O estigma enfrentado nas periferias pelas pessoas com depressão: 'Pobre não pode se dar ao luxonão sair da cama':

Andressa

Crédito, Carol Rocha/Agência Énois

Legenda da foto, Andressa já ouviu quedepressão era 'frescura' e que bastava orar para resolver o problema

Para Teng, dados mais recentes a respeito seriam "importantíssimos para buscar políticas públicas mais efetivas (no combate à depressão)".

'Você está aplaudindo, eu estou me matando'

Em 2017, o rapper baiano Diogo Moncorvo, o Baco Exu do Blues, tinha tudo para estar vivendo o melhor momentosua vida. O músico acumulava milhõesvisualizaçõesseus clipes no YouTube. Seu álbum, Esú, foi elogiado pela crítica e lançou os holofotes para o rap criado fora do eixo Rio-São Paulo.

Mas uma das faixas do álbum já mostrava que Baco estava sofrendo. "O álcool está me matando/Minha raiva está me matando/Sua expectativamim está me matando/Homem não chora/Foda-se, eu tô chorando!/ (...) /Isso é um pedidosocorro/Você está aplaudindo/Eu tô me matando".

Baco estava com depressão.

Baco

Crédito, Carol Rocha/Agência Énois

Legenda da foto, Rapper Baco falou sobre a depressão emmúsica: 'Isso é um pedidosocorro/Você está aplaudindo/Eu tô me matando'

"Eu acho que o negro, rico ou periférico, é condicionado à depressão devido à históriavida dele sabe? Porque ele sempre é deixadolado, sofre preconceito. Isso tudo abala o seu bem-estar,autoconfiança, suas vontades. Se você deixar isso te afetar, você entra numa psicose maluca e não consegue sair dela", afirma o rapper Baco, que moraSalvador e cujo público, na Bahia, é composto principalmente por jovensperiferia.

Emtesemestrado, defendida na Universidade EstadualFeiraSantana (BA), a pesquisadora americana Jenny Rose Smolen propõe uma revisão na relação entre raça e transtornos mentais no Brasil.

Analisando 14 pesquisas sobre transtornos mentais, ela chegou à conclusãoque não brancos têm mais tendência a sofrer com doenças como depressão. Segundo Smolen, esse problema não está ligado a fatores genéticos.

Uma pista para explicar a questão pode ser encontradaoutro estudo, da Universidade do Texas, que, analisando pessoas negras dos EUA, concluiu que sofrer discriminação diária impacta na saúde mental das pessoas.

Existe também o impacto bioquímico, diz a especialistapsicologia social e escritora Gabriela Moura.

bairro pobre

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Vivendo na periferia, muitas pessoas 'não podem se dar ao luxonão levantar da cama' porque têm depressão

"Quando você se vê dianteum perigo, o seu nívelcortisol aumenta. Só que o nosso corpo foi feito para que isso aconteça num períodocinco, dez minutos, que é o tempovocê entrarestadoalerta e fugir do perigo. Em uma situaçãopreconceito,violência social, a gente se vê nessa situação o tempo todo, então, o indivíduo passa 24 horasestadoalerta, não sabendo se ele vai ser bem recebido, não sabendo se ele vai sofrer violência policial, violência urbana, e isso a médio ou longo prazo causa uma extrema fadiga no corpo e na mente."

Para completar, há indicativosque negros tenham acesso mais restrito a tratamentos médicos e a planossaúde privados, o que força a maioria a recorrer ao sistema público.

Segundo a Pesquisa NacionalSaúde (PNS), divulgada2015 e abrangendo os setores público e privado, 74,8% dos brancos tinham consultado um médico nos últimos 12 meses, contra 69,5% dos pretos e 67,8% dos pardos. Só 21,6% dos pretos e 18,7% dos pardos tinham planosaúde, contra 37,9% dos brancos.

Resta à imensa maioria o atendimento gratuito do SUS.

