Covid-19 se alastrafrigoríficos e põe brasileiros e imigrantesrisco:

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Legenda da foto, Setor emprega cerca16 mil estrangeiros no país - a grande maioria haitianos

A questão dos estrangeiros é delicada e vem chamando atenção das autoridades, diz a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT)Chapecó Mariana Casagranda, porque, alémnão falarem o idioma, muitos deles vivemgrupos, na tentativapoupar recursos, sob o mesmo teto — o que também contribui para disseminar o vírus.

Santa Catarina contabiliza 3.132 diagnósticos positivoscovid-19 entre trabalhadores31 frigoríficos, conforme as informações coletadas pela procuradora Priscila Dibi Schvarcz, que coordena o ProjetoAdequação das CondiçõesTrabalho nos Frigoríficos do MPT.

Até o momento, houve 50 hospitalizações e duas mortes — uma delas, aum haitiano48 anos que viviaXaxim.

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Legenda da foto, SecretariaSaúdeXaxim usa carrosom para tentar alertar haitianos sobre riscos da covid-19

Nos três Estados do Sul do país, que concentram cercametade dos 500 mil trabalhadoresfrigoríficos do Brasil, já são 11.500 casos confirmados104 fábricas,acordo com o registro feito pelo MPT.

Os dados coletados pelo Ministério da Saúde por meio do eSUS não informam o localtrabalho dos doentes, o que dificulta dimensionar o problema no país como um todo, diz Schvarcz.

Ainda assim, ela acrescenta, foram verificados surtos, além daqueles no Rio Grande do Sul, no oeste do Paraná eSanta Catarina, no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás e Rondônia.

O setor que mais emprega imigrantes

O Brasil é hoje um país com poucos imigrantestermos proporcionais. A presençaestrangeiros no mercadotrabalho é, portanto, pequena.

Dados da Relação AnualInformações Sociais (Rais) mostram, entretanto, que o setorfrigoríficos é o que mais emprega esse grupo.

Os números mais recentes, referentes a 2018, contabilizavam 15,7 mil trabalhadoresoutras nacionalidades que não a brasileira no grupo "abate e fabricaçãoprodutoscarne", o primeiro lugar entre 276 setores.

O valor representa 10,5% do total contabilizado pelo registro — 149,7 mil estrangeiros com carteira assinada. "Restaurantes e outros serviçosalimentação e bebida" vêm na sequência, com 9,7 mil.

Os haitianos são a imensa maioria entre os imigrantes que trabalham no setor: 11,2 mil entre os 15,7 mil.

A rubrica "outros africanos" tem o segundo maior número na Rais, 1.099 (muitos trabalhadorespaíses muçulmanos da África vêm ao Brasilbuscatrabalho na produçãocarne halal, cujo abate segue os preceitos islâmicos), seguida por paraguaios (679) e "outros latino-americanos" (662).

Regina Dal Castel Pinheiro, gerentesaúde do trabalhador da DIVS/SUV/SES, ligada à SuperintendênciaVigilânciaSaúdeSanta Catarina, conta queequipe chegou a visitar quatro domicílioshaitianosConcórdia para verificar a condiçãoque viviam os trabalhadores.

O principal problema, diz ela, é o fatoque muitos dividem a mesma casa e que o ambiente muitas vezes não tem condiçõeshigiene adequadas.

"Conversamos com as SecretariasAssistência Social e pedimos que orientassem essas pessoas e as incluíssem nos programas sociais sociais disponíveis, já que muitas vivemsituaçãovulnerabilidade social", diz ela.

Para a gerente, o fatoos frigoríficos serem ambientes propícios para a disseminação do coronavírus é só uma parte do problema.

Segundo ela, algumas empresas têm sido resistentesadotar as medidas recomendadas para evitar o contágio nas fábricas: vigilância ativa para detectar novos casos ainda no início e isolá-los, distanciamento maior dos trabalhadores na linhaprodução, adequação da entrada e saída dos turnos para evitar aglomerações e distanciamento maior dos trabalhadores nos transportes que os levam e trazemcidades do entorno.

Em seis rodadasfiscalização no Estado, foram emitidas 14 intimações e 14 autosinfração.

Em unidades com um número elevadoinfectados, a vigilância solicitou a testagemmassa dos empregados. Em uma delas,4.899 trabalhadores testados, o diagnóstico para covid-19 foi positivo para 1.219. "A grande maioria estava assintomática", diz Pinheiro.

