Aos 97 anos, filhaonabet saqueescravos luta para manter viva tradição musical das senzalas:onabet saque

Legenda da foto, Tia Maria do Jongo, filha e netaonabet saqueescravos que luta para manter viva a tradição musical das senzalas
Legenda da foto, Um dos cantos destinados à memória reúne pertences do Mestre Darcy Monteiro, fundador do Jongo da Serrinha

A casa foi criada com aporteonabet saquecercaonabet saqueR$ 2,5 milhões da prefeitura na gestãoonabet saqueEduardo Paes, mas não recebe recursosonabet saquefomento direto do município desde 2016.

A Secretaria Municipalonabet saqueCultura (SMC) do prefeito Marcelo Crivella, que assumiuonabet saque2017, diz que foi forçada a cortar recursos para fomento direto à cultura devido "à crise pela qual passam o país, o Estado e o município" e ao déficit herdado da gestão anterior.

O fechamento da casa gerou protestos entre a classe artística e críticas à política cultural do Rio, com insinuaçõesonabet saqueque a gestãoonabet saqueCrivella estaria tirando recursosonabet saquemanifestaçõesonabet saqueraiz africana. A prefeitura afirma que incentivar tradições afro-brasileiras e patrimônio imaterial é "umonabet saqueseus eixos estratégicos" (leia mais sobre a disputa no fim da reportagem).

'Crianças têm que conhecer passado da escravidão'

O casarão fica no pé do morro da Serrinha, tradicional comunidadeonabet saqueMadureira, na zona norte do Rio, onde Tia Maria nasceu eonabet saqueonde "nunca mais" saiu, diz bem-humorada, ao receber a reportagem da BBC Brasil.

Na Serrinha, Tia Maria cresceu cercada por jongueiros e pelo forte movimentoonabet saquesamba que florescia nos terreiros das casas. Ela foi uma das fundadoras do Império Serrano,onabet saque1947, e detém o títuloonabet saque"Número 1 do Império". A Casa do Jongo fica na rua Silasonabet saqueOliveira,onabet saquehomenagem ao sambista que se imortalizou com "Aquarela Brasileira", clássico samba-enredo da agremiação. Ele era compadre da Tia Maria.

Um cadeado mantém o portão trancado para visitantes na entrada, entre as palavras "Rio 450" anos - alusão à celebração do aniversário do Rioonabet saque2015 e ao calendárioonabet saqueeventos comemorativos promovidos pela prefeitura, do qual a inauguração da Casa do Jongo fez parte.

"As crianças têm que conhecer o nosso passado, porque isso elas não aprendem sobre a época da escravidão direito nas escolas", afirma ela. "As crianças têm que saber o passado do país."

Legenda da foto, Ao lado do jongo, a escolaonabet saquesamba Império Serrano é a outra grande paixãoonabet saqueTia Maria

O espaço é amplo e decorado, com pisoonabet saquepedras portuguesasonabet saquepadrões africanos, paredes forradasonabet saquetecidos coloridos, um canto destinado à história do jongo, com fotos e relíquiasonabet saqueseus precursores, e espaço para aulasonabet saquedança, percussão, cavaquinho, capoeira, inglês, arte, costura, ginástica, alémonabet saquecineclube e estúdio musical.

O centro costumava receber 2 mil visitantes e 400 crianças por mês. Geraçõesonabet saquecrianças nascidas na Serrinha aprenderam jongo neste imóvel eonabet saquesedes menores que a ONG manteve anteriormente.

Tia Maria chegou a ouvir boatosonabet saqueque poderiam ser despejados da casa. A ONG tem cessão até 2024 para uso do imóvel, que pertence à prefeitura.

"Fiquei chocada, mas não acredito que isso possa acontecer. Eu sou muito religiosa, minha féonabet saqueDeus não acaba. Eu rezo muito. Tenho esperançaonabet saqueque tudo vai dar certo."

Aniversário numa semana, portas fechadas na outra

Os últimos diasonabet saque2017 tinham sido só festa para Tia Maria. Ela comemorou seus 97 anos com um showonabet saquejongoonabet saqueuma casaonabet saquesamba na região portuária do Rio, arrancando aplausos boquiabertos do público quando resolveu ensaiar uma dancinha até o chão, sem se apoiaronabet saqueninguém para subir.

