Por que mais mortes entre homens por covid-19 ainda é mistério para a Ciência:

Crédito, Reuters

Mesmo onde os dadosgênero e sexo são parciais, como no Brasil, a incidênciamorterazão do vírus era maiorhomens - 57,8%. Os dados da Global Health 50/50, no entanto, sugerem taxasinfecção semelhantespessoasambos os sexos. Então por que uma proporção significativamente maiorhomens não resiste à doença?

"Eu diria que esse é o velho normal", opinou o demógrafo e pesquisador José Eustáquio Alves. "As mulheres sempre demonstraram uma maior taxasobrevivência a longo prazo. A covid-19 só reforça isso", acrescentou ele, que desde abril mantém um diário na internet sobre tendências e números da pandemia.

Cabe lembrar:média, no mundo, nascem cerca105 homens para cada 100 mulheres. O sexo feminino, no entanto, é mais propenso a completar o primeiro aniversário e os anos seguintes. Ou seja, morrem mais meninos do que meninas nos primeiros anosvida. Não há uma razão clara para o fenômeno, segundo a OMS.

A partir do início da idade adulta, as mulheres começam a ser maioria na sociedade e passam a viver mais do que os homenspraticamente qualquer lugar do mundo. A expectativavida para elas é,média,seis a oito anos maior. Além disso, para cada homem com um séculovida, há quatro mulheres. E das pessoas que chegam aos 110 anosidade, mais95% são do sexo feminino.

Os cientistas também constataram que as mulheres têm um sistema imunológico mais forte do que os homens, veem o mundo com maior variedadecores e correm menos riscodesenvolver determinados tiposcâncer. E, caso tenham a doença, suas chancesresponder positivamente ao tratamento são maiores. Um levantamento do Instituto NacionalSaúde dos EUA (NIH, na siglainglês) mostrou que homens brancos, negros, hispânicos, asiáticos, indígenas — todo grupo masculino tende a ser mais vulnerável ao câncer quando comparado aos pares femininos.

Outras evidências sugerem, ainda, que mulheres são mais resistentes a desenvolver doenças cardiovasculares, deficiências e certas infecções virais.

Por exemplo: estudos mostram que os homens foram desproporcionalmente afetados tanto na Gripe Espanhola1918 quanto no surto da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars),2003. Uma análise realizada na regiãoHong Kong apontou que a maioria (57%) das 299 pessoas que sucumbiram à Sars eram homens, não mulheres.

À semelhança da atual pandemia, a Sars também era causada por um coronavírus (Sars-Cov) surgidoum mercadoanimais na China. A epidemia, no entanto, durou aproximadamente seis meses, alcançou 29 países e, ao todo, matou quase 800 das cercaoito mil pessoas que contraíram a doença. Já a pandemia do Sars-Cov-2, que tem produzido uma nova ondainfectados, atingiu praticamente todos os países. Pelo menos 55 milhõespessoas foram infectadas ao redor do mundo. Destas, 1,3 milhão morreram.

Os alvos preferidos do Sars-Cov-2

À medida que os números cresciam, desde o início da pandemia, evidências mostravam que alguns grupos eram mais vulneráveis à covid-19. Idosos, por exemplo, corremmédia um risco cinco vezes maiordesenvolverem quadros graves e morrerem devido à covid-19. Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgadomaio, mostrou que pessoas acima60 anos representaram 80% das mortes na China e 95% das que morreram na Europa. No Brasil, pessoas com mais60 anos representavam 69% dos óbitos.

Fatores biológicos provavelmente colaboram para isso.

Alterações no sistema imunológico, naturais da idade, fazem com que idosos tenham pulmões e mucosas mais fracas. Além disso, as vacinas tomadas na juventude já não surtem os efeitosoutrora. Portanto, há menos anticorpos no organismo.

Acrescente esse contexto aos fatores sociais: como se engasgam e aspiram mais, eles levam a mão à boca com mais frequência, correndo mais riscocontágio. E ainda vão a hospitais e unidadessaúde com mais regularidade — especialistas afirmam que consultas médicas não urgentes, mas necessárias, colocam os idososrisco desnecessário.

Doenças pré-existentes também são um fatorrisco à covid-19. Obesidade, pressão alta, diabetes e doenças cardiovasculares são comunsidosos, mas também atingem uma parcela significativaadultosmeia-idade.

