Como nasceu o KKKKKKKK da geração Z e por que emojirisada é coisavelho:

Emoji chorandorir

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Se você usar esse emoji para rir nas redes sociais, seu interlocutor poderá adivinharidade - jovem, não é

Disclaimer: esta repórter, recém-cumpridos 30 anos, é millenial e, aparentemente, cringe. Separa o cabelolado, adora um café da manhã e riu bastante com o "vídeo da Pfaizer".

Se também tivessem gargalhado, os adolescentesagora teriam rido apenas KKKKKKKKKKK. Ou teriam recorrido a outra forma corrente do riso: LIWAHDFIWAKHDWQ.

Sim, isso mesmo. Ligue a caixa alta e sente a mão no teclado. O que sair é jogo. Esse tiporisada altamente aleatória - uma subversão da onomatopeia, por que não? - denota mais graça ainda.

Emojirisada, por outro lado, é coisagente velha. Mais ou menos quando o "nariz"emoticons denunciava a idade do interlocutor. :-)

Arqueologia do KKKKKKKKKK

Tendência ou não, o "KKKKKKKK" não é novo. Aliás, é velhíssimo. Essa gargalhada - que quando lidavoz alta, deve soar como um gostoso "kakakakaka" - é usada pelo brasileiro há pelo menos 150 anos. Mas era algo mais para os vagarosos "cá cá cá", "quiá quiá quiá" ou "quá quá quá".

Temos algumas evidências disso.

A primeira estáTil, romance regionalistaJoséAlencar (1829-1877) publicado1872 que se passauma fazenda no interiorSão Paulo. O livro conta a históriaBerta, uma menina acolhida pela viúva Nhá Tudinha.

Em um trecho, Nhá Tudinha aparece "debulhando-seuma risada gostosa". "Não fazia a menina um trejeito, nem dizia uma facécia, que a viúva não se desfizessegargalhadas."

"— Ai, menina!... Quiá!... quiá!... quiá!... Já se viu, que ladroninha?...", diz um trecho.

Trechoromance "Til",JoséAlencar,1872

Crédito, Reprodução

Legenda da foto, Trechoromance "Til",JoséAlencar,1872, tem personagem rindo "quiá, quiá, "quiá"

Uma rápida busca no acervojornais mostra a gargalhada na "Secção Livre", onde eram publicados comentários, discussões religiosas ou políticas e casos pessoaisA ProvínciaSão Paulo, jornal que antecedeu o EstadoS. Paulo. O texto é do dia 20fevereiro1884:

"O miótudo nhô dotô é mecê se calá e não buli n'essas vergonha (...) Quiá, quiá, quiá, cá, cá, cá!!!", diz o comentário que faz troçaum caso polêmico com uma advogado no interior paulista.

No mesmo ano, MachadoAssis (1839-1908) registrava o riso "cá cá cá" no conto A Segunda Vida: "Então, o Diabo, escancarando uma formidável gargalhada: 'José Maria, são os teus vinte anos.' Era uma gargalhada assim: — cá, cá, cá, cá, cá... José Maria ria à solta, riaum modo estridente e diabólico."

Monteiro Lobato (1882-1948) também colocou a onomatopeia na bocapersonagensdois contosUrupês. O livro,1918, é notório por ter dado origem ao icônico Jeca Tatu.

"Toda gente gozou do caso, entre espirrosriso e galhofa", diz um trecho do conto Um Suplício Moderno, sobre o personagem Izé Biriba, um pobre estafeta (espéciecarteiro), que fazia correspondência entre cidades não conectadas por ferrovia. Biriba se lamenta por haver transportado um bode para só depois descobrir que era para um inimigo seu, e é alvorisos. "Trazer o bode da oposição! Quiá! quiá! quiá!", ele ouveinterlocutores.

Na Folha da Manhã, uma crônica chamada Um Homem que Ri, publicada1926, diz o seguinte: "Quem foi o tolo que afirmou que a humanidade deve meditar e crer, chorar e sonhar? Que patetice é essa,pleno século XX? A humanidade só deve rir. A vida, no fundo, não passauma grossa piada. Quá, quá quá!"

Propaganda do tônico Vanadiol,1927, no O EstadoS. Paulo

Crédito, Reprodução

Legenda da foto, Propaganda do tônico Vanadiol,1927,O EstadoS. Paulo

Ok, já deu para entender. O "quá quá quá" era a maneira correnteexpressar riso.

E um dos espaços onde estava presente é terreno fértil para onomatopeias no Brasil e no mundo: as históriasquadrinho.

