Calor excessivo, secas e chuvas torrenciais: por que Brasil poder ser um dos países mais afetados pela mudança climática:

Mulher enxuga o rosto com o pano

Crédito, Fernando Frazão/Agência Brasil

Legenda da foto, Termômetros podem subir até 5ºC no Brasil2100 caso a emissãogases do efeito estufa continue a aumentar

Só no Brasil, foram registradas no ano passado oito grandes ondascalor, secas sem precedentes na Amazônia e chuvas torrenciais, alagamentos e deslizamentos no litoral paulista e no Rio Grande do Sul.

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Muitos desses eventos extremos, como são conhecidos pela Ciência, já apareciam nas projeções feitas pelos especialistas ao longo das últimas décadas.

Também é consenso que eles estão relacionados — e são potencializados — pelas mudanças climáticas causadas pela ação humana.

Mas o que o futuro nos reserva? Como o Brasil já é e será cada vez mais afetado pelo aumento das temperaturas?

Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o cenário traz, ao mesmo tempo, grandes ameaças e boas oportunidades.

Por um lado, o Brasil certamente sofrerá com ondascalor intensas, períodos prolongadosseca e chuvas inclementes.

Por outro, há uma sériecondições e características do território que, se bem aproveitadas, representam uma sérievantagens estratégicas para os brasileiroscomparação com outras partes do mundo — como o potencialgerar energia limpa oureduzir rapidamente a emissãogases do efeito estufa.

Entenda todos os detalhes desse cenário a seguir.

Aumento da temperatura média

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Os registros históricos não deixam dúvidas: a temperatura média do planeta (e do Brasil) subiuforma consistente desde o início da Revolução Industrial, a partirmeados dos séculos 18 e 19.

"Isso se deve a uma decisão tomada a partir dessa época, quando a geraçãoenergia passou a ser baseada na queimacombustíveis fósseis, principalmente petróleo e carvão mineral", diz o meteorologista Gilvan Sampaio, coordenador geralCiências da Terra do Instituto NacionalPesquisas Espaciais (Inpe).

A grande questão é que essa queima joga,forma contínua, toneladas e mais toneladas dos famosos gases do efeito estufa na atmosfera — um dos principais deles é o dióxidocarbono (ou CO2).

Esses gases permanecem na atmosfera durante décadas (ou até séculos) e bagunçam a forma como o calor é dissipado. Para resumir, o resultado desse acúmulo é o aumento médio da temperatura ano após ano.

Esse fenômeno pode ser observado no gráfico a seguir, que traz dados do Brasil nos últimos 121 anos.

Em 1901, a temperatura média do país foi24,91ºC. Já2022, subiu para 25,54ºC.

Homem fotografa termômetro que marca 40 graus

Crédito, Tânia Rêgo/Agência Brasil

Legenda da foto, Ondascalor serão cada vez piores e mais frequentes no Brasil, mostram projeções

Essa diferença0,63ºC parece pequena, mas já faz uma grande diferença no fino balanço climático do país e do mundo.

Esse aumento progressivo da temperatura gera uma sérieeventos extremos, como aqueles que ocorreram nos últimos meses — que, alémserem influenciados pelas mudanças climáticas, ainda tiveram a contribuição do El Niño, fenômeno marcado pelo aumento acima da média da temperatura nas águas superficiais do Oceano Pacífico nas proximidades da Linha do Equador.

"Esses eventos estão acontecendoforma cada vez mais frequentetodo o planeta", observa o cientista Carlos Nobre, do InstitutoEstudos Avançados da UniversidadeSão Paulo (USP).

"Segundo o Copernicus, a instituição climática da Europa, 2023 é o ano mais quente já registrado não apenas nos últimos dois séculos, mas desde o período interglacial, há 125 mil anos."

Os efeitos disso já podem ser observados na prática.

"Episódioschuva com volume maior que 50 milímetros por dia eram rarosSão Paulo até a década1950. Hoje, são sete a dez episódios do tipo todos os anos", afirma Sampaio.

O climatologista José Antonio Marengo, coordenador-geralPesquisa e Desenvolvimento do Centro NacionalMonitoramento e AlertasDesastres Naturais (Cemaden), destaca que o Rio Negro, na Amazônia, chegou a 12 metrosprofundidade no dia 20outubro.