"A periferia está exposta a uma vulnerabilidade social, né? Devido a todo um históricoescravidão,uma dificuldade maior (em relação) às possibilidadesestudo,trabalho formal,violência policial, isso está presente", diz à reportagem um psicólogouma Unidade BásicaSaúde (UBS), localizada na periferiaSão Paulo, que pediu anonimato. "Até nos equipamentossaúde, às vezes, existe uma dificuldadeencontrar um acolhimento, um reconhecimento na questão do racismo."

Gabriela Moura conclui: "Para a gente conseguir alcançar essas camadas a gente tem que repensar como esse atendimento está sendo feito, a pontoessas pessoas não evitarem e não negligenciarem aprópria saúde."

Limitações no atendimento

A psiquiatra Laura Helena Andrade, coordenadora do NúcleoEpidemiologia Psiquiátrica, do Hospital das Clínicas da FaculdadeMedicina da USP, foi uma das responsáveis pela São Paulo Megacity Mental Health Survey, uma ampla pesquisa sobre saúde mental realizada na Grande São Paulo e divulgada2012.

Andrade explica que uma pesquisa dessas (realizada entre 2005 e 2007), com mais5 mil entrevistadossessões ao vivo, com até quatro horasentrevista, é complexa e leva muito tempo para ser realizada, tabulada e ter seus resultados divulgados. Esse seria um dos motivos da faltadados mais recentes sobre o tema.

Lucia Figueiredo

Crédito, Carol Rocha/Agência Énois

Legenda da foto, Lucia sofreu com a depressão por contaproblemassaúde e mortes na família

Andrade vê com ressalvas as conclusões da pesquisa do Ibopeque a pobreza seria determinante para uma maior tendência à depressão e aponta que casostranstornos mentais são encontradostodas as classes sociais.

Mesmo assim, dados levantados pela São Paulo Megacity apontaram alguns efeitos da pobreza na saúde mental do paulistano, como uma maior incidênciatranstornosansiedadepessoas com baixa escolaridade etranstornos psiquiátricos relacionados ao abusodrogas (incluindo álcool)pessoas que moramvizinhanças com maior nívelprivação social.

A exposição a situaçõesviolência também aparece como um gatilho para transtornos mentais nos dados da pesquisa.

De acordo com a OMS, entre 2005 e 2015, o númeropacientes com depressão aumentou 18,4%.

Apesar da existênciatratamentos, poucas pessoas – menos10% dos casos – recebem ajuda médica.

Demora para ser atendido pelo SUS

Lucia Figueiredo tem 59 anos e é moradora do Jardim Brasil, zona norteSão Paulo. Ela diz queprimeira experiência com a depressão foi há 26 anos, quando sofreu um aborto espontâneo, mas o problema acabou se intensificando quando teve hipotireoidismo e uma sériemortes ocorreram emfamília.

"Não tocava mais piano, não participava mais das coisas que sempre me faziam bem. E três meses depois que perdi meu irmão e cunhado, perdi minha mãe. (Aí se) intensificaram os sintomas. Então, tive que buscar ajuda médica", conta. No entanto, levou nove meses para conseguir tratamento na rede públicaSão Paulo.

"O problema do SUS é (que) a partir do momento que a pessoa entra no sistema para uma consulta, até conseguir chegar a um psiquiatra, demora bastante", diz Lucia. "O problema não é o profissional, nem o atendimento psicológico, mas a distânciaquando se detecta o problema até chegar na possibilidadeser atendido."

Antidepressivo

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, SUS não 'dispõe da mesma gamamedicação do mercado'

Kelly Pereira,22 anos, sofredepressão desde a adolescência, eexperiência com o SUS não foi positiva. Além da dificuldadediagnóstico, ela penou com a distribuição irregularantidepressivos.

"Se não houver uma boa adaptação com o remédio, não tem o que fazer, geralmente só tem uma única opção", diz a moradora da periferiaSanto André, Grande São Paulo.