A procuradora do trabalho Priscila Schvarcz faz avaliação semelhante. Ela destaca que muitas empresas têm se esforçado desde o início da pandemia para implementar corretamente as medidas e mantido um bom diálogo com o MPT.

Outras, contudo, dão preferência ao que os procuradores chamam"medidas fotografáveis", mas que são pouco efetivas.

O MPT já entrou na Justiça para pedir a interdiçãopelo menos 11 unidadesseis Estados.

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Legenda da foto, Setor emprega cerca500 mil pessoas no país

No fim das contas, ela acrescenta, o próprio setor acaba sendo prejudicado: desde junho, a China suspendeu a importaçãoseis frigoríficos brasileiros diante da disseminação acelerada da covid-19 nesses ambientes.

Procurada, a Associação BrasileiraProteína Animal (ABPA), que representa parte das empresas do setor, afirmou que seus associados adotaram ações preventivas ainda antes da implementaçãoquarentenasdiversas cidades do país e que seus protocolos setoriais foram validados cientificamente pelo hospital Albert Einstein.

Entre as medidas protetivas, citam a utilizaçãomáscara cirúrgica eescudo facial pelos colaboradores e a instalaçãobarreiras laterais nas linhasprodução, impedindo contato entre trabalhadores, além dos habituais uniformes, luvas, máscaras e outros EPIs e camadasproteção.

Os frigoríficos e a interiorização da covid-19

Alémexpor a vulnerabilidade dos trabalhadores imigrantes, os surtosfrigoríficos também têm contribuído para espalhar a covid-19 no interior do país.

É o que aponta o estudo que está sendo conduzido pelo técnicoplanejamento e pesquisa do InstitutoPesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Ernesto Pereira Galindo.

Usando dados do Censo, da Rais e do Caged (Cadastro GeralEmpregados e Desempregados), Galindo levantou informações sobre o municípioresidência e trabalho dos empregados do setor — que muitas vezes são diferentes — e cruzou com informações fornecidas pelo MPT sobre os trabalhadores infectados pelo coronavírus.

Os resultados preliminares apontam que os municípios que abrigam frigoríficos e aquelesseu entorno, que muitas vezes fornecem mãoobra para as fábricas, são as áreas do interior com maior incidênciacontaminação pelo novo coronavírus.

"Não posso dizer que os frigoríficos levaram a doença a essas regiões, mas dá pra dizer que aceleraram a disseminação", pontua o pesquisador, que é doutorandogeografia na UFRJ (Universidade Federal do RioJaneiro).

É o que tem visto, na prática, a procuradora do MPT Priscila Schvarcz no Rio Grande do Sul. O fatomuitos trabalhadores residiremmunicípios diferentes daquelesque trabalham ese deslocarem diariamente às vezes por duas horasvans compartilhadas com os colegas tem facilitado a transmissão comunitáriapequenas cidades do interior.

"No Rio Grande do Sul, os 15 primeiros municípiostermosincidência da doença (casos por 100 mil habitantes) são todos sedefrigoríficos ou cedem trabalhadores para essas fábricas", ressalta.

Um problema global

Os surtos da doençafrigoríficos não são exclusividade brasileira. Eles têm se tornado um problemapaíses como Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, França e Espanha. Na maioria deles, a mãoobra dos imigrantes é a principal forçatrabalho que move o setor.

Um relatório publicado no último dia 10julho pelos CentrosControle e PrevençãoDoenças dos EUA (CDC, na siglainglês) destaca que, entre os 16,2 mil casos registrados239 fábricas, 87% afetaram trabalhadoresminorias raciais ou étnicas.

O texto destaca as características do setor que favorecem a disseminação do Sars-Cov-2: o fatoos trabalhadores ficarem muito próximos uns dos outros nas esteiras por onde passa a carne,dividirem o transporteida e volta emuitas vezes morarem sob o mesmo teto.

O biólogo Robert Wallace, que há 25 anos estuda a indústriacarne erelação com o aparecimentonovas doenças, acrescenta que muitas empresas do setor não têm seguido as recomendações feitas pelas autoridadessaúde para tentar conter a disseminação da covid-19.

"Muitas têm se aproveitado da faltaclareza sobre as atribuiçõescada entre — se quem deve fiscalizar é o condado ou o Estado, por exemplo — para se autorregular", afirma.

