surpreendeu com a hospitalidadealguns policiais que o ajudaram e não foram corruptosnenhum momento — o país tem famater uma das polícias mais corruptas do mundo, diz Ricardo.

Ele relembra que os postos policiais eram ótimos para adquirir água potável e energia elétrica. Alguns oficiais até o adicionaram no Whatsapp e o avisavampossíveis confrontos, guerras civis nas fronteiras eoutros países do continente.

Na Etiópia também conseguiu ver melhor o país além da pobreza. Ricardo conta que o lugar tem paisagens incríveis e que o povo é muito receptivo.

Já no Quênia conheceu o desertoTurkana, local que revela muito sobre a história da humanidade. Muitas vezes, a temperatura chegava a 52 graus.

"Psicologicamente é muito difícil aguentar, mas fisicamente não. Eu bebia 10 litroságua e fazia soro caseiro para beber e não desidratar", diz.

Após um ano e quatro meses viajando pelo país, ele encerrou a viagem no Egito e foi recebido pelo embaixador do Brasil no país. "Ele me recebeuterno e eu havia perdido dez quilos e estava com um buraco no tênis", brinca.

Durante os anos que levou planejando suas viagens, Ricardo desenvolveu trabalhossustentabilidade e mobilidade, palestroualguns países e realizou pesquisas acadêmicas à distância — por isso era conhecido por autoridades internacionais.

Do calor do deserto para o gelo na Europa

Depoisencerrar seu trajeto na África, ele resolveu encarar as temperaturas negativas da Europa. Dessa vez, também iria explorar o continenteuma ponta a outra.

Todos os dias ele pedalavamédia 100 quilômetros e agora precisava lidar com a neve. Como não tinha materiais próprios para o gelo, pensou como poderia ganhar dinheiro para se manter e comprar acessórios para baixas temperaturas.

Por sorte, foi convidado para palestraruma empresa europeia e recebeu um ótimo pagamento, que foi suficiente para comprar roupas e outros equipamentos térmicos. "Foi a primeira vez que eu tive um inverno rigoroso. Qualquer erro custavida", reforça.

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Legenda da foto, Sociólogo ao ladosua bicicletabambu durante passagem por Paris

Ricardo lembra que chegou a pegar temperaturas abaixo20 graus e que, às vezes, se preocupava.

"Fiquei três meses no Reino Unido, passei o inverno na Escócia e no PaísGales. Eu acampava debaixoneve."

Ao todo, foram 30 países durante pouco maisum ano viajando sempre na bicicletabambu.

Ainda durante o trajeto, sentiu a necessidaderetribuir o que já havia ganhado ao longo desse tempo na estrada.

Quando ainda estava na Europa, pediu recursos para a comunidadeseguidores que o acompanhavam e comprou 100 paressapatos para refugiados que faziam o trajeto entre as fronteiras a pé.

O intuito era comprar botas resistentes para temperaturas negativas. "Fiz por meiouma ONG e consegui arrecadar dinheiro para 115 paressapatos", conta.

Do mundo para Queimados, no RioJaneiro

De volta ao Brasil, Ricardo estava trabalhando no INEA (Instituto Estadual do Ambiente) e umseus colegas na empresa disse que a cidadeQueimados, na baixada fluminense, havia sido ranqueada como a mais violenta do país. Isso intrigou o sociólogo, que desejou mudar essa realidadealguma forma.

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Legenda da foto, Sociólogo criou workshop para ensinar moradoresfavela a construir bicicletasbambu

Ele procurou líderes na cidade e teve a ideiaincentivar uma transformação social por meio da bicicleta. Foi então que organizou um workshop na comunidade para mostrar como era possível criar bikesbambu.

Ele criou o Pedala Queimados, que atua para criação desses meiostransporte e ainda gera renda para os moradores.

Para testar a prática, eles escolheram ex-presidiários, donascasa, pessoas que saíramabrigos e outros indivíduossituaçãovulnerabilidade.

Para adquirir recursos, criaram um crowdfunding (financiamento coletivo) e com o dinheiro arrecadado conseguiram comprar um terreno para as reformas e criaçãonovas bicicletas. "É possível vender a bicicleta e gerar renda para comunidade", reforça.

Eles ainda arrecadam bicicletascondomínios da zona sul do RioJaneiro, fazem reparos para deixá-las ainda mais novas e servirmeiotransporte para entregadoresaplicativoscomida.

Ricardo encabeçou o projeto, mas treinou outros líderes para tocar e dar andamento à ideia, mesmo estando fora do Brasil.

Hoje, ele vive comesposa na cidade do Cairo, no Egito, e pretende pedalar com a Dulcineia mais uma vez pelo mundo, só que dessa vez o destino será o continente asiático.

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