Pow, crash, bang

"Os quadrinhos têm o visual e o textual ao mesmo tempo. Como há uma tentativarepresentar a fala, trazem gargalhadas, variantes, gírias, expressões do cotidiano e erros do pontovista da gramática. É escrito, mas ao mesmo tempo, representa a fala", explica Nataniel Gomes, professorlinguística da Universidade EstadualMato GrossoSul (UEMS) e líder do núcleopesquisaquadrinhos da instituição (NuPeQ).

E a internet tem essas mesmas características da linguagemquadrinhos. "Online, você tem uma rapidez muito grande para escrever, então a tendência é escrever mais ou menos como se fala, como nos quadrinhos."

As HQs são repletasonomatopeias (pense no "pow", "crash", "bang" do Batman), e as risadas online são justamente isso, onomatopeias - uma tentativareproduzir som e ruídos usando letras ou palavras. E elas se popularizaram a partir do momentoque os quadrinhos passam a ganhar balõesfala (literalmente aqueles balõezinhos onde ficam os diálogos) no início do século 20, diz Gomes.

É assim que o "quá quá quá", já presente pelo menosalguns textos, como vimos acima, começa a se popularizarfato no Brasil nos anos 1960 e 1970, sugere o jornalista e pesquisadorhistóriasquadrinhos Gonçalo Junior. Isso porque foi nessa época que os gibis da Disney, traduzidos para o português, foram publicados no Brasil. E neles havia um importante personagem que ria "quá quá quá".

Pato Donald

Em 1931, o famoso Mickey Mouse ganha um amigo: Pato Donald, uma criaçãoWalt Disney. Na década seguinte, essa criação se desdobrariatodo um maravilhoso universopatos criados pelo talentoso ilustrador Carl Barks.

Seus quadrinhos dão origem a Patópolis, no Estado fictícioCalisota (uma junçãoCalifórnia com Minnesota), onde viviam Pato Donald, o sovina tio Patinhas, o primo sortudo Gastão, os Irmãos Metralha, os sobrinhos trigêmeos Huguinho, Zezinho e Luisinho, entre outros.

Em inglês, esses patos riem apenas "ha ha ha". E havia também o "quack", a típica onomatopeia para o grasnarpato na língua inglesa que nos gibis americanos representava espanto, equivalente a um "uau" ou "puxa"português.

Na tradução para português, você já imagina: "ha ha ha" virou "quá quá quá".

"A gente puxou a risada para o quá quá quá, que é muito divertido, que é ao mesmo tempo o som do pato e o som da risada", diverte-se Marcelo Alencar, jornalista, editor e tradutorquadrinhos Disney.

"O quá quá quá era um jeito 'patoso'adaptar o 'quiá, quiá, quiá' dos nossos velhinhos, aquela proto gargalhada."

Ou seja, naquele mundo dos patos, que chegaram a vender 200 mil exemplares por edição nos anos 1970 e 1980 no Brasil, segundo Alencar, todos riam "quá quá quá".

Pato Donald rindo "quá, quá, quá"

Crédito, Reprodução

Legenda da foto, Pato Donald, traduzido no Brasil nos anos 1950 e extremamente popular nas décadas seguintes, ria "quá, quá, quá"

"O quá quá quá acabou pegando por causa disso, é aquela risada que você não segura, dá vontaderir alto. Que é o mesmo som do kkkk", afirma.

E pegou mesmo.

Nas décadas seguintes, textosjornais são repletos"quá quá quá", principalmente os humorísticos.

Elis Regina gargalha e canta "quaquaraquaqua, quem riu?, quaquaquaraquaqua, fui eu"Vou Deitar e Rolar (Qua Qua Ra Qua Qua) composta por Baden Powell e Paulo César Pinheiro1970.

O "quá quá quá" ainda resiste e aparece forte nos anos 1980, 1990 e no início dos anos 2000.

E é bem aí, no final dos anos 1990 para a virada do século, quando o "quá quá quá" começa a desaparecer, que o "kkkkk" dá as caras. Na internet, claro.

Especialistaredes sociais e professora da Universidade FederalPelotas (UFPEL), Raquel Recuero lembra que, nos anos 1990, as onomatopeiasriso tinham "o estilo dos quadrinhos como hahaah ou hahahHAHAHAHAahaha ou HCIAUHRIUEHIUEHFIUHEIUFHAIUHIUEF (digitando várias letras com hahhahaha)". "E bem no início, muita gente usava o RS RS RS", lembra ela.

"O kkkk começou a aparecer mais depois", no início dos 2000.