Essas condições, porém, não afetam todos igualmente. Entre pobres e ricos com comorbidades, a balança da morte tende a pender para os desvalidos — pois os ricos,tese, desfrutamuma sérievantagens como melhores dietas, condiçõesmoradia,trabalho eacesso aos serviçossaúde. Presume-se que a disparidade se repita nas comunidades negras — no Brasil, trêscada quatro pessoas que constituem os 10% mais pobres são negros, segundo a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgada pelo IBGE2019.

É difícil encontrar dados confiáveis sobre a demografia racial do vírus. Mas uma nota técnica assinada por 14 pesquisadores da PUC-RJ, no começojunho, indicou que mais da metade dos negros (54,8%) que se internaramhospitais no Brasil para tratar casosSíndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), com confirmaçãocovid-19, morreran. Entre brancos, a taxaletalidade foi37,9%. O estudo foi feito com base29.933 casos encerradoscovid-19 (com óbito ou recuperação), a partir dos dados divulgados pelo Ministério da Saúde.

Nos Estados Unidos, algumas estatísticas apontam que até 23% das mortes relatadas por covid-19 sãopessoas negras, embora elas representem aproximadamente 13% da população. Outro levantamento afirma que a taxamortenegros é 2,4 vezes superior à dos brancos, embora haja comunidades americanas onde até sete negros morrem para cada pessoapele branca.

E quanto à taxaletalidade maior entre homens?

Isso provavelmente reflete uma combinaçãodiversos fatores.

Ganha força, contudo, a ideiauma suposta fragilidade biológica do sexo masculino. Um dos principais defensores dessa teoria é Sharon Maolem, o geneticista que previu o fenômenojaneiro. A afirmação vem na esteira do lançamentoThe Better Half: On the Genetic Superiority of Women (A melhor metade: sobre a superioridade genética das mulheres). Trata-se do quinto livro do autor, lançadoabril, cuja versãoportuguês será publicada no Brasil2021 pela editora Cultrix.

A obra é resultadouma extensa pesquisa encerrada no ano passado. Nela, Moalem apresenta evidênciasque as características biológicas são determinantes à notável resiliência feminina - adicionando um importante ingrediente à teoria clássica, que costuma atribuir o prodígio a fatores sociais, como comportamento, costumes e hábitosvida.

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Legenda da foto, Em geral, mulheres vão com mais regularidade ao médico, fumam menos e lavam as mãos com mais frequência

Em geral, mulheres vão com mais regularidade ao médico, fumam menos e lavam as mãos com mais frequência. Em contrataste, os homens tratam menos das comorbidades crônicas, têm um comportamento mais arriscado e são menos caprichosos. Observando assim, a conduta,fato, torna o homem mais propenso a desenvolver uma síndrome respiratória. E a morrer mais cedo.

Mas Sharon Moalem vai além. Para ele, a dependência excessivaexplicações comportamentais cegou a medicina para outra importante realidade: a diferença genética entre os sexos.

Em um artigoopinião no The New York Times, intitulado "Por que tantos homens morremcoronavírus?", o geneticista admite que algumas explicações comportamentais "são quase certamente válidas". No entanto, também afirma que a maior taxamortes entre homens por Covid-19 "pode ser uma demonstração oportuna ealto perfil" da genética feminina.

O poderio do cromossomo X

Para compreender a diferença biológica entre homens e mulheres é preciso considerar que o DNA humano é um conjuntoinstruções genéticas, situado no núcleo celular e cercado por 46 cromossomos. Esses cromossomos são organizados22 pares que recombinam tanto o DNA do pai quanto o da mãe. Eles compartilham 99% da disposição genética hereditária, mas com milharespequenas diferenças que explicam a variação entre as características das pessoas.

Há ainda o par 23, dos cromossomos sexuais. Na maioria das circunstâncias, a fêmea humana tem dois cromossomos X — um do pai e outro, da mãe. Já o homem tem apenas um cromossomo X, herdado da mãe, emparelhado com um cromossomo Y,seu pai.

O cromossomo X é estruturalmente maior e mais complexo do que o cromossomo Y. O primeiro é dotadoaproximadamente 1.150 genes, longas sequências do DNA que produzem proteínas essenciais ao funcionamento das células.

O cromossomo Y, porvez, tem entre 60 e 70 genes. Significa que os cromossomos sexuais masculinos têm praticamente a metade da diversidade genética das mulheres, com seus dois X.