AutorBig Farms Make Big Flu, recém-lançado no Brasil como Pandemia e Agronegócio: Doenças Infecciosas, Capitalismo e Ciência (Editora Elefante), ele propõe uma reflexão mais ampla sobre a forma como o mundo produz e consome carne.

Para Wallace, uma sériecaracterísticas da chamada pecuária industrial favorece o aparecimento e transmissãonovas doenças.

O confinamento, por exemplo, tende a deprimir o sistema imunológico dos animais. A grande homogeneidade genética, porvez, retira as barreiras que uma diversidade maiorgenomas coloca para a disseminaçãoum agente infeccioso, enquanto a alta produtividade permite que haja sempre uma grande população "nova"seres vivos à disposição desses agentes, que podem, assim, evoluir mais facilmente para variantes mais perigosas.

Foi esse ambiente que propiciou o surgimento da gripe suína (H1N1) e da gripe aviária (H5N1), diz o biólogo, que já foi consultor do CDC e da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e hoje faz parteuma organização independentecientistas chamada Agroecology and Rural Economics Research Corps.

Crédito, Nicholas Pfosi/Reuters

Legenda da foto, Para biólogo, confinamentoanimais pela pecuária industrial favorece aparecimento e disseminaçãonovas doenças

Apesaro Sars-Cov-2 ter sido transmitido ao ser humano por uma espécie exótica, e não por um animal criado especificamente para o abate, o pesquisador defende que a pandemiacovid-19 também está ligada à forma como o setor está estruturado.

À medida que o agronegócio avança sobre florestas e contribui para o desmatamento, diz ele, populações são "empurradas" para regiões mais remotas e estão mais expostas a novos vírus e outros patógenos.

Esse é o tema do novo livroWallace, Dead Epidemiologists, que será lançadosetembro.

'Ele não sabia que tinha covid'

O haitiano48 anos que morreuSanta Catarina moravaXaxim e trabalhavauma fábrica no municípioSeara, a cerca50 km.

Ele era um dos muitos que diariamente se deslocam para outras cidades para trabalhar, relata o SecretárioSaúde, Isac Casagrande — que acrescenta que o município tem tido uma boa interlocução com o frigorífico instalado na cidade, que tem tomado as medidas preventivas recomendadas pelas autoridades locais.

Xaxim tem a quarta maior incidênciacovid-19 no Estado, com 2.494 casos a cada 100 mil habitantes. Até dia 21julho, havia 761 diagnósticos confirmados e 19 óbitos.

Quando adoeceu, o haitiano foi levado ao municípioXanxerê, que está a 20 km, para ser atendido no Hospital Regional São Paulo, referência para 14 municípios da região.

"Ele não sabia que tinha covid", diz o médico Vinícius ChiesMoraes, que tratou do homem durante o períodoque ele esteve na UTI.

Com dificuldade para se comunicar com o paciente, que se mostrava bastante nervoso, Moraes resolveu pedir ajuda a uma recepcionista do hospital que também é haitiana.

Em uma conversa por telefone, ela explicou-lhe a situação, e a resposta do paciente surpreendeu a equipe.

"Ele não estava entendendo nada do que estava acontecendo, achava que nós estávamos querendo prejudicá-lo. A mudança do quadro emocional foi muito significativa a partir do momentoque ele ouviu alguém falandolíngua."

A pedido dos médicos, a recepcionista entroucontato com a família do homem no Haiti e passou a lhes enviar boletins diários pelo WhatsApp.

Foi ela também que explicou ao paciente que ele teriaser submetido a ventilação mecânica, com coma induzido, porque 50%seu pulmão estava comprometido.

Depois dos pulmões, contudo, a doença atacou os rins e o fígado. Após 27 dias internado, ele faleceu no dia 12junho, com síndromedisfunçãomúltiplos órgãos.

Por se tratarum casocovid-19, o corpo foi encaminhado diretamente para o cemitério municipalXaxim e enterrado naquele mesmo dia.

Com a ajuda da empresaque o haitiano trabalhava, a diretora geralAssistência Social da cidade, Josete Percio, conseguiu entrarcontato com um primo dele que também moravaXaxim. Ela não sabia que o hospitalXanxerê estavacontato com a família no Haiti.

"Ele confirmou ser parente com a ajudaum tradutor. O processo todo foi bem difícil."

Incumbido entãoavisar os demais familiares, o primo contou que o homem havia deixado dois filhos no Haiti.

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