No dia 30onabet saquedezembro, a festa continuou com almoço e pagode para dezenasonabet saquepessoas na Casa do Jongo. "Minha nora fez dois tachosonabet saquefeijoada, daquela bem grossa e cheiaonabet saquecarne. Só o pagode é que acabou cedo demais. Fiquei com uma pena, adoro um pagode!", protesta com uma gargalhada.

Legenda da foto, Sincretismo religiosoonabet saqueum pequeno altar mantido com oferendas na casa

A voz firme e animada ainda sustenta bem os versos do jongo, que cantarola nas pausas da conversa com a BBC Brasil, batucando na mesaonabet saquetoalha estampada.

Tia Maria cresceu ouvindo relatosonabet saquesua avó sobre o passado da escravidão.

"Ela sempre contava que o jongo veio da África, que os escravos dançavam na senzala", lembra.

"E explicava que o jongo é um afro, não é religião. Aqui pode dançar evangélico, católico, macumbeiro, quem quiser", diz.

Dos velhos para as crianças

De acordo o Iphan, o jongo consolidou-se entre escravos que trabalhavam nas lavourasonabet saquecafé e cana-de-açúcar, sobretudo na região do vale do rio Paraíba.

Tem origemonabet saqueritos e crençasonabet saquepovos africanos, principalmente osonabet saquelíngua bantu, e é praticado nos quintais das periferias eonabet saquealgumas comunidades rurais da região Sudeste. Há grupos tradicionaisonabet saquejongoonabet saquecidades como Valença, no Rio, e Piquete e Caxambu,onabet saqueMinas Gerais.

Legenda da foto, Tia Maria descansa no meio da equipe responsável por coordenar o Jongo da Serrinha

Tia Maria nasceuonabet saque1920, dez anos depoisonabet saquesua mãe ter migradoonabet saqueMinas Gerais para o Rio e se estabelecido na Serrinha, na periferia do Rio, que na época era uma área rural. "A minha mãe já veio para o Rio dançando jongo, cantando jongo. Eu digo que já nasci jongueira."

No início, entretanto, havia uma restrição etária intransponível: o jongo era coisa dos velhos. "Velho mesmo, não é jovem adulto não", ressalta Tia Maria.

Ela lembra da infância espiando por um buraco nas paredesonabet saqueestuque da casa da mãe enquanto os velhos dançavam no terreiroonabet saquenoite. Adorava cantar e dançar as músicas com a mãe dentroonabet saquecasa - mas participar das rodas, nem pensar.

Isso começou a mudar na décadaonabet saque60, quando a morteonabet saquevelhos jongueiros começou a ameaçar as rodasonabet saquejongo. Quebrou-se assim o tabu que impedia as criançasonabet saqueparticipar.

"Hoje não acaba mais. Aqui na Serrinha, toda criança gosta do jongo, bate o jongo, canta o jongo. Acho que o jongo vai ficar aqui eternamente."

Rezar para antepassados

Tia Maria não gosta das representações que vê dos tempos da escravidão. Diz que não combinam com os relatos e a vivênciaonabet saquesua família. "Eles botam cada negro feio nos livros. Mentira! Na escravidão tinha cada negro bonito."

"E também não tinha só negro", diz. "O senhor levava as moças bonitas para ficar na rede com ele, com os filhos. Quando elas vinhamonabet saquelá (da casa grande), vinham grávidas. Aquela criança não ia sair negra. Saía morena, bonita, filha deles láonabet saquedentro. Aí criava ali na senzala. Ou, quando viam que a criança era bonita, se achavam que era cara, levavam para vender", relata.

Ela conta que a avó trabalhava na "casa grande", e com isso falava um português mais correto que outros membros da família - mas viu barbaridades dentro da casa dos senhoresonabet saqueescravos,onabet saqueuma fazendaonabet saqueMinas Gerais.

"Ela falava que tinha criança que a sinhá matava. Às vezes a mãe estava engomando as roupas da sinhá, e a criança gritando dentro da mala, morrendo. A sinhá fechava a mala para a criança morrer sufocada. E a mãe vendo aquilo e não podendo falar nada. Era escrava, né? Se falasse ia para o tronco, ou ia morrer também. Uma maldade."

Legenda da foto, Tia Maria do Jongoonabet saquefoto 3x4 tiradaonabet saque1958, quando tinha 38 anos | Foto: Acervo Jongo da Serrinha

"Ela dizia que o senhor gostava, porque o jongo tem aquela umbigada forte", diz, referindo-se ao "encontroonabet saqueumbigos" que é um dos movimentos típicos da dança. "O senhor achava que aquela umbigada ia originar mais crianças para ele. Mais escravos."