Essa população genéticadobro poderia permitir que as mulheres produzissem duas vezes mais proteínas relacionadas a esses genes do que os homens. Mas não é o que acontece. Para o ciclo da vida, as células femininas selecionam apenas um cromossomo X. O segundo é aleatoriamente desligado ou desativado, um processo conhecido como inativação do X.

Os primeiros indícios sobre a inativação do cromossomo X remontam à década1950.

Umaa importante descoberta foi que a inativação se dava no estágioblastocisto, quando o embrião alcança a parede do útero — e as células começam a ganhar funções específicas na formação do organismo do feto.

Ocorre que essas evidências provinham unicamenteexperimentos com camundongos.

"Conhecemos bastante sobre a inativação do cromossomo Xroedores por causa da relativa facilidadese estudar os embriões e da capacidademodificar o genoma deles", explicou a geneticista Lygia da Veiga Pereira, professora titular do InstitutoBiociências da UniversidadeSão Paulo (IB-USP). "Masseres humanos o conhecimento é mais limitado."

Nos últimos anos, porém, a descobertacélulas-tronco embrionárias e o surgimentouma técnicamapeamentoDNA capazsequenciar com precisão e integralmente o genomauma única célula permitiu identificar o momentoque determinados genes se tornam ativos. Foi o que Pereira e mais duas colegas analisaram a partir2013.

Elas examinaram o materialpesquisadores da China e da Suécia — sequênciasRNA, material genético mais flexível do que o DNA,células isoladasembriões humanos. E descobriram algo inesperado. "Verificamos que a inativação do cromossomo X se dava no início da embriogênese humana, anteso embrião se fixar à parede do útero,um estágio anterior ao dos embriõescamundongos", afirmou.

Isso revela que o processodesativação do X começa cinco ou seis dias após o espermatozoide (feminino, por assim dizer) fecundar o óvulo. O resultado do estudo foi publicado2017 no periódico Scientific Reports.

Alémoferecer uma nova tese ao início da inativação do X, a pesquisa brasileira reforçou um entendimentolonga data — que o mecanismoseleção do cromossomo sexual ocorreforma aleatóriacada célula.

Isso é vantajoso às mulheres. Afinal, o organismo feminino pode escolher entre dois cromossomos X,maneira a compensar uma célula defeituosa. Nos homens, não há esse tipo compensação, pois não há alternativa.

A fugainativação do X

No mesmo anoque as cientistas da USP identificaram o momentoinativação do X, pesquisadores do InstitutoMedicina Molecular da UniversidadeHelsinque, na Finlândia, publicaram na revista Nature um estudo que reforça outra teoria crescente: aque o cromossomo silenciado nas mulheres, na verdade, não está totalmente adormecido.

A ciência começou a suspeitar disso entre as décadas1970 e 1980, quando algumas pesquisas indicaram a expressãoalguns genes supostamente inativos. Presumia-se, porém, que essa expressão causava um efeito mínimo na biologia da mulher. Foi só nos últimos 15 anos que esse entendimento mudou, à medida que os pesquisadores identificavam e catalogavam os genes "fugitivos".

O que o estudo finlandês concluiu é que cerca23% da variedadegenes do cromossomo sexual silenciado não só estavam ativas como acessíveis às células femininas. São genes que raramente atingem 100% dos níveisexpressão, como no cromossomo ativo; a média ficatorno10%. Mas o processoexpressão, chamado pelos pesquisadores"fugainativação do X", é suficiente para fazer uma diferença biológica — inclusive porque parte desses genes está relacionado à resposta imunológica.

Em outras palavras, é como se o cromossomo inativo atuasse como uma espécie backup: uma cópiasegurança, com centenasgenes à disposição do organismo para enfrentar situações estressantes como o câncer, a fome ou a infecção por um vírus mortal.

A bióloga computacional Taru Tukiainen, que liderou o estudo, acredita que há ainda mais genes fugitivos para encontrar —diferentes tiposcélulas, tecidos, indivíduos e pessoasdiferentes idades. "Estamos apenas dando o primeiro passo para realmente entender toda a complexidade desse fenômeno", disse Tukiainen à revista The Scientist.

Para o geneticista Sharon Maolem, entretanto, a descoberta é suficiente para dar um novo sentido à maneira como entendemos a reação do organismo humano. Falando sobre os genes que escapavam da inativação, ele comentouum e-mail à BBC News Brasil: "Isso significa uma boa potência genética dentrocada uma das células da mulher".