Em nota, a PrefeituraSanto André declarou que a "Relação MunicipalMedicamentos (REMUME) não dispõeapenas uma opção para tratamento - na verdade estão listadas 6 opções (Sertralina 50 mg, Fluoxetina 20 mg, Amitriptilina 25 mg, Imipramina 25 mg, Clomipramina 25 mg e Nortriptilina 25 MG), sempre pensandoalternativas que atendam as prescrições pelo princípio ativo do medicamento".

A REMUME segue a lista da Relação NacionalMedicamentos Essenciais (RENAME), que define os medicamentos disponíveis no Sistema ÚnicoSaúde e é elaborada pelo Ministério da Saúde.

Mas essas opções são suficientes? Para o psiquiatra Alexandre Valverde, pós-graduado pela UniversidadeParis-1 Panthéon-Sorbonne, que trabalhou por anos no CAPS Itapeva,São Paulo, e também com criançassituaçãovulnerabilidade no Projeto Quixote, a resposta é "não".

"Infelizmente (no SUS) não dispomostoda a gamamedicações do mercado. Pode-se fazer muita coisa já com essas (seis) opçõesantidepressivos, mas muitas vezes ao custoefeitos colaterais e uma resposta insuficiente. A questão é quebairros periféricos, faltam até esses medicamentos da listagem do SUS."

O psicólogo da UBS consultado pela reportagem concorda com Valverde e lembra que já viu faltaremunidades do CAPS, na cidadeSão Paulo, antipsicóticos, que são medicamentos usadoscasosesquizofrenia, e sem os quais o paciente pode ter surtosalucinações.

Segundo a PrefeituraSanto André, os seis tiposantidepressivos listados acima não estãofalta nos CAPS e nos CentrosEspecialidades da cidade.

Atendimento médico

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, 'Até nos equipamentossaúde, às vezes, existe uma dificuldadeencontrar um acolhimento, um reconhecimento na questão do racismo', diz funcionárioUBS

Alexandre Valverde levanta, ainda, a questão da eficácia dos genéricos que são disponibilizados no SUS. "Alguns deles têm um efeito muito abaixo do esperadorelação à medicaçãoreferência. Tínhamosprescrever, por vezes, doses três a quatro vezes maiores que as habituais para conseguirmos a resposta terapêutica."

'Frescura'

O tabucima das doenças psicológicas acontecetodas as classes sociais, mas na periferia percebe-se uma faltaconhecimento do assunto.

"Existe um clichê na mente das pessoas que quem tem doença psicológica não é são, não tem equilíbrio. Por isso demorei tanto para assumir que estava doente" diz o rapper baiano Baco.

"Isso é um sofrimento muito individualizado e muitas vezes estigmatizado pela faltainformação ecirculação sobre aquilo", agrega o psicólogo da UBS.

A visão da depressão como "frescura", como algo ao qual o pobre não tem direito, foi muito citada pelos entrevistados ouvidos pela reportagem.

"Na periferia, as pessoas estão na correria o tempo todo, buscando sobreviver, tendo que trabalhar muitas horas por dia, passar muitas horas no transporte público. Acaba que, às vezes, ela precisa escolher onde ela vai depositar a energia e o tempo dela, se é buscando tratamento para uma doença que é pouco falada, pouco explorada ou se é buscando uma sobrevivência ganhando um salário irrisório, mas que pelo menos garanta uma subsistência", diz Gabriela Moura.

Para Kelly, cujo pai também sofreudepressão, uma pessoa pobre não poderia se dar ao luxo da doença.

"Vi meu pai se matar todos os dias para sustentar nossa família,segunda a segunda, saindo às quatro da manhã e chegando à noite. Sem folga, sem férias, sem nada. Meus vizinhos passando fome, muitos com vários filhos sem ter condiçõescriar, morandobarracosmadeira praticamente dentro do córrego, eu olhava pra eles e pensava: eles não têm depressão, eles não podem ficar doentes, senão morremfome. Não podem se dar ao luxonão levantar da cama."

* O CentroValorização da Vida (CVV) dá apoio emocional e preventivo ao suicídio. Se você estábuscaajuda, ligue para 188 (número gratuito) ou acesse www.cvv.org.br.