A mãeonabet saqueTia Maria também foi escrava, até os 8 anos.

"Minha mãe era garota quando eles foram libertos, lembrava muito pouco. Mas ela sempre contava que um dia ela teve que lavar a dentadura do sinhô no rio, eonabet saquerepente a água levou. Ela disse que nunca nadou tanto quanto naquele dia, desesperada para conseguir a ditadura do sinhô!", conta Tia Maria, hoje podendo rir da história porque afinal os dentes foram encontrados.

Para Tia Maria, o jongo ensina às crianças o respeito pelos mais velhos e pela históriaonabet saqueseus ancestrais.

"O jongo era a dança dos escravos. Sempre que dançamos, rezamos um Pai Nosso, uma Ave Maria, antesonabet saquecomeçar. Quando você bate um jongo, o espírito deles está ali. Rezamos para suas almas", diz.

Recursos da prefeitura

Dyonne Boy, uma das diretoras da Associação Cultural Grupo Jongo da Serrinha, diz que a situação financeira da Casa do Jongo começou a apertaronabet saque2016, quando perderam o patrocínio da Petrobras.

Em 2017, sem conseguir captar mais recursos, pediram ajuda à prefeitura, apresentando um projetoonabet saquemarço.

"Era a nossa única esperançaonabet saqueter um respiro. Quando tivemos essa resposta negativa,onabet saqueoutubro, vimos que íamos ter que fechar", diz Dyonne. "Nós e muitos outros gruposonabet saquecultura popular estamos sem ter como dar continuidade ao nosso trabalho."

De acordo com a Secretaria Municipalonabet saqueCultura (SMC), o programaonabet saquefomento direto (ou seja,onabet saqueinvestimento da prefeituraonabet saqueprojetos via editais) foi reduzido por conta da crise financeira.

"A nova administração municipal encontrou déficitonabet saqueR$ 4 bilhões, herdado da gestão anterior. O orçamentoonabet saquetodas as secretarias foi reduzidoonabet saque25% logo no início da gestão. E a arrecadação permaneceuonabet saquequeda ao longoonabet saquetodo o ano", afirma a secretaria.

Legenda da foto, A Casa do Jongo, que atualmente se mantém fechada, com a pintura comemorativa dos 450 anos do Rio, da épocaonabet saquesua inauguração pelo prefeito Eduardo Paesonabet saque2015

A SMC afirma que nunca suspendeu qualquer financiamento à Casa do Jongo e que, no ano passado, destinou R$ 140 mil à ONG, que seria o maior repasse financeiro já feito pela prefeitura à instituição,onabet saquecomparação com valoresonabet saqueR$ 80 mil a R$ 100 mil repassados entre 2013 e 2016 pela gestãoonabet saqueEduardo Paes por meioonabet saqueeditais.

Os valores, entretanto, se referem a mecanismosonabet saqueincentivo diferentes. Os recursosonabet saque2017 foram pagos pela Rede Globo por meioonabet saquefomento indireto, ou seja, pela leionabet saqueincentivo fiscal que abate parcelas do Imposto Sobre Serviços (ISS) para que empresas repassem o valor a projetos culturais pré-aprovados pela SMC.

Pela mesma via, a casa conseguiu captar R$ 120 mil da Globo neste ano. Dyonne afirma que o valor não é o suficiente para cobrir os cercaonabet saqueR$ 50 milonabet saquegastos mensais. O último repasseonabet saquefomento direto feito pela prefeitura à Casa do Jongo foionabet saque2016, no valoronabet saqueR$ 90 mil.

A SMC destaca que disponibilizou R$ 1,5 milhãoonabet saquetrês editais lançados no ano passado, um deles com o tema "Chamamentoonabet saqueMatriz Africana", distribuindo o valoronabet saqueR$ 500 mil por 33 projetos.

"Não é verdade que a SMC e a prefeitura não possuam políticas culturais para as manifestações afro-brasileiras", diz a SMC.

Desde que a Casa do Jongo fechou, a diretora Dyonne Boy conta que o Jongo da Serrinha tem sido procurado por grupos privados e pela Secretaria estadualonabet saqueCultura do Rio para conversas sobre possíveis financiamentos. Ela diz que a ONG está correndo atrásonabet saqueacordos para voltar a funcionar "o mais rápido possível."