Navios portugueses e brasileiros fizeram mais9 mil viagens com africanos escravizados:
Polêmica sobre a participaçãoPortugal na escravidão africana
A históriaPortugal na África e seu papel na escravidão entrou na pauta política brasileira depois que o candidato à Presidência Jair Bolsonaro declarou que "o português nem pisava na África" e responsabilizou os próprios africanos pela escravidão,entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. A afirmação ocorreu após uma pergunta sobre cotas raciais.
"A ideiaque os portugueses nunca estiveram na África é completamente falsa. Na verdade, foram os portugueses que abriram a África para o mundo Atlântico (Europa e América)", afirma Christopher DeCorse, professorantropologia da UniversidadeSyracuse, nos Estados Unidos, e autorlivros sobre o CasteloSão Jorge da Mina e o tráficoescravos.
"Os portugueses são os primeiros a iniciar o comércioescravos no Atlântico. Durante algumas décadas, são praticamente só eles que fazem esse tipocomércio. Não é propriamente um pioneirismo honroso, mas é um fato", completa o historiador Arlindo Manuel Caldeira, pesquisador da FaculdadeCiências Sociais e Humanas da Universidade NovaLisboa e autor do livro Escravos e Traficantes no Império Português.
Por outro lado, é fato que algumas sociedades africanas tiveram participação fundamental no tráficoescravos, capturando outros povos e os vendendo conforme a demanda dos europeus. No entanto, historiadores ressaltam que foi a pressão dos europeus por escravos que exacerbou o tráfico interno africano.
"Apesaruma elite africana ter se beneficiado diretamente do comércioescravos, não há dúvidasque, sem a pressão dos europeus, a escravidão na África teria uma dimensão imensamente menor. Foi o estímulo europeu que levou a um crescimento exponencial da escravidão", contrapõe Arlindo.
Além disso, independentementequem foram os culpados pela escravidão, não há dúvidasque os 4,9 milhõesafricanos trazidos como escravos para o Brasil são as vítimas. Nenhum outro lugar do mundo recebeu tantos escravos. Em comparação, nos Estados Unidos, foram 389 mil.
Escravidão existia na África antes do tráfico europeu
A escravidão existia na África antes mesmo da chegada dos europeus. Os perdedoresum conflito, por exemplo, poderiam se tornar escravos dos vencedores. No entanto, a dimensão dessa prática era limitada.
Quando os portugueses chegaram à África, seu interesse inicial não eraescravos. Logo depois, no entanto, isso mudou.
"As elites africanas facilitaram o comércioescravos. Elas ficaram muito dependentes da importaçãomercadorias europeias - como armas, artigosconsumo eluxo. O que tinham para dartroca, e que os europeus aceitavam, era sobretudo mercadoria humana. Isso foi desastroso para a África, porque era uma troca altamente desigual - produtos manufaturados por pessoas", afirma Arlindo Manuel Caldeira.
Assim, por exemplo, ao comercializar na costa sudoeste da África no início do século 16, os portugueses receberam escravos como pagamento. Depois, trocaram esses escravos por ouro na região do CasteloSão Jorge da Mina.
Em seguida, os portugueses foram pioneirosadquirir escravos para vendê-los fora da África. Uma das primeiras viagens negreiras registradas, por exemplo, ocorreu1514, quando um navio português partiu do Rio Congo com 400 escravos rumo a Lisboa. Posteriormente, Portugal passou a abastecer com escravos seus territóriosSão Tomé e Cabo Verde.
Até 1650, doiscada três navios que comercializavam escravos no mundo eram portugueses.
Portugal e Inglaterra controlaram o tráficoescravos
O númeroviagens negreiras para o Brasil foi crescendo à medida que a exploração econômica baseada no trabalho escravo avançava - o açúcar, no Nordeste, o ouro,Minas Gerais, e o café,São Paulo.
O auge ocorreu1750 a 1850 (anoque o tráfico foi finalmente proibido): nesse período, aportaram no Brasil 7 mil navios portugueses ou brasileiros trazendo escravos da África - a partir da independência,1822, os brasileiros assumiram protagonismo no tráficoescravos.
O comércio era altamente lucrativo. Traficantes portugueses fizeram fortunas e,alguns casos, até ganharam títulosnobrezaPortugal.
É o caso do Conde Joaquim Ferreira dos Santos. No começo do século 19, ele montou postoscompraescravosAngola, que controlava a partir do RioJaneiro. Ele próprio foi à África algumas vezes para carregar seus naviosescravos. Calcula-se que tenha vendido 10 mil africanos no Brasil.
Quando o Brasil se tornou independente, Ferreira dos Santos pediu nacionalidade brasileira e continuou traficando escravos.
À épocasua morte,fortuna foi avaliadacerca1500 contos, equivalente a muitas dezenasmilhõeseuros atuais, segundo Arlindo Manuel Caldeira, que pesquisou a história dos traficantes portugueses. Parte da riqueza foi usada para criar obrascaridade, existentes até hojePortugal, como a redeescolas públicas CondeFerreira e o hospital psiquiátrico CondeFerreira.
A força negreiraPortugal só foi abalada pela Inglaterra. Apesarterem entrado no negócio meio século depois dos portugueses, os ingleses fizeram o maior númeroviagens negreiras do mundo, 600 a mais que Portugal. O destino era,primeiro lugar, as colônias inglesas no Caribe e,seguida, os Estados Unidos.
Já a partir do século 19, a Inglaterra mudoulado e passou a defender (e exigir) o fim do tráficoescravos no mundo. Foi por pressão inglesa que o Brasil aboliu o tráficoescravos.
AlémPortugal e Inglaterra, outros países também traficaram escravos da África para as Américas, como Holanda e França. Nenhum navio negreiro tinha a bandeirauma nação africana.
Demandaescravos para as Américas elevou conflitos na África
Além do Brasil, outras colônias americanas foram se tornando economias escravistas e demandando um número cada vez maiorescravos africanos. Do pontovista econômico, quando a demanda cresce, a produção também aumenta. É a lei da oferta e da procura. Foi o que ocorreu na África.
"As elites africanas tentaram ter sempre o maior número possívelescravizados para trocar por mercadorias europeias. São desenvolvidas diversas formasobtençãoescravizados, como medidas fiscais (cobrançaimpostos) ecaráter judicial (julgamentos que condenavam o acusado à escravidão). Mas a principal vai ser por força, pela guerra", explica Arlindo Manuel Caldeira.
Assim, "o comércio negreiro motivou uma sérieguerras étnicas e conflitos que tinham como objetivo obter escravos, para que pudessem ser vendidos para comerciantes europeus", diz Christopher DeCorse.
Algumas mercadorias vendidas pelos europeus, como cavalos e armas, aumentaram o poderconquistaalgumas sociedades africanas - e reduziram a capacidaderesistênciaoutras. As maiores vítimas foram comunidades camponesas, capturadas por sociedades vizinhas com maior poder bélico.
"Então a culpa é dos africanos? Não, nós devemos apontar o dedo diretamente para os europeus. Foram os europeus que moveram o mercadoescravos. Foram os europeus que foram para a costa africana e disseram para seus líderes: 'nos deem escravos'", diz Christopher DeCorse.