Moalem afirma que o estudo dá significado às evidências históricas, que demonstram que as mulheres sempre viveram mais, mas também às próprias experiências — especialmente asquando ele dava expedienteuma UTI neonatal, dez anos atrás.

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Legenda da foto, Narrativa do cromossomo X, sozinha, não explica por completo a resistência feminina

Cabe dizer: existem muitas razões para recém-nascidos passarem dias dentrouma incubadora translúcida, cheiosfios conectados ao corpo e sob o escrutíniomédicos e enfermeiros.

A prematuridade é a principal delas. Um bebê que nasce com menos37 semanasgestação ainda não tem o cérebro e os pulmões totalmente desenvolvidos. Minúscula e indefesa, a criança permanece na UTI até atingir a completa estatura do organismo — uma enorme luta estando longe da proteção do útero materno, exposto ao frio e a trilhõesmicróbios.

O que Moalem identificouforma empírica, à época, é que meninos eram mais suscetíveis a infecções — e à morte,virtudedoenças correlatas. "Observar a vantagemsobrevivência feminina ocorrendouma idade tão jovem foi muito impactante", diz Sharon Moalem. Ele só não sabia exatamente por que aquilo acontecia. A partir da conclusão dos pesquisadores da UniversidadeHelsinque, Moalem passou a considerar que o fenômeno estivesse ligado ao fatoas meninas terem dois cromossomos X. O que permitiria, desde muito cedo, acessarem mais versões dos mesmos genes para resolver quaisquer desafios e traumas biológicos.

Estudos mais objetivos, contudo, sugerem que o amadurecimento do pulmão fetal ocorre mais precocemente no sexo feminino. Isso reduz as chances das recém-nascidas desenvolverem problemas respiratórios — que estão entre as principais causasmorte no período neonatal.

Estima-se que, entre os bebês prematuros que nascem antes das 32 semanasgestação, o riscomorrer é9% para meninos e6% para as meninas. Outras pesquisas mostram que a tendência se repetecriançaspraticamente todas as faixaspeso ao nascer, e independentemente da idade gestacional.

O Brasil não dispõedados oficiais sobre o tema, segundo a vice-diretora da Associação Brasileira da Pais, Familiares, Amigos e CuidadoresBebês Prematuros (Prematuridade). Aline Hennemann, porém, disse à BBC News Brasil que "como enfermeira neonatal e com a minha experiência beira-leito, esses estudos recentes se confirmam: as meninas têm uma incidência menormortalidade ao nascer do que os meninos".

Hormônios e enzimas

Apesarsedutora, a narrativa do cromossomo X, sozinha, não explica por completo a resistência feminina. "A genética desempenha um papel importante, mas outros fatores externos certamente contribuem", diz Zoe Xirocostas, uma jovem cientista24 anos que faz pós-doutorado na UniversidadeNova Gales do Sul, na Austrália.

Em março, Xirocostas e os colegas publicaram na revista Biology Letters o resultadouma análise sobre a vida útil no reino animal. O conjuntodados incluiu toda sorteinformações sobre a longevidadehumanos, outros mamíferos e aves, como tambémrépteis, peixes, anfíbios, aracnídeos, baratas, gafanhotos, besouros, borboletas e mariposas.

"Ao analisar essa ampla gamaespécies, descobrimos que o sexo heterogamético (os homens, no caso dos humanos) tende a morrer 17,6% mais cedo que o sexo homogamético (as mulheres, no caso dos humanos)", diz a pesquisadora.

As diferenças hormonais também podem fazer diferença, segundo Xirocostas. Pesquisas apontam que níveis mais altostestosterona, o hormônio sexual masculino, estimulam comportamentosrisco. Além disso, a testosterona pode ativar um grupogenes presentes nas célulasdefesa que enfraquecem a resposta do sistema imunológico. Por isso um agente estranho, como o Sars-Cov-2, tem facilidade para abrir terreno no organismo masculino.

Já o estrogênio, o hormônio feminino, contém propriedades anti-inflamatórias. Ele ajuda no reparo dos telômeros, as tampas que protegem as extremidades dos cromossomos. Os telômeros estão diretamente ligados ao envelhecimento. Quando eles se desgastam, as células paramse reproduzir. Essa, portanto, pode ser outra justificativa para a longevidade feminina.