"Esse é o volume mais baixo121 anosobservações. Além disso, tivemos as ondascalor muito fortessetembro, outubro e novembro", diz.

"Falamosuma sequênciaeventos extremos que, combinados, geram consequências e são preocupantes."

Calorão nas alturas

O aumento das temperaturas não deve parar por aí: as projeções feitas pelos cientistas reunidos no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas apontam que o planeta pode ter um acréscimo1,5ºC a 4ºC na temperatura média até o final deste século.

A meta é reduzir ao máximo essa subida dos termômetros — o AcordoParis, assinado2015, traz uma sériemetas que precisam ser cumpridas pelos países signatários para cortar a emissãogases do efeito estufa e limitar esse aumento ao mínimo1,5ºC.

Mas o que tudo isso significa para o Brasil?

A oceanóloga Regina Rodrigues, professora da Universidade FederalSanta Catarina (UFSC), aponta que as projeções sobre o futuro climático do Brasil são um pouco incertas, porque muitos dos modelos levamconta a realidade e as características do Hemisfério Norte (onde muitas dessas ferramentas foram desenvolvidas).

"De maneira geral, podemos projetar um clima muito mais seco para as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e partes do Sudeste, com um aumento do volume das chuvas no Sul", diz a pesquisadora, que também representa o Programa MundialPesquisa Climática da Organização MundialMeteorologia.

"Teremos também mais ondascalor, como essas que tivemos ao longo2023."

Segundo os dados compilados pelo Banco Mundial, esse aumento da temperatura média no Brasil vai variar bastante,acordo com o ritmo da emissão dos gases estufas daquidiante.

Em um dos cenários mais otimistas (em que as emissões são zeradas um pouco depois2050), os termômetros brasileiros passariam25,84ºC2014 para uma média26,67 ºC2100.

Já a possibilidade mais pessimista,que as emissões globais dos gases do efeito estufa dobram, a temperatura média do Brasil2100 saltaria para 30,88ºC — uma diferença que ultrapassa os 5ºCrelação aos patamares atuais.

Mas por que o aumento da temperatura gera mais eventos extremos? A mudança nos padrões climáticos conhecidos e registrados ao longodécadas e séculos modifica o fino balanço dos ecossistemas, que dependem dos cicloschuvas, secas, calor e frio para manter as mais diversas formasvida.

As ondascalor no oceano, por exemplo, fazem mais água marítima evaporar. Parte dessa umidade vaidireção ao continente e gera chuvas torrenciais — que causam enchentes e deslizamentos.

Já a elevação da temperaturaoutros locais tem um efeito contrário: gera secas extremas, que matam a vegetação acostumada com certo nívelumidade e desequilibram toda a cadeia alimentar. Como mencionado anteriormente, os efeitos da estiagem na agricultura também podem ser dramáticos.

Quanto maior for esse aumento da temperatura, piores serão as consequênciastermoseventos extremos, como os calorões, as estiagens e os temporais, como apontam especialistas.

"O Brasil tem vulnerabilidades enormes. Grande parte da nossa economia é baseada no agronegócio, que sofrerá uma quedaprodutividade com a diminuição das chuvas e o aumento das secas", destaca o físico Paulo Artaxo, professor da USP.

O Brasil já é mais propenso aos eventos extremos, porque é um país tropical, explica ele.

"Um aumento3 ºC na Suécia pode até ser benéfico para o clima na região. Agora, 3 ºC a mais para quem moraTeresina, Cuiabá ou Palmas pode significar a diferença entre a vida e a morte", complementa.

Nobre lembra que essa vulnerabilidade climática também é influenciada pela condição socioeconômica do país.

"O IBGE calcula que 2 milhõesbrasileiros vivemáreasaltíssimo risco para deslizamentos ou inundações e não podem continuar nesses locais. Além disso, 10 milhões moramregiõesalto risco", diz o cientista.

"E sabemos que o impactoeventos extremos é muito menor nos países que protegem melhor as suas populações."