E como ocorre o pulo entre "quá quá quá" e "kkkkk"?

"No chat, escrevemos com muita rapidez, comemos acento, reduzimos tudo o que podemos para ganhar tempo", observa Gomes, da UEMS. Se um k representa um quá, por que não?

"Qual é mais fácil ou mais rápido: escrever q-u-a, q-u-a, q-u-a, ainda com acento, ou escrever só kkkk? É só botar o dedo que a letra corre", diz Gonçalo Junior.

Comentário do dia 20fevereiro1884, no jornal “A ProvínciaSão Paulo”, na “Secção Livre”

Crédito, Reprodução

Legenda da foto, Comentário do dia 20fevereiro1884, no jornal "A ProvínciaSão Paulo", na "Secção Livre"

Naquela época, o kkkk surgiu primeiro como risada normal entre os adultos que a adotaram.

Nos anos seguintes, parte dos jovens, no entanto, passou a considerar essa risada cringe (ou constrangedora).

Mas logo se apropriou dela, passando a fazer um uso irônico. E, bem, isso acabou naturalizando o "kkkkkk", que hoje, com mais20 anos, já completa um ciclo e não é mais visto necessariamente com ironia.

Ascensão e quedaum emoji

Corta para os adolescentesagora,2021. Rir só "kkkkkkkk", para eles, não é o suficiente, e pode ofender o interlocutor por ser "sutil" demais. Para demonstrar riso mesmo, gargalhada, e não ironia, tem que ser "KKKKKKKKKKKK",caixa alta.

E nunca, jamais, o emoji "Face with Tears of Joy" (😂), conhecido informalmente como laughing crying emoji (emoji chorandorir). Esse é totalmente cringe e entroudesuso entre os adolescentes.

Aqui, uma curiosidade: os emojis, diz o jornalista Gonçalo Junior, também têm origem nos quadrinhos. São praticamente "rostoquadrinhos", afirma. "As expressõesraiva,olho fechado, piscadela, a sobrancelha levantada... Isso tudo foi desenvolvido para representar expressõessentimento nos gibis", diz ele.

Voltando ao emoji chorandorir: essa expressão se tornou seu próprio algoz. Ela foi a mais popular no Twitter entre todos os emojis durante vários anos monitorados pelo Emojipedia, um site que documenta o significadoemojis. Mas atingiu seu picojunho2019, e desde então vinha caindo lentamentepopularidade.

"O emoji virou o novo 'rs'. Foi tão onipresente, espalhado por todas as partes, que perdeu o sentido e saiumoda", diz à BBC News Brasil Keith Broni, pesquisador e tradutoremojis do Emojipedia. "Ele perdeu seu poder como uma expressão emocional genuína." E, assim, a geração Z decidiu que seus dias estavam contados.

"Em março2021, pela primeira vez,anos e anosusoemojis na cultura ocidental, o chorandorir ficou fora do pódio", diz Broni.

E quem subiu para ocupar seu lugar foi o loudly crying face emoji 😭, o chorando alto.

Emoji chorandorir foi destronado pelo emoji chorando alto

Crédito, Emojipedia/Divulgação

Legenda da foto, Emoji chorandorir foi destronado pelo emoji chorando alto segundo levantamento do Emojipedia

Claro, porque há maisum ano vivemos uma pandemia e estamos todos muito tristes, não?

Não.

Surpreendentemente (ao menos para os velhos não geração Z), o choro alto se tornou a nova gargalhada.

"O emojichoro alto, com cachoeiraslágrimas, está sendo usado não porque as pessoas estão tristes, mas porque passou a representar a risada", diz Broni. A geração Z adotou esse emoji para expressar algo positivo - fazendo uso, novamente, do drama exacerbado. É o equivalente à caixa alta no KKKKKKK.

Enquanto isso, se for usado pelos Z, o emoji chorandorir tem mais um tomironia.

Há outra alternativa - esta, surgidacomentários no TikTok. O emoji da caveira 💀 virou uma versão visual da expressão "estou morto" ou "morri", dito quando algo é muito engraçado. Basicamente, a geração Z se apropriou do emoji e lhe deu um novo significado.

"Eles usam emojismaneira mais frívola e irônica, para definirgeração e separá-la da que veio antes", diz o pesquisadoremojis.

Entre o quá quá quá, os subsequentes kkkkk e KKKKK e a ascensão e quedaemojis, o que estamos vendo, simplesmente, é a "velha passagem da tocha entre gerações", segundo Broni.

"O que é legal para uma geração não é legal para a próxima, e isso é natural."

Pelo menos, estamos todos rindo.

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