O estrogênio ainda estimula uma resposta imunológica mais vigorosa.

Isso ficou evidente na pandemia do novo coronavírus. Em grande parte, gestantes infectadas pelo Sars-Cov-2 tiveram sintomas leves da doença — embora façam parte do gruporisco. Isso pode estar atrelado ao fatoas grávidas terem, naturalmente, níveisestrogênio eprogesterona mais altos durantes a gravidez.

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Legenda da foto, Outra explicação biológica para o coronavírus matar mais homens do que mulheres pode envolver uma proteína conhecida como enzima conversoraangiotensina 2

Se for assim, contudo, a explicação não funciona para as mulheres idosas — que continuam tendo um desempenho melhor do que os homens idosos no combate à covid-19, apesar dos níveishormônio nas mulheres despencarem após a menopausa. De toda a forma, a ciência vem investigando o potencial do hormônio feminino no combate à doença — tratando, inclusive, pacientes masculinos com estrogênio e progesterona.

Uma outra explicação biológica para o coronavírus matar mais homens do que mulheres pode envolver uma proteína conhecida como enzima conversoraangiotensina 2 (ACE2, na siglainglês).

Essencial à regulação da pressão arterial, a ACE2 também age como uma das portasentrada do novo coronavírus nas células humanas. É como se ela fosse uma fechadura. O vírus é uma chave que se encaixa nela e, a partir dali, ganha acesso ao núcleo da célula.

Acontece que essa enzima tem dois lados. Ao mesmo tempo que facilita a ação do vírus, ela também possui um grande componente anti-inflamatório. E a ACE2 se expressa pelo cromossomo X. Assim, as mulheres tendem a apresentar uma quantidade duplicada dessa enzima. Elas seriam mais suscetíveis aos ataques do coronavírus, mas as altas barreiras anti-inflamatórias impediriam o desenvolvimentomanifestações graves da doença. Ou seja, o vírus pode entrar, mas não consegue esculhambar tanto com o organismo delas.

Por outro lado, a teoria da ACE2 ainda carecemais estudos. Uma pesquisa da Sociedade EuropeiaCardiologia encontrou um maior índiceACE2 no plasma sanguíneo dos homens. E os especialistas especulam que essa possa ser a razão da maior mortalidade causada pelo coronavírus entre o público masculino. A missão, ao que parece, é entender qual das duas faces da enzima é mais atuante no intrincado mecanismoletalidade da covid-19.

Mas, afinal, sexo é fatorrisco?

Desde que os primeiros casos surgiram, no fim do ano passado, a doença causada pelo novo coronavírus demonstrou ser bem mais do que respiratória. Descobriu-se que a covid-19 pode afetar não apenas os pulmões como também o sistema circulatório, o coração, os rins e até mesmo os sentidos, como o olfato e o paladar. A razão para boa parte desses efeitos é um enigma.

Muito mais se descobrirá a respeito da covid-19 — só neste ano, mais73 mil artigos científicos citaram a doença, segundo o bancodados Pubmed. Inclusive sobre como diferenças biológicas acontecem ao longo da doença.

O que há, por ora, são correlações e possibilidades. Para determinar se o sexo é um fatorrisco seria necessário um estudo amplo, começando pelo sequenciamento do genomapessoas que desenvolveram quadro leve da doença eindivíduos que tiveram quadro grave. Os cientistas, então, tentariam encontrar variantes genéticas que pudessem influenciar a gravidade da doença.

Além disso, seria preciso considerar outros fatores não-genéticos — variáveis como idade, condiçõessaúde pré-existentes, hábitosvida, condição socioeconômica. Os dados precisariam virfontes confiáveis e legítimas, como registros hospitalares ou do governo, e englobar um longo períodotempo e países diferentes. É um esforço tão árduo, custoso e demorado, que beira a utopia.

Mesmo que a hipótese genética fosse confirmada, seria impossível ignorar a teoria clássica — atrelada aos fatores comportamentais. O demógrafo José Eustáquio Alves ressalta que os homens,geral, seguem mais expostos aos riscoscontágio e tratam menos das comorbidades crônicas. O que o leva a crer que as diferençasreações ao vírus (e a outras mazelas) provavelmente refletem uma combinaçãodiversos fatores.

"Explicar a letalidade do vírus só pela biologia seria interessante, mas limitada", comentou Alves. "Quando se tratamortalidade, os fatores biológicos explicam menos do que os fatores sociais."

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