Como exemplo, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil citam os casosHolanda e Bangladesh — que têm boa parte do território abaixo do nível do mar — ouJapão e Turquia — onde terremotos são frequentes (que não estão relacionados ao clima, mas são eventos que geram grandes catástrofes).

Em ambos os casos, os impactos desses eventos (inundações ou terremotos) nas nações mais ricas e com planoscontingência (casoHolanda e Japão) costumam ser bem menores do que nos lugares mais pobres e sem uma estrutura para proteger a população (como Bangladesh e Turquia).

DeslizamentoSão Sebastião - SP

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Casas localizadasmorros e encostas estão sob riscodeslizamentosdiaschuvas fortes

Vantagens estratégicas

Se, por um lado, o presente (e o futuro) do clima do Brasil gera preocupações, a boa notícia é que a missão do paísmitigar os riscos pode ser relativamente mais fácil do que aoutras nações.

"O Brasil tem uma vantagem estratégica enorme, que nenhum outro país do mundo possui: nós conseguiríamos reduzir nossas emissõesgases do efeito estufa50%, pela metade, se parássemos o desmatamento da Amazônia", diz Artaxo.

"E nós conseguimos fazer isso a um custo baixíssimo e num curto espaçotempo."

Nobre lembra que o Brasil pode ser o primeiro grande país a zerar as emissõesgases do efeito estufa.

Para contextualizar, as cinco nações que jogam mais CO2 na atmosfera são China, Estados Unidos, Índia, Rússia e Brasil.

Mas há uma diferença importante nesse grupo: a emissãogases do efeito estufa dos quatro primeiros países tem a ver com a geraçãoenergia e a queimacombustíveis fósseis (como carvão e petróleo).

Já no Brasil, como é possível conferir no gráfico a seguir, a maior parte das emissões está relacionada à agricultura, ao uso da terra e ao desmatamento.

Em termos práticos, isso significa que China, Estados Unidos, Índia e Rússia precisam fazer toda uma transição energética, abandonar os combustíveis fósseis e criar uma nova rede baseadafontes renováveis (como placas solares, usinas eólicas, hidrelétricas…).

Isso tem um custo financeiro alto e gera impactos na economia desses países.

Já a "liçãocasa" brasileira consiste basicamentereduzir drasticamente — e eventualmente zerar — o desmatamento.

Os especialistas ainda sugerem recuperar as áreas degradadas — regiões que foram desmatadas e hoje não são usadas para nenhuma atividade comercial, mas podem ser regeneradas e virar floresta (ou campo para agricultura ou pecuária).

Itaipu

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Boa parte da matriz energética do Brasil já é considerada limpa, ao contráriooutros grandes emissoresCO2

Energia para dar (e vender)

Outra vantagem estratégica do país está na geraçãoenergia.

"A nossa matriz energética já é majoritariamente limpa. Cerca75%nossa eletricidade vêm das hidrelétricas, que produzem um impacto no ambiente, mas que é bem menor do que o dos combustíveis fósseis", compara Rodrigues.

Sampaio avalia que o Brasil talvez seja o país com as maiores possibilidadesgeraçãoenergia do mundo.

"Temos uma dimensão continental e estamos localizadosgrande parte na região tropical, que recebe muita radiação solar durante todo o ano. Isso pode ser usado para gerar energia fotovoltaica", propõe.

"Também temos diversas regiões do país com grande possibilidadegerar energia eólica, principalmente no Nordeste e no Sul."

O diretor do Inpe destaca outro fator que pode ser explorado no futuro para a obtençãoeletricidade: o movimento das marés, uma vez que o país tem uma extensa costa.

"Isso sem contar a liderança mundial do Brasilrelação aos biocombustíveis, como o etanol feito a partir da cana-de-açúcar", complementa.

A engenheira Suzana Kahn Ribeiro, professora do Instituto Alberto Luiz CoimbraPós-Graduação e PesquisaEngenharia da Universidade Federal do RioJaneiro (Coope-UFRJ), diz que esse potencial energético pode ser aproveitado nos projetosreindustrialização do país.

"Temos condiçõesatrair uma nova industrialização baseada numa economia verde, com baixo carbono, geraçãoemprego e crescimento econômico", afirma.

"Precisamosum ambiente jurídico e político estável e previsível para atrair esses investimentos."

Nobre concorda com a avaliação e entende ser possível aproveitar a biodiversidade brasileira nessas cadeias produtivas sem gerar danos ao meio ambiente.

"Nossos biomas, a Amazônia, a Mata Atlântica, o Cerrado, a Caatinga, os Pampas, o Pantanal, são muito biodiversos. Mas essa biodiversidade ainda não tem representatividade na economia", avalia.

"Essa nova industrialização, baseada na biodiversidade, é essencial para tornar o Brasil um paísclasse média e menos desigual."

Para isso virar realidade, Ribeiro aponta ser necessário investireducação e pesquisa.

"Quando o Brasil decide focaralguns setores, vira exemplo mundial. É o caso dos biocombustíveis", diz.

"Nós temos um capital fantástico, agora precisamosuma densidade intelectual para saber como aproveitá-lo."

Rodrigues lembra que não há mais uma oposição entre preservar o meio ambiente e desenvolver a economia.

"As duas coisas andam juntas. O Brasil nunca foi competitivo no modelo antigo, baseado nos combustíveis fósseis", afirma.

"A crise climática pode servir como oportunidade para que o país desenvolva tecnologias e possa virar essa nova referência."

Homem colhendo açaí

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Nova industrialização brasileira deve levarconta a biodiversidade do país, acreditam pesquisadores

Adaptar é preciso

Além dos potenciais e das vantagens estratégicas, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil chamam a atenção para a necessidadefazer adaptações e desenvolver planosemergência.

Afinal, as mudanças climáticas até podem ser mitigadas, mas, mesmo nos cenários mais otimistas, haverá um aumento da temperatura e dos eventos extremos.

"Nós estamos muito atrasados na agenda da adaptação climática", constata Artaxo.

"Precisamos reestruturar todo o nosso sistemadefesa civil e pensar nos impactos à saúde causados pelas mudanças climáticas."

Um exemplo prático: na avaliação dos pesquisadores, os 2 milhõesbrasileiros que vivemáreas com risco altíssimo para deslizamentos e enchentes precisam ser remanejados com urgência, porque correm riscomorte a cada nova tempestade.

Para as ondascalor, que ficarão cada vez mais intensas e frequentes, os serviçossaúde devem estar preparados para absorver o aumento da demanda nos pronto-socorros.

Será necessário pensarabrigos para proteger os mais vulneráveis, como crianças e idosos.

As regiões afetadas pela seca necessitamcisternas e reservatórios, para garantir o suprimentoágua.

Agrônomos e agricultores já realizam pesquisas sobre cultivares que sejam mais resistentes às estiagens.

Secario na Amazônia

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Regiões que sofrerão com secas — como Norte, Nordeste e Centro-Oeste — precisarão desenvolver estratégias adaptativas

Cidades litorâneas devem pensarestratégias para conter o avanço do mar — e muitas vezes, a solução está na própria natureza, com a revitalização dos manguezais, que pode servir como uma barreira verde.

"Essa não me parece uma questãorecursos financeiros, masuma integraçãoações governamentais", pontua Artaxo.

Ao contrário das açõesmitigação das mudanças climáticas, que envolvem negociações internacionais para reduzir a emissãogases do efeito estufa do mundo todo, a agendaadaptação é muito particular: cada cidade pode (e deve) desenvolver soluções próprias, baseadas na realidade local.

"Os planosadaptação às mudanças climáticas não são apenas um documento bonito, escritoletras douradas, que fica exposto numa prateleira", diz Marengo.

"Ele precisa ser prático, conhecido por todos e mostrar o que fazer para prevenir ou minimizar os danos relacionados aos eventos climáticos extremos", complementa ele.

Para Nobre, esses planos também envolvem educar e conscientizar a população sobre o que fazer para ficar mais resguardadosituações como essas.

"Por mais que os brasileiros estejam adaptados ao calor, estamos batendo todos os recordestemperatura. A secura do ar pode causar desidratação e uma sériedoenças", explica ele.

"As pessoas precisam ser orientadas para saber como se proteger diante dessa nova realidade."