Imunidade coletiva, bolhasproteção ou distanciamento? O que explica queda da pandemiaManaus a Estocolmo:
A segunda hipótese tem gerado debate entre pesquisadores no Brasil: imunidade coletiva (ou “de rebanho”). Segundo essa visão, algumas cidades brasileiras atingiram um patamarpessoas infectadas alto o suficiente (e bem menor do que se estimava) para que o vírus tivesse dificuldade para encontrar a quem infectar. A partir daí, a epidemia teria perdido forçaManaus ou São Paulo, por exemplo.
Esse conceitoimunidade coletiva, associado à estratégiavacinação, explicaria porque não é necessário imunizar 100% da população para conter o espalhamentouma doença. Em alguns casos, vacinar 80% já surtiria o efeito esperado porque derruba a probabilidadeuma pessoa infectada contaminar alguém suscetível. No caso da covid-19, há quem fale que isso acontece quando um terço da população foi infectada, metade do patamar estimado pela maioria dos pesquisadores,mais60% (leia mais abaixo).
Mas se a parcela da população com anticorpos contra o coronavírus não passa8%Manaus e12%São Paulo, segundo estudosâmbito nacional e municipal, como essas e outras cidades teriam atingido uma imunidade coletiva na pandemia atual?
Para o físico Domingos Alves, do LaboratórioInteligênciaSaúde da FaculdadeMedicina da USPRibeirão Preto, aventar essa hipóteseimunidaderebanho é perigoso e antiético por diversos motivos, principalmente por faltaevidências científicas e pelo riscofundamentar medidasgovernantes contra o distanciamento social, como se o pior da pandemia já tivesse quase passado, o que poderia estimular a circulação do vírus e aumentar o númeromortes.
Segundo projeções, mais1 milhãobrasileiros morreriam até o país atingir a imunidaderebanho, e mesmo assim o vírus ainda circularia e não se sabe por quanto tempo as pessoas ficam imunes a ele.
“É igual à defesa da cloroquina. Se constrói argumentosveracidade sem evidência. Eum país onde existe um negacionismo violento, isso é até perigoso. O Brasil não achatou a curva e governantes estão tentando falsificar a ideiacontrole da epidemia. Somos um dos únicos países do mundo que adotaram medidasreabertura com o númerocasos e óbitos crescendo.”
Segundo ele, é questãotempo até novas ondasinfecções e mortescidades que atualmente registram quedas nesses índices.
Por fim, a terceira possível explicação para o recuo da pandemiaalgumas cidades brasileiras passa por bolhasproteção, que, a grosso modo, incorpora as hipótesesdistanciamento social e imunidade coletiva.
Nesta visão, a doença tem dificuldadecircular porque parcelas da população são expostas inicialmente ao vírus, masgeral não convivem tanto com outros grupos sociais que não foram expostos. Assim, surgem “bolhas”que distanciamento e imunidade coletiva surtem efeito a ponto“confinar” o espalhamento do coronavírus.
Mas isso varia muitouma região para outra das cidades. Quanto mais adensadas e precárias as condiçõesvidaum bairro, mais vulneráveis serão os moradores dele. Segundo estudos do grupopesquisadores Ação Covid-19, esse equilíbrio é tão instável que o contato com pessoas doentesoutros bairros ou cidades pode, por exemplo, estourar essas bolhasproteção e resultarnovas ondasinfecção.
Por que imunidade coletiva desperta tanto debate?
Esse conceitoimunidadegrupo gera controvérsia desde o início da pandemia. Inicialmente, o debate giravatorno da possibilidadeorientar estratégias dos países contra a doença.
Seria possível um país deixaradotar quarentenas até que a população atingisse o patamarimunidade coletiva necessário para conter o vírus? O Reino Unido cogitou seguir essa linha, mas as projeçõesque isso levaria a milharesmortes fizeram o governo recuar. A Suécia segue mais ou menos nessa vertente.
Um ponto central no debate atual sobre imunidade coletiva envolve lugares onde os casos caíram sem quarentenas e poderiam estar mais “protegidos” contra novas ondasdoenças, como a Suécia.
Qual foi o resultado da estratégia sueca? Até agora,comparação aos vizinhos nórdicos, a Suécia teve até sete vezes mais mortes e o declínio econômico foi equivalente aoquem fechou comércios e escolas (já que habitantes evitaram circular nas ruas).
Mas o númeromortes tem caído no país, algo que reacende o debate sobre imunidade coletiva. O país nórdico teria atingido o patamar, que seria muito menor do que se estima? Há menos pessoas suscetíveis do que se imagina, já que há outras defesas do corpo que podem combater o coronavírus além dos anticorpos, como as células T (leia mais abaixo)?
Em geral, calcula-se o patamar hipotético para conter a circulação do vírus a partir do númeropessoas que podem ser contaminadas por alguém com a doença. No caso da covid-19, estima-se que 10 infectados têm o potencialtransmitir o vírus para cerca25 pessoas.
Pesquisadores consideram que, no caso da covid-19, o patamar épelo menos 60% da população. Em linhas gerais, sem ponderar a vulnerabilidadecada faixa etária, isso representaria pelo menos 127 milhõesbrasileiros infectados e 1,3 milhãomortos, sem contar o impacto da faltaleitos hospitalares e as sequelaspacientes recuperados, que relatam fadiga e faltaar meses depois da infecção.
Esse patamarpelo menos 60% não é igual para todos os habitantes. Varia conforme o país, a faixa etária, a adesão ao distanciamento e a condição socioeconômica, por exemplo.
O debate ganhou força com númerosum estudo publicado na revista Science sobre o tema, considerando essa heterogeneidadesuscetibilidadeuma população.
Segundo pesquisadores da UniversidadeEstocolmo, na Suécia, e da UniversidadeNottingham, no Reino Unido, esse patamar pode ser43% ou até mesmo 34%, se a taxacontágio da covid-19 for menor do que se imagina (em média, 10 infectados contaminariam 20 pessoasvez25).
Mas os editores da própria Science publicaram uma cartaque afirmam que mesmo que a previsão mais otimista43% esteja correta, não há nenhum estudo que aponte que qualquer país esteja próximo da imunidade coletiva. “A continuidadeintervenções não farmacêuticas (como distanciamento social) ao redor do mundo ainda égrande importância.” Enfim, novas ondasinfecção não estão descartadas.
Bolhasproteção podem explicar a quedaManaus e São Paulo?
O debate sobre imunidade coletiva no Brasil se concentra principalmente sobre o que está acontecendoManaus e São Paulo. Como a pandemia pode recuar se não há gente suficiente com anticorpos e se muitos não aderem ao distanciamento social?
Hoje, a Organização Mundial da Saúde (OMS) trabalha com uma taxaprevalênciaanticorposcerca14% da população da capital do Amazonas e pouco mais3%São Paulo. Segundo o biológo Fernando Reinach, um estudo na cidadeSão Paulo apontou que regiões mais pobres da capital paulista registravam 16%infectadosjunho.
"Em Manaus, o númerocasos subiu rapidamente, não foram adotadas medidas drásticasisolamento social, os mortos foram enterradosvalas comuns no pico, e logoseguida o númerocasos diminuiu. Qual a causa dessa rápida queda do númeroinfectadosManaus? Teria a cidade atingido a imunidaderebanho? Um modelo matemático demonstra que isso pode ter ocorrido, e talvez esteja ocorrendocidades como São Paulo", escreveu Reinach emcoluna no jornal O EstadoS. Paulo no sábado.
(Estudos do projeto Monitoramento Covid-19, do qual Reinach é membro, apontaram que no fimjunho 11% da população da cidadeSão Paulo tinha anticorpos contra covid-19. A taxa entre pessoas que não concluíram o ensino fundamental era 23%, ante os 5% entre aqueles com diploma universitário.)
A física Patricia Magalhães, pesquisadora da UniversidadeBristol, no Reino Unido, e seus colegas do grupocientistas Ação Covid-19 apontam outra hipótese para a queda do contágioSão Paulo: um fenômeno conhecido como bolhaproteção.
Essa hipótese é calculada por meioum modelo matemático multiagente, que simula a interação das pessoas na pandemia da vida real. Nele, o espalhamento da doençauma localidade é estimado a partir dos contatos pessoais dentroum espaço delimitado (como um bairro, por exemplo).
As “pessoas” são colocadas dentro desta grade e se movem independente e aleatoriamente ao longo do tempo. Quando elas se encontram nesse cenário hipotético, mas não estão infectadas, seguem o rumo. Quando uma delas está infectada, pode passar a doença para a outra.
Com o tempo, o distanciamento (pessoas paradas ou transitando menos) e a imunização crescente reduzem as possibilidadestransmissão do vírusuma pessoa para outra dentrouma bolha.
Mas a transmissão não é igualtodos os bairrosuma cidade, e depende da vulnerabilidade dessas pessoas à contaminação onde elas vivem.
Para traduzir issonúmeros, Patricia Magalhães e o colega economista José Paulo Guedes Pinto, da Universidade Federal do ABC (UFABC), inserem nos cálculos o IDH (índicedesenvolvimento humano) ou o ÍndiceProteção Covid-19 (IPC19), criado pelo grupo Ação Covid-19. Este indicador levaconta fatores socioeconômicos para definir quão protegidas ou desprotegidas estão as pessoasdiferentes classes. Númeromoradores na mesma casa, saneamento básico, densidade demográfica, renda familiar, raça ou corpele.
Além das condições sociais, há outros três grandes parâmetros usados nesses cálculos: 1. a quantidadepessoas que adere ao distanciamento social; 2. a densidade demográficacada região; 3. o númeropessoas que desenvolveram anticorpos. Quem quiser pode fazer as simulações neste link aqui e ler o estudoMagalhães e Pinto aqui.
“O nosso modelo mostrou que a taxacontaminação na cidadeSão Paulo está caindo. E fomos surpreendidos por esse resultado. Ao tentar entendê-lo a fundo, observamos que as pessoas tendem a contaminar mais seu entorno, onde as pessoas ao seu redor não são mais suscetíveis, ou porque estão isoladas ou porque já tiveram a doença. Isso leva a uma redução da propagação da doença”, afirmou Magalhães à BBC News Brasil. O mesmo pode estar acontecendoManaus.
A cientista ressalta, no entanto, que esse equilíbrio é frágil porque o vírus não deixacircular e não se sabe exatamente onde regiões das cidades vivem essa situação porque há poucos testescovid-19 para identificar quem está infectado e quem já produziu anticorpos.
Como essas bolhas não são isoladas, no momentoque o distanciamento social cai ou uma pessoa infectadaoutro bairro ou município adentra uma área“equilíbrio instável”, a doença pode voltar a se espalhar com força novamente.
Vale lembrar que o númeroinfecções tem caído nas capitaisSão Paulo e do Amazonas, mas crescido nas cidade do interior desses Estados.
O que são as células T e por que são associadas à quedamortes na Suécia?
Imunidade é o conjuntomecanismos do corpo que nos protegeminfecções. É uma complexa redecélulas, órgãos e tecidos que trabalham juntos para se defender contra microrganismos e substâncias tóxicas que podem nos deixar doentes.
Existem dois tiposimunidade: a inata (ou natural) e a adaptativa.
A primeira está sempre pronta para agir quando qualquer invasor é detectado no corpo. Ela inclui a liberaçãosubstâncias químicas que causam inflamação e células brancas capazesdestruir células infectadas. Mas esse sistema não é específico para o coronavírus. Ele não irá aprender e tampouco lhe dará imunidade contra a covid-19.
A segunda, a resposta adaptativa, é divididadois ramos: imunidade derivadaanticorpos, também denominada imunidade humoral, e imunidade celular exercida por células chamadas linfócitos T (ou células T), conhecida como resposta celular. Esta pode atacar apenas as células infectadas com o vírus, por exemplo.
E o que isso tem a ver com o debate sobre imunidade coletiva, bolhasproteção e distanciamento social?
O caso da Suécia pode ser ilustrativo para explicar essa relação. O país nórdico, como dito anteriormente, decidiu não adotar medidas durasrestrição à circulaçãopessoas como formacombater a covid-19.
Em relação aos países vizinhos, a médiamortes por 1 milhãohabitantes na Súecia por covid-19 chegou a ser quatro vezes a da Finlândia e sete vezes a da Noruega. Desde meadosmaio, nenhum país da região passa15 novos casos diários por 1 milhãohabitantes, exceto a Suécia, atualmente com 40.
Mas a doença não se espalhouforma descontroladaterritório sueco, com hospitais lotados e milharesmortos. O númeroinfecções e mortesterritório sueco tem caído.
A principal explicação é que, mesmo sem quarentenas ou lojas fechadas, a maioria da população circulou menos na rua. Dadoscelulares coletados pela Apple e pelo Google apontam isso, por exemplo.
Mas o debate sobre o recuo da pandemia na Suécia passa também pelo impacto da quantidadepessoas imunes. No fimabril, pico da doença na Suécia, estudos oficiais apontavam que apenas 7,3% da população na regiãoEstocolmo haviam produzido anticorpos contra a doença.
Por outro lado, um estudo liderado pelo instituto sueco Karolinksa apontou que pessoas que testaram negativo para anticorpos contra o coronavírus ainda podem ter alguma imunidade.
Para cada pessoa que testou positivo para anticorpos, o estudo encontrou duas que tinham células T específicas que identificam e atacam células infectadas pelo Sars-CoV-2. Ou seja, a quantidadepessoas imunes ao novo coronavírus pode ser muito maior do que apontam os estudos que quantificam pessoas com anticorpos.
Essa presença das células T foi observada tambémpessoas que tiveram casos leves ou sem sintomascovid-19. Mas ainda não está claro se isso apenas protege esse indivíduo ou se também pode impedi-lotransmitir a infecção a outras pessoas.
Uma característica particular do segundo tipoimunidade do corpo humano, o adaptativo, é que ele deixa memória. Mas o novo coronavírus, Sars-CoV-2, não é conhecido há tempo suficiente para se saber o quanto dura essa memóriaimunidade contra ele.
Há relatos preliminarespessoas que parecem ter sido infectadas maisuma vez pelo novo coronavírusum período curtotempo. Mas o consenso científico éque a questão eram os testes, com os pacientes sendo incorretamente informadosque estavam livres do